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31/10/2011

Os dois jovens no monte das fadas

Dois jovens, estavam voltando para casa numa noite de Halloween, cada um com um barril de uísque. De repente, ouviram música e vendo uma casa aberta, toda iluminada e com dança e risos vindo de lá, foram na direção dela e entraram.
Um dos dois se juntou ao grupo que dançava, assim que ele colocou no chão o pacote que levava. O outro, suspeitando do lugar e das pessoas, espetou uma agulha na porta assim que ele entrou, e foi embora quando ele quis. Passaram-se vinte meses e ele voltou procurando por seu companheiro e o encontrou ainda dançando com o barril de uísque nas costas. Embora estivesse mais vivo do que morto, o dançarino enfeitiçado implorou que ele deixasse terminar a dança. Quando ele saiu ele era apenas pele e osso.



30/10/2011

As lebres e as rãs



Reuniram-se um dia as lebres e se lamentavam entre si de levar uma vida tão precária e temerosa pois, com efeito, não eram elas vítimas dos homens, dos cães, das águias e outros animais?? Mais valia morrer de vez que viver no terror! Tomada esta resolução, se lançaram todas ao mesmo tempo a um lago para morrer afogadas.
Porém as rãs, que estavam sentadas ao redor do lago, quando ouviram o ruído das lebres se aproximando, saltaram assustadas na água. Então uma das lebres, a que parecia mais inteligente que as demais, disse:
- Alto companheiras. Não há porque nos apressarmos, pois vejam que há outros mais medrosos que nós!

O consolo dos desgraçados é encontrar outros em piores condições.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

28/10/2011

Sinal do Céu



Como se estivesse pairando entre o céu e a terra, no silêncio da cela semiobscurecida, D. Gualdim orava, profundamente entregue às suas devoções. O corpo lasso — cansado das lutas a que se havia exposto durante a famosa e difícil conquista de Lisboa — sentia um prazer físico e espiritual nessa semiobscuridade, nessa semi-inacção, nesse quase absoluto silêncio. De joelhos em terra, o rosto escondido nas mãos, o corpo inclinado para a frente, dir-se-ia a verdadeira estátua da oração. Mas porque a sua sensibilidade era profundamente apurada, o seu espírito começou subitamente a turbar-se em ondas de alerta, como se movimenta a água parada de um lago ao ser-lhe lançada uma pequenina pedra.
D. Gualdim estremeceu. Teve a sensação de que não estava só. E, retirando do rosto as mãos, ergueu o busto e voltou-se num vagar mal contido. Os seus olhos habituados à meia-luz ambiente descortinaram logo a figura magra e alta do superior do convento. E o seu olhar indagou de tão honrosa presença. O superior, numa voz baixa e pausada, que se esforçava por ser humilde, elucidou:
— Perdoai, irmão. Não desejaria interromper a vossa oração piedosa... mas tenho algo de importante a comunicar-vos.
— Falai sem receio. Estava apenas dando graças a Deus pela dita deste silêncio, depois do tremendo inferno que foi a conquista de Lisboa.
— Bem mereceis este repouso, irmão. Por isso mesmo me aflige interromper-vos.
— É esta a nossa missão de cavaleiros e monges.
— Sim, é essa a nossa missão... Já o disse Sancho de Castela: «O som da trombeta transforma-nos em leões e o do sino em cordeiros...» Que se cumpra, pois, em nós, a vontade de Deus!
D. Gualdim sorriu com o respeito devido ao seu superior.
— Mas decerto não viestes aqui para nos enaltecerdes...
Foi a vez do monge sorrir também.
— Oh, não! A minha presença nesta cela deve-se a um desejo do nosso rei D. Afonso Henriques.
Os olhos do cavaleiro-monge brilharam mais intensamente. O seu busto endireitou-se com estranha altivez.
— El-rei vai sair de novo a campo?
Com um sinal de cabeça o monge confirmou:
— Sim... O sangue ferve-lhe nas veias… o seu fervor à causa cristã é indomável!
D. Gualdim já não parecia o mesmo homem humilde e abatido de há pouco.
— Quando precisa el-rei de mim?
— Amanhã, ao romper do dia.
— Que Deus seja louvado! Lá estarei com os meus homens.
Sorriu o monge superior do convento.
— El-rei aprecia-vos muito. Contou-me a vossa proeza, quando subistes as escarpas do monte cujo terreno parecia desfazer-se debaixo dos pés... Falou-me dos pedregulhos que iam caindo por todos os lados e só por milagre vos não acertaram... E disse-me como fostes sempre avançando de armas nos dentes, para que as mãos ficassem mais livres e vos ajudassem a subir...
D. Gualdim começou a impacientar-se.
— Por Deus!... Nada fiz que os outros não fizessem também.
— Mas fostes o primeiro a chegar à muralha...
— Foi el-rei que vos contou tudo isso?
— Foi ele, em parte, e os outros ajudaram-no.
— Os outros!...
Sorriu e suspirou fundo, D. Gualdim. Depois, como quem falasse consigo próprio, o cavaleiro-monge declarou, numa voz serena e firme:
— Com um rei como o nosso, que sempre está onde a luta se trava mais renhida, não podem haver descuidados ou cobardes... Eu fiz apenas o que me cumpria fazer.
— Por isso el-rei vos reclama de novo em campo...
— E lá estarei, se Deus quiser, para maior honra e glória de Deus!
— Ámen...
E silenciosamente, como chegara, o superior saiu da cela de Gualdim.
Só, este ficou um momento imóvel, olhando um ponto vago no espaço. Depois os seus joelhos voltaram a roçar a terra, o seu busto esguio tornou a encurvar-se e as suas mãos mais uma vez cobriram o seu rosto, de olhar brilhante e feições vincadas.
Em volta, o silêncio continuou silêncio e a penumbra, penumbra. Só o seu pensamento, feito senhor absoluto do ambiente, cresceu como único vencedor...

No horizonte, uma nesga de luz impôs a sua presença às trevas da noite. Madrugada fresca de S. João. Em massa ainda indefinida, caminhava o exército lusitano. D. Afonso Henriques mandou fazer alto. Toda aquela enorme multidão estacou. A voz de el-rei D. Afonso Henriques voltou a ouvir-se. Queria falar a um dos seus cavaleiros. Foram buscá-lo sem demora.
Subiu sonora e firme a voz do rei, como sempre que dava uma ordem.
— Aproximai-vos, D. Gualdim!
Submisso mas isento de humildade humilhante, o cavaleiro-monge curvou a cabeça.
— Dizei, Senhor.
Voltou o rei a falar com altivez:
— Vou deixar aqui o exército sob as ordens de D. Ordonho. Preciso, primeiramente, de fazer um reconhecimento.
Admirou-se o cavaleiro.
— Vós? Será perigoso! Ficai, que eu me sentirei honrado com a vossa mercê, se puder fazer esse reconhecimento em vosso lugar!
Franziu o rei as sobrancelhas espessas.
— Disse-vos que desejo fazer um reconhecimento. E não lego em ninguém esse meu desejo!
Arriscou ainda o cavaleiro-monge:
— Mas... ides sair do campo?
— Sim. Sairei disfarçado e acompanhado apenas por vós, D. Gualdim…
Curvou o monge a cabeça, para logo olhar de frente o seu rei.
— É grande a honra que me concedeis, Senhor! Tão grande como a responsabilidade, que me cabe, de vos trazer, de novo são e salvo.
Sorriu ligeiramente o rei.
— Nada temais! Quero apenas chegar junto do castelo dos mouros antes que o sol rompa. Preciso descer para Alcácer, e não quero deixar mal defendidas as nossas costas, com focos que poderão perder-nos. Este castelo terá de ser nosso. Mas preciso saber se chegou a hora de o tomar.
— O castelo será vosso, como o têm sido os outros que tendes desejado!
— Sim! — confirmou alegremente o rei. — Depois de Lisboa renderam-se os castelos de Almada, Sintra e Palmela. Este fica perto de Lisboa, e também terá de ser nosso, repito!
— E eu repito também, se o permitis: sê-lo-á em breve!
A expressão dura de D. Afonso Henriques adoçou-se. Mas a sua voz soou áspera e breve, como sempre.
— Aprontai-vos e segui-me... Tenho pressa!
A nesga de luz que impunha a sua presença às trevas da noite alargou-se mais. E o recorte do exército português tornou-se mais nítido na cinza rosada da manhã.

A areia ensaibrada rangeu sob o metal do calçado do rei português. Do alto de todo o seu corpo imponente, D. Afonso Henriques olhava o castelo, sobranceiro e sereno. Tudo parecia calmo à volta. A própria pureza do ar, correndo como brisa, parecia um convite para tornar cristão mais aquele bocado de terra. O rei cofiou lentamente as barbas, enquanto lentamente, contra o seu costume, dizia ao companheiro:
— Parece até um castelo de mouros encantados! Não se vê ninguém...
— Custa a crer que nem tenham vigias!
— Quem sabe?
— Cuidado, Senhor! Descobri além um vulto a mover-se...
O rei de Portugal franziu as sobrancelhas, numa concentração, enquanto dizia como se falasse consigo próprio:
— Vim aqui para saber se a hora era propícia à conquista deste castelo. Mandai-me um sinal do Céu, ó Deus Todo-Poderoso! Mandai-me um sinal!
D. Gualdim guardara silêncio. Mas vendo que o vulto corria agora direito a eles, preveniu:
— Descobriram-nos! Vão dar o alarme!
O rei semicerrou os olhos, numa tentativa de ver melhor na meia-luz da madrugada nascente.
— Reparai bem, D. Gualdim! O vulto que corre para nós... é o de um cão enorme!
O cavaleiro-monge concentrou todos os seus sentidos nesse vulto que corria direito a eles e se distinguia já perfeitamente.
— Assim é, meu Senhor! Mas nunça vi um alão tão forte e grande! Teremos de o matar antes que dê o alarme...
Já o cão se dirigia na direcção do rei de Portugal. D. Gualdim gritou quase, ao mesmo tempo que puxava da espada:
— Cuidado, Senhor!
Mas D. Afonso Henriques suspendeu-lhe o gesto. O alão mal chegara junto do rei conquistador começara a lamber-lhe as mãos, dando saltos de imensa e estranha alegria. D. Afonso Henriques sorriu.
— Reparai, D. Gualdim: o alão rende-me vassalagem! Recebe-me como a um libertador, ou como se me conhecesse há muito... Deve ser este o sinal do Céu! O avanço das nossas tropas far-se-á imediatamente e o castelo será nosso. O alão o quer!
Como num eco, D. Gualdim repetiu:
— O alão quer!
E desta frase lendária, que ficou para todos os tempos, resultou a conquista de mais uma praça e o nome da terra que hoje se chama Alenquer. O sinal do Céu chegara e o rei de Portugal obedecera! E quando o Sol, em toda a sua pujança, longe das lamúrias da noite, dardejava os seus raios quentes sobre a terra morena, já o estandarte do rei de Portugal flutuava no alto do que fora um castelo de mouros!...


Gentil Marques
Alenquer