( 391x375 , 253kb)


30/05/2011

A reunião geral dos ratos


Uma vez os ratos, que viviam com medo de um gato, resolveram fazer uma reunião para encontrar um jeito de acabar com aquele eterno transtorno. Muitos planos foram discutidos e abandonados. No fim um rato jovem levantou-se e deu a idéia de pendurar uma sineta no pescoço do gato; assim, sempre que o gato chegasse perto eles ouviriam a sineta e poderiam fugir correndo. Todo mundo bateu palmas: o problema estava resolvido. Vendo aquilo, um rato velho que tinha ficado o tempo todo calado levantou-se de seu canto. O rato falou que o plano era muito inteligente, que com toda certeza as preocupações deles tinham chegado ao fim. Só faltava uma coisa: quem ia pendurar a sineta no pescoço do gato?

Moral: Inventar é uma coisa, fazer é outra.


Fábulas de Esopo

28/05/2011

Quatro irmãos

Eram quatro irmãos. Fortes e belos. E amigos. Como não se conheciam outros. Quatro irmãos, órfãos de pai e mãe. Mas tão unidos que serviam de exemplo. Exemplo de lealdade e de compreensão.
Pois os quatro irmãos viviam ali, na freguesia de Sande, no cenário paradisíaco do Minho, e andavam sempre juntos. Um dia, o mais velho disse para os outros três:
— Rapazes! Vamos hoje à Feira Grande... Já tenho o carro aparelhado.
Voltou-se para o mais novo.
— Tu, arranja o farnel!... Leva bastante comida, hem! Vamos lá passar todo o dia e talvez mesmo um bocado da noite.
Depois dirigiu-se aos outros dois:
— E vocês preparem mantas para o regresso. Podemos voltar tarde e é capaz de arrefecer. Temos de ter cautela com a saúde!
Não tardaram a ser cumpridas as ordens do irmão mais velho. Este esfregou as mãos, jubilosamente.
— Assim, até apetece... Quando nós, os quatro irmãos, nos metemos ao trabalho, tudo se faz num instante!
Riram todos. Quatro gargalhadas frescas e sadias.
Apontando o carro já preparado para a viagem, o irmão mais velho acentuou:
— Vai ser um dia bem passado, lá isso vai!... Ou muito me engano, ou a Feira Grande este ano subirá de fama nas redondezas!
Os outros três corroboraram logo:
— Claro! Nós somos bem conhecidos e já nos esperam com toda a certeza!
— Seremos mais uma vez a grande atracção da feira, vocês vão ver!
— Quem é que pode resistir à boa amizade de nós quatro?...
E os quatro irmãos tomaram os seus lugares no carro e abalaram de corrida para a Feira Grande.
Tudo se passou tal como eles pensavam. A certa altura, tinham-se transformado nos heróis da Feira Grande. Quatro heróis. Sempre juntos, sempre amigos!
Porém, a multidão foi crescendo, aumentando, e acabou por separá-los, mau grado deles.
O mais novo dos quatro irmãos viu-se de súbito diante duma jovem de extraordinária formosura. Pareceu um pouco aturdido. Não se sentia bem. Faltava-lhe a companhia dos outros três. E tentou continuar à procura deles. Mas a jovem formosa cortou-lhe a passagem, olhou-o bem de frente e disse sorrindo:
— Escusais de pensar encontrar agora os vossos irmãos.
E acentuando o riso e o olhar:
— Fui eu própria que vos separei.
O mais novo dos quatro reflectiu primeiro surpresa, depois curiosidade.
— Vós, Senhora?... Mas para quê?... Por que motivo?
Ela inclinou-se para a frente. O seu perfume perturbou-o.
— Não gosto de concorrentes... Até à vossa chegada, era eu a rainha da festa!
Foi a vez do jovem sorrir.
— E continuais a ser, sem dúvida alguma…
Depois, talvez arrastado pelo perfume que aspirava, prosseguiu:
— A vossa beleza, Senhora, é superior a tudo quanto nos rodeia!
Ela meneou os seus belos cabelos negros, num ar de graça.
— Obrigada pelo madrigal!... Já vejo que sois poeta!
O rapaz começou a sentir-se mais à vontade.
— Se poesia se pode chamar à verdade, Senhora... Então, sim, sou poeta para cantar a vossa formosura...
Sem querer (ou talvez não) as mãos dela tocaram as mãos dele.
— Deveras me lisonjeais com tais palavras... Embora ainda tão novo, já sabeis falar muito bem!
O seu olhar tornou-se muito triste.
— Mas serei eu merecedora de tanta atenção?...
O mais novo dos quatro irmãos empertigou-se. Ganhou figura.
— Digo-vos mais, Senhora… Se vós quisésseis…
— Se eu quisesse?...
— Poderíamos ser felizes!
Calaram-se. Ela, a meditar. Ele, surpreendido com a ousadia das suas próprias palavras. E ainda desta vez foi a jovem bela e estranha a primeira a falar.
— Que dirão os vossos irmãos… quando souberem do nosso encontro?
Ele pareceu cair do sonho na realidade. Teve um movimento brusco de enervamento, a traduzir íntima inquietação.
— Tendes razão, Senhora... Preciso de falar imediatamente com os meus irmãos.
E agora, atrevidamente, foi o rapaz quem segurou as mãos dela, apertando-as nas suas. Com a violência do amor da juventude.
— Senhora, por tudo vos peço que não vos afasteis daqui... Eu voltarei em breve, para ficarmos juntos até a feira acabar!
Multiplicando-se em esforços, o mais novo dos quatro irmãos foi rompendo por entre a multidão, até que finalmente conseguiu encontrar os outros.
Ofegante, correu para eles.
— Irmãos!... Irmãos!... Ainda bem que os encontrei!
O mais velho fitou-o. Curioso e inquieto. Talvez desconfiado.
— Que se passa? Que tens tu?
Então o outro, lentamente, olhou os três, um por um, e disse devagar, silabando bem para que ouvissem melhor.
— Apaixonei-me!
Houve gargalhadas. Mas gargalhadas diferentes. Conforme as reacções de cada um.
— Deves ter bebido, com certeza!
— Apaixonado? Por alguma rapariguita da tua idade?
— Que partida é essa que tu nos queres pregar?
Mas, sem fazer caso, nem da troça, nem do desdém, nem da descrença, o mais novo dos quatro contou o seu maravilhoso encontro com a jovem formosa.
Os comentários choveram imediatamente:
— Se ela é assim, eu também a quero ver!
— Primeiro estou eu, que sou mais velho do que tu!
— Isso não interessa... Quem chegar primeiro é que vence!
— Porque não a trouxeste contigo?
— Foste um parvo! A esta hora já fugiu...
— Eu vou procurá-la!
— Nada disso... Quem vai sou eu!
De repente, o irmão mais velho resolveu impôr a sua autoridade. Pela primeira vez na vida dos quatros irmãos.
— Calem-se! Sou eu o mais velho de todos... Portanto sou eu que vou falar com a tal jovem... Depois lhes direi a minha opinião.
Simplesmente, tal como se conta, ele esqueceu-se de perguntar qual o local onde a rapariga ficara. E, assim, teve de percorrer a Feira Grande em várias direcções, sem que a descobrisse.
Já estava prestes a desistir, quando ouviu alguém rir mesmo junto de si. Voltou-se. Era uma rapariga estranhamente bela.
— Não me digais que sois vós o tal irmão mais velho que anda à minha procura...
Ele suspirou. Encontrara-a, finalmente! E confessou:
— Sou eu, sim... E tenho muito prazer em verificar que o meu irmão mais novo falou verdade!
Ela tornou a rir. Um riso cristalino mas esquisito…
— Perdoai, Senhora… Posso saber porque razão estais tão alegre?
Ela envolveu-o num olhar meigo e perturbador. Incómodo também.
— Estou a rir… porque já todos passaram por aqui... Os outros vossos três irmãos.
— Eles fizeram isso?
— E porque não?
As duas perguntas quase se chocaram. Depois o irmão mais velho tentou esclarecer:
— Não o deviam ter feito... Sabiam que eu tinha vindo precisamente à vossa procura... Para falar primeiro convosco, Senhora!... Eu tenho essa primazia. Sou o mais velho dos quatro!
Os olhos dela semicerraram-se, num olhar felino.
— Pois escutai, então... Eles passaram por aqui... e estão apaixonados por mim!
Seria um desafio? Ele assim o entendeu. E não hesitou na resposta:
— Pior para eles!... Só eu, Senhora, tenho direito ao vosso amor!
A surpresa pareceu estampar-se no rosto da rapariga. Surpresa sincera. Surpresa grande.
— Como? Que dizeis?... Tendes o direito ao meu amor? Porquê?...
Ele compreendeu que se excedera. Procurou adoçar a explicação:
— Bem vedes, Senhora… Sou o mais velho dos quatro… O mais experiente... O que mais vos pode oferecer... Os outros dependem de mim... Entendeis-me, não é assim? Como mais velho, devo ter sempre a prioridade!
Ela pareceu não se conformar.
— Enganais-vos. Em amor, não há prioridade. Só eu posso decidir. Ouvis bem? Só eu quero decidir!
O homem achou melhor não prolongar a discussão. E limitou-se a perguntar:
— Se assim é… que decidis?
Altiva, mais bela do que nunca, a estranha desconhecida ditou então ao vento a sua resposta, como se o vento levasse as palavras para a eternidade:
— Quereis saber o que eu disse aos vossos três irmãos?... Escutai, pois: Casarei com aquele que entre vós for o mais valente e o mais forte!
Agora foi ele a rir. Um riso de triunfo.
— Mas, Senhora, eu sou tudo isso!
E logo ela, num ar gaiato e provocante, inquiriu:
— Como o provais?...
Diante da falta de resposta, continuou:
— Cada um dos vossos três irmãos afirmou também que era o mais forte e o mais valente!
— Mas eu sou o mais velho, Senhora!
Ela encolheu os ombros, espicaçando-lhe o brio.
— Isso nada prova!
O homem agarrou-a pelos ombros, numa decisão súbita.
— Que desejais?
E a rapariga, libertando-se sem grande esforço, acentuou pausadamente:
— Já que me quereis... é preciso que os quatro lutem entre si, até que um fique vencedor dos outros três... Esse será o mais valente e o mais forte. E esse será também o que me conquistará!
O mais velho dos quatro baixou a cabeça. Parecia vergado por um peso enorme. Talvez o peso da própria consciência.
— Senhora, o que pedis é realmente terrível!... Assim se destruirá para sempre a amizade dos quatro irmãos... Uma amizade que vale como exemplo, Senhora!
A resposta dela foi cruel, mas excitante:
— Eu só poderei pertencer a um de vós… e não aos quatro! Não pensais assim?
O homem hesitou ainda, antes de falar. Por fim, as palavras saíram em voz soturna:
— Pois será satisfeito o vosso desejo, senhora... Vou à procura dos meus irmãos!
Mas logo a jovem formosa, intencionalmente aproximou-se dele e apontou para bem perto.
— Não vos canseis... Eles já estão à vossa espera, lá em baixo...

Foi um encontro brutal. Os quatro irmãos (antigamente tão amigos e unidos, como outros não havia) olhavam-se agora cheios de rancor.
Pela primeira vez nascera o ódio entre eles. Um teria de matar os outros, para mostrar que era o mais forte e o mais valente. E conquistar aquela mulher estranhamente bela, que os olhava lá de cima, como que envolta numa auréola de luz. De luz ou de fogo?...
A luta começou. Luta de vida ou de morte. De qualquer modo, luta de tragédia, entre quatro irmãos que até bem pouco antes eram exemplo de compreensão e lealdade!
O mais velho foi afinal o primeiro a sucumbir... Depois outro... E logo outro... Por prodígio, aquele que conseguira resistir até ao fim era o mais novo. Mas também pouco lhe restava de vida. Ele bem o compreendeu, ao olhar os corpos dos irmãos caídos por terra.
E então, sem voltar a olhar sequer lá para o cimo, onde estava a mulher desejada, começou a arrastar-se, com as poucas forças que lhe restavam, a caminho da igrejinha que ficava próximo dali...
Foi desse modo que lá conseguiu chegar. Esvaindo-se em sangue. Morrendo aos poucos.
Quis levantar-se, mas caiu nos braços do prior.
— Padre, meu bom padre… ajudai-me!
O sacerdote impressionou-se.
— Meus Deus! Nesse estado… Mas que aconteceu?
Em voz agonizante, mal se ouvindo por vezes, o pobre rapaz, único sobrevivente dos quatro irmãos, contou a sua história triste. Triste e dolorosa.
O padre benzeu-se rapidamente e benzeu o moribundo.
— Meu pobre filho... Tu e os teus irmãos foram certamente enganados pelo Demónio, na figura de uma mulher perversa...
E suspirando, de olhos erguidos ao céu:
— Meus Deus, fazei que ao menos se possam salvar as suas almas!
Com muito custo, o sacerdote conseguiu levar o rapaz agonizante ao local onde se desenrolara a terrível e singular batalha. Mas, chegados aí o jovem não resistiu mais. Tombou também para sempre, ao lado dos outros. De novo estavam juntos, os quatro irmãos!
Lá os enterrou, o bom sacerdote, colocando-os lado a lado, e rezando-lhes as últimas orações, para que as almas não se perdessem.
E fosse pelo que fosse, a verdade é que sobre a campa de cada um dos quatro irmãos surgiu, mais tarde, um penedo, que passou a marcar para o futuro a triste sepultura…
E a povoação que depois se ergueu nesse mesmo local ficou a denominar-se a Terra dos Quatro Irmãos. E, mais modernamente, apenas Quatro Irmãos.


Gentil Marques
Braga

Quem ajuda o pardalito?



Era um passarinho caído do ninho. Mais precisamente um pardal, um pardalito tontelas, de asas molhadas de medo.
Os irmãos tinham-no empurrado, sem querer, e ali estava ele, a pisar pela primeira vez o chão áspero que lhe feria o macio das patas. Dava saltinhos, a ensaiar o voo, mas ainda estava longe de saber voar. Que ia ser dele?
Viu uma formiga, a correr de um lado para o outro, e pediu-lhe, num fiozinho de choro:
- Ajuda-me.
Ela nem lhe respondeu, atarefada que andava, lá na vida dela.
Viu um besouro, a voar em círculos, e pediu-lhe:
- Ajuda-me.
Mas o besouro, talvez por culpa do motor barulhento que o sustinha no ar, nem lhe ligou.
Viu uma andorinha nem que uma seta, a rasar o chão, e pediu-lhe:
- Ajuda-me.
Mas já a andorinha ia muito longe, a apagar-se no céu.
Que ia ser dele?
Havia de vir um gato e dar-lhe uma sapatada.
Havia de vir uma cobra e dar-lhe uma picada.
Havia de vir um cão e dar-lhe uma dentada.
Mas veio uma menina que andava a colher amoras para dentro do chapéu de lona, e levou-o com ela.
O pardalito nem se atrevera a pedir-lhe ajuda. Ela é que o achara e ameigara nas mãos em concha, como se fosse em ninho.
Levou-o para casa. Deu-lhe pãozinho. Deu-lhe miminhos.
Eu conheço essa menina. E também o pardalito, agora um pardal pardalão que não se cansa de voar.
Mas por onde quer que ande, no seu agitado voo de pardal aventureiro, de uma coisa se não esquece. Todos os dias, à mesma hora, bate com o bico na vidraça da janela. A menina abre-a e dá-lhe as migalhas da merenda. Depois, o atrevido salta-lhe para o ombro e pica-lhe, num desafio de ternura, a polpa da orelha. A menina encolhe-se num riso e ele foge a gorjear de alegria.

António Torrado

26/05/2011

o incêndio de Lanka



Os demónios, alarmados, avisaram Ravana que um macaco gigantesco causava a maior destruição por onde passava. Exércitos foram enviados para combatê-lo e Hanuman derrotou todos, matando um dos filhos de Ravana.
Um outro filho foi incumbido da mesma missão e depois de muita luta acorrentaram o macaco e levaram-no à presença do Demónio de Dez Cabeças, que perguntou:
-Quem é você, de onde veio e o que quer?
-Sou Hanuman, mensageiro de Rama e vim até aqui para descobrir onde está Sita.
Depois de conversar com seus guerreiros sobre o que fazer com o prisioneiro, Ravana decidiu:
-Deixem-no ir embora mas mutilem-no primeiro. Um macaco é muito apegado à sua cauda. Amarrem nela trapos molhados de óleo e ponham fogo. Quando o macaco sem rabo retornar À casa, trará seu mestre de volta com ele e então veremos que poder tem esse mestre tão elogiado – falou o demónio.
Em toda cidade não sobrou um trapo sequer, nem uma única gota de óleo, porque Hanuman fez crescer a cauda até que ela ficasse enorme. Quando o fogo foi ateado, o vento soprou forte e o macaco não sentiu o calor. Desprendeu-se das correntes, saltou de palácio em palácio, de casa em casa, até incendiar toda a cidade.
Do alto de uma colina contemplou Lanka, destruída pelo fogo. Esfriou a cauda numa fonte e saltou até o bosque onde se achava Sita. Esta lhe deu uma jóia, que usava nos cabelos, para que entregasse a Rama.
Hanuman voou até a praia e lá estavam os ursos e macacos, à espera de notícias. Sabendo que Sita fora encontrada, todos voltaram para o reino.
Lá chegando, prepararam o grande exercito de animais, que acompanharia Rama no resgate de sua esposa Sita, e partiram para a guerra contra Ravana e seus demónios.


A busca das plantas medicinais

No cerco de Lanka, o chão ficou coalhado de mortos e de feridos. Lakshman foi gravemente atingido e Rama entrou em desespero com o estado que se encontrava o irmão.
Nesse momento Hanuman atravessou o mar, dessa feita voando em direcção ao norte, até o Himalaia, em busca da montanha da vida, coberta de plantas medicinais capazes de curar todo tipo de ferimento e ainda devolver a vida aos mortos.
Vindas da lua, as plantas brilhavam com luz própria.
Lá de cima, Hanuman viu a montanha faiscando. Mas as plantas se esconderam debaixo da terra e as luzes se apagaram, quando sentiram que alguém se aproximava.
Como não havia tempo para desenraizá-las, Hanuman arrancou a montanha inteira, com as ervas, árvores, os minérios, rios, animais e, levantando-a com as mãos acima da cabeça, retornou a Lanka.
O voo rápido aqueceu as ervas que começaram a exalar vapores. Enquanto pairava no ar, à procura de um lugar apropriado para depositar a montanha, o cheiro das plantas se espalhou por todo o campo de batalha e isso foi o bastante para que os mortos recuperassem a vida e os feridos se curassem. Todos se salvaram, romperam o cerco e conquistaram Lanka.
Vencida a guerra contra o Demônio de Dez Cabeças, Sita foi liberada e voltou para a companhia de Rama, de Lakshman, agora completamente curado, de Hanuman, Sugriva, Jambavat e do vitorioso exercito de macacos e ursos.





24/05/2011

A espada mágica de Freyr




Freyr era um deus da raça dos Vanir, contraposta a dos primitivos Aesir, dos quais o poderoso Odin era o líder. Desde sempre os aesires haviam relutado em admitir a companhia dos vanires, considerados por eles como “deuses inferiores”. Durante muitas eras, estas duas classes de deuses guerrearam entre si, até que se firmou um tratado de paz. Houve, então, uma troca de reféns, na qual coube aos vanires remeter aos antigos adversários três de suas divindades: Freyr, deus da fertilidade; sua irmã Freya, deusa do amor; e Niord, pai de ambos e deus do mar.
Estas três divindades foram muito bem recebidas em Asgard e, desde então, ali se estabeleceram amigavelmente.
Freyr sempre teve sua imagem associada a três prodígios oriundos das mãos de operosos anões: o javali Gullinbursti, que possuía cerdas douradas; o navio Skidbladnir, que além de navegar, era capaz de voar e ainda podia ser dobrado e colocado dentro do bolso do deus, como um lenço. Mas, de todos os prodígios associados à fama de Freyr, nenhum foi mais admirado – e justamente temido – do que sua espada milagrosa. Esta arma maravilhosa tinha o dom de destruir sozinha os inimigos de seu dono.
Freyr achava-se sentado sobre Hlidskialf, o trono mágico de Odin, de onde podia avistar todo o universo. Aproveitando a ausência dos mais poderoso dos deuses, ele contemplava, dali, a vastidão dos nove mundos, desde as profundezas de Niflheim até os confins gelados de Jotunheim, a terra dos gigantes. Ali, deteve seu olhar durante um longo tempo, até que a certa altura avistou um linda jovem com sua longa cabeleira dourada a esvoaçar sob o vento gélido que descia das montanhas encapuzadas pela neve.
- Justos céus! – exclamou ele, maravilhado. – Quem é esta beldade?
Freyr ficou possuído por um desejo incontrolável pela bela criatura e, desde então, perdeu o sossego a ponto de não conseguir mais dormir.
- O que está havendo, que anda tão abatido? - disse-lhe um dia Skirnir, seu fiel servidor. - Faz dias que não come e mal bebe o seu hidromel! Anda o dia inteiro de um lado a outro, sinal de que está às voltas com um grande problema.
- E, realmente, estou!... - disse Freyr, feliz por encontrar alguém para desabafar. - Ah, Skirnir, desde que pus os olhos no longínquo reino dos gigantes e vi lá uma bela jovem a passear pelos campos gelados, perdi o sossego! E o pior de tudo é que não sei quem ela é nem o que hei de fazer para conquistá-la...
Skirnir ficou observando o estado lamentável em que seu senhor se encontrava, e, pelo tom pálido de suas faces, pôde comprovar, que, realmente, ele estava perdidamente apaixonado.
- Skirnir, preciso de um grande favor seu! - disse Freyr, em desespero.
O criado sentiu que estava prestes a arrumar uma bela encrenca.
- Quero que vá até Jotunheim e descubra quem é aquela adorável jovem!
Skirnir ficou mais pálido do que o próprio deus. Afinal, ter que enfrentar uma viagem por terras inóspitas e fazer frente ao provável ataque de uma legião de gigantes não era uma perspectiva nada agradável.
Freyr, percebendo o receio que se desenhava no rosto do servidor, fez-lhe, então, uma oferta intempestiva:
- Emprestarei a você, fiel Skirnir, o meu maior bem: a minha valiosa espada!
"A espada mágica de Freyr...!", pensou o servo, sem poder acreditar. Num instante, os seus receios evaporaram.
- Está bem, eu irei! - disse ele, quase eufórico.
Freyr, no entanto, sentia que acabara de cometer uma terrível imprudência.
"Separar-se de sua espada mágica?", dizia num tom de censura uma voz dentro de si. Ele nunca fizera isto antes, e aquela mesma voz interior parecia lhe dizer que, se o fizesse, nunca mais tornaria a vê-la. Mas, afinal, o seu desejo pela jovem venceu a sua reticência e ele autorizou a partida de seu criado.
- Vá em frente e me traga de qualquer jeito a jovem!
- Deixa comigo! - disse Skirnir, que já se sentia feliz por poder dar início àquela que, sem dúvida, seria a maior de suas aventuras.
Skirnir partiu para sua longa viagem, sentindo-se orgulhoso como um deus. Durante longos dias e noites, cavalgou pelas vastidões dos nove mundos, escutando com infinito deleite a espada retinir de encontro ao estribo, até que a paisagem começou a se tornar verdadeiramente gélida e sombria. Sobre a sua cabeça, massas imensas de nuvens escuras e carrancudas faziam cair alternadamente torrentes de uma chuva gelada ou de uma neve pesada como chumaços compactos de algodão. Com o capuz puxado até o nariz e o vermelho manto enrolado duas vezes sobre si, Skirnir substituiu a cavalgada ágil de seu cavalo por um trote cauteloso ao se aproximar da temível morada dos gigantes.
Após fazer algumas investigações, descobriu que a jovem se chamava Gerda e que morava no castelo de seu pai Gymir. Skirnir dirigiu para lá o seu cavalo, sem nunca, entretanto, descuidar da cautela. Tão logo foi se aproximando, descobriu que motivos para tanto realmente não faltavam, pois o castelo onde a jovem morava estava cercado por um muro feito de labaredas gigantescas.
"E esta, agora...!", pensou Skirnir, puxando as rédeas do cavalo, que escarvava impacientemente a neve, disposto a se arremessar de qualquer jeito sobre o terrível anel de chamas.
- É isto mesmo o que você quer? - disse Skirnir, colando a boca à orelha do cavalo.
O animal, como se tivesse entendido perfeitamente as palavras do cavaleiro, confirmou duas vezes com a cabeça, fazendo com que a neve acumulada em suas crinas se desprendesse numa pequena chuva alva. Logo em seguida fez uma meia volta e retornou num ágil galope. Skirnir afrouxou as rédeas o mais que pôde e agarrado ao pescoço do animal atravessou destemidamente as labaredas. Mas, graças ao galope velocíssimo, ambos chegaram praticamente incólumes do outro lado, apenas com alguns ligeiros chamuscos na crina do cavalo e no manto de Skirnir, tendo agora à sua frente as torres do castelo de Gymir.
Entretanto, sequer tiveram tempo de se recuperar do primeiro desafio, quando viram surgir em sua direcção enormes cães cinzentos, que mais se assemelhavam a gigantescos lobos; suas goelas escancaradas ladravam de maneira ensurdecedora.
A matilha cercou o cavalo de Skirnir e foi, então, que o jovem aventureiro pôde conhecer pela primeira vez as virtudes da espada mágica, pois bastou quede desse o grito de ataque para que ela, sozinha, saltasse da sua bainha prateada e fosse esgrimir contra os ferozes cães. Num instante, estavam todos os animais caídos sob a neve, com seus ventres abertos e palpitantes a fumegar sob o vento gélido da manhã.
É claro que esta algazarra toda acabou por despertar a atenção de Gerda, a filha de Gymir. Correndo até a janela de seu quarto, ela avistou aquele cavaleiro montado no centro de um círculo de cães mortos, cujo sangue tingia o tapete branco da neve.
- O que quer aqui, forasteiro? - disse ela, alarmada. - Fale ou um exército inteiro desabará sobre você!
Um silêncio cortado apenas pelo vento assobiante, que passava por entre os galhos secos das árvores despidas, tornou a situação ainda mais desconfortável.
- O que está esperando? - gritou ela, lá de cima. - Diga, logo, da parte de quem você vem ou desapareça de uma vez!
Skirnir viu apenas a cabeça dourada dela mexer-se lá no alto, por entre os flocos de neve que caíam. Sua voz chegou apenas um pouco depois, entrecortada pelo vento. Mas, ainda assim, ele pôde compreender o sentido de suas palavras.
- Freyr, o nobre deus, deseja lhe fazer um pedido! - gritou Skirnir.
A donzela esteve algum tempo indecisa, mas, finalmente, deu ordem para que abrissem os portões do castelo.
Skirnir adentrou os imensos corredores do palácio de Gymir. Apesar de verdadeiras fogueiras estarem acesas noite e dia nas diversas lareiras do salão principal, observou que, ainda assim, diversos estalactites pendiam, ameaçadoramente, do teto, como transparentes espadas de gelo. Depois de subir os degraus de uma escada que parecia nunca mais acabar, Skirnir viu-se diante da porta do quarto.
- Entre, mensageiro - disse uma voz delicada, muito diferente daquela que escutara aos berros sob o chicote do vento.
Skirnir adentrou a grande peça. Gerda, apesar de estar vestida num elegante manto de peles, parecia, no entanto, tê-lo feito um pouco às pressas, pois uma das pontas da gola estava torcida para dentro. Seus cabelos dourados, verdadeiramente belos e impressionantes, também pareciam algo despenteados e tinham grudados em si alguns flocos ainda endurecidos de neve.
- Por favor, esteja à vontade e diga, logo, que recado traz de seu senhor - disse Gerda, dando as costas a Skirnir e indo se sentar um tanto afastada, num assento comprido e forrado de peles escuras.
- Serei breve, princesa - disse Skirnir, entrando logo no assunto. - Meu senhor quer tê-la como esposa e pede que considere esta possibilidade.
A princesa arregalou seus olhos azuis e deixou escapar um pedaço de voz sem qualquer nexo, senão o de que traduzia o seu espanto.
- Casar-se comigo! - indagou, com um sorriso de estupor. - Meu bom criado, não sei se está ao par do fato de que seu senhor matou meu irmão em uma rixa, há muitos anos.
Skirnir foi pego de surpresa. Um ligeiro tremor sacudiu as suas pestanas, mas ele estava tão distante da princesa que ela, certamente, não deve tê-lo percebido.
- Minha senhora - disse ele, outra vez, completamente seguro de si. - Meu senhor, certamente, há de lamentar esta infausta coincidência, mas observe o fato de que ele jamais o teria feito se, naquela época, já a conhecesse.
A princesa baixou ligeiramente os olhos, como se o argumento a tivesse desarmado.
Skirnir sorriu interiormente do seu primeiro triunfo.
Gerda, por sua vez, sentindo que subterfúgios não dariam resultado, resolveu ser franca e direta, à boa e velha maneira dos gigantes:
- Meu amigo, sirva-se de uma taça de hidromel, que aí está a seu lado, pois a viagem deve ter sido muito cansativa.
Mas, antes que Skirnir pudesse fazer o que ela sugeriu, Gerda arrematou:
- Depois que tiver saciado sua sede, pode retornar ao seu senhor e lhe comunicar a minha negativa.
Skirnir, pego outra vez de surpresa - pois não esperava um enfrentamento tão cedo, - ergueu-se com seus pertences e se dirigiu até a princesa, num passo respeitoso, porém decidido.
- Vem apresentar-me suas despedidas, sem sequer provar da bebida? -disse ela, como que adivinhando que ele tentaria outro expediente.
- Não, adorável princesa, venho mostrar-lhe, apenas, os presentes que meu amo lhe manda.
Sem esperar por outra recusa, Skirnir estendeu à princesa as riquezas, que fariam a inveja de qualquer outra no mundo: seis maçãs escarlates, colhidas dos perfumados jardins de Idun, a deusa da juventude, brilharam diante dos olhos azuis de Gerda. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Skirnir estendeu-lhe lambem Draupnir, o anel mágico de Odin.
Gerda, apesar de realmente impressionada com os presentes, ainda assim, teve firmeza bastante para recusar, categoricamente, qualquer compromisso.
- São belos presentes, admito, mas minha resposta é não. Por favor, não insista com este assunto, não me obrigue a despedi-lo com palavras que fugiriam à cortesia que devo a um visitante.
Skirnir, perdendo de vez a paciência, resolveu mudar de táctica e adoptar outra bem mais agressiva.
- Minha senhora - disse o mensageiro, com o semblante carregado -, a sua impertinência e teimosia obrigam-me a empregar outro expediente.
Skirnir sacou sua espada lentamente e o ruído rascante do metal a deslizar pela bainha de prata ecoou pelas paredes do aposento. Depois, mostrou-a à princesa, com um ar bem diferente do anterior.
- Está vendo esta espada, jovem dama? - disse o mensageiro. - Ela pertence a meu senhor Freyr e não está acostumada a recusas ou desfeitas. Já cortou, posso lhe assegurar, a cabeça de mais de um gigante atrevido.
- Óptimo! - disse a princesa, sem se intimidar. - Esperemos a chegada de meu pai e de seus exércitos para que teste, novamente, o gume de sua espada!
Skirnir, mandando às favas o resto de fidalguia, decidiu fazer uso, então, de seu último argumento - o qual, na verdade, não passava de uma ameaça. Das profundezas de seu manto retirou uma varinha mágica, que Odin lhe dera, repleta de maldições inscritas em caracteres rúnicos.
- Seu eu fizer uso desta varinha, arrogante princesa, seu futuro será tão negro quanto é branca a neve que recobre todos os campos deste país amaldiçoado! - disse Skirnir, avançando para Gerda, que, pela primeira vez, sentiu o medo agitar suas entranhas. - A luxúria percorrerá cada membro de seu corpo, mas homem algum desejará se aproximar de você. Seu fim será a mais negra solidão! A fome corroerá os seus ossos, mas todo alimento que puser na boca, terá o gosto da água do mar. E, de desgraça em desgraça, chegará a se transformar na mais repulsiva das feiticeiras, expulsa até mesmo das regiões sombrias de Hei!
Gerda, intimidada, resolveu, finalmente, ceder à proposta de Freyr.
- Está bem, perverso mensageiro... - disse ela, erguendo os olhos num resto de dignidade. - Diga a seu senhor que me aguarde daqui a nove noites no bosque de Barri.
- Estou feliz ao ver que a razão retorna ao seu convívio, amável princesa - disse Skirnir, sem uma única nota de ironia na voz.
Skirnir despediu-se e já retornava, quando cruzou com uma patrulha adiantada dos gigantes guerreiros de Gymir, que retornavam um pouco à frente do rei. Sem indagar nada, eles foram logo sacando suas espadas e investindo contra o servo de Freyr, o qual ordenou de imediato à sua arma que desse combate aos agressores. A espada cumpriu mais uma vez, brilhantemente, o seu papel. Infelizmente, uma funesta surpresa aguardava o pobre Skirnir, pois, mesmo após terminada a breve escaramuça - na qual pereceram todos os gigantes -, a espada não retornou para a sua bainha. Skirnir, lançando o cavalo em todas as direções chamou por ela durante o resto do dia, porém sem sucesso: a espada de Freyr havia desaparecido para sempre!
- Justos céus! - exclamou o mensageiro. - E, agora, o que será de mim, quando chegar ao palácio de meu senhor sem sua espada?
Durante todo o longo trajeto de retorno, ele teve um peso indescritível na alma.
Quem sabe a espada, cansada de defender alguém que não o seu legítimo dono, resolvera fugir em busca de Freyr, pensava Skirnir, com um fiapo de esperança. Mas quando finalmente chegou em casa para dar as boas novas do noivado, teve a desagradável surpresa de não a encontrar com seu antigo dono.
Felizmente, o mensageiro não levara em conta também o fato de que a alegria que levava era muito superior à tristeza que tinha a esconder, de modo que a reprimenda que teve de escutar de seu amo não foi, afinal, nem a décima parte do que esperava. Freyr preferiu deter-se na condição imposta por Gerda, que lhe parecia mais amarga que qualquer outro infortúnio.
- Uma noite já é bem longa; duas, mais longas ainda. Mas, como poderei suportar nove infinitas noites?
O tempo passou, afinal, e, no dia aprazado, lá estava a bela Gerda a esperar por ele, no campo repleto de trigo, com seus cabelos dourados a se confundir com os delgados talos dos cereais. "Embora, hoje, não haja o vento a esvoaçar seu cabelo, mesmo assim, ouso dizer que está ainda mais bela e delicada do que naquele primeiro dia em que a avistei!", pensou Freyr, ao se aproximar, apaixonadamente, da jovem.
Freyr e Gerda foram muito felizes, embora, em algumas noites, ele tivesse sonhos magníficos com sua poderosa espada, que o tornara um dia invencível. Quando acordava, porém, suas mãos tocavam a pele macia da esposa a dormir, calmamente, ao seu lado. Então, Freyr sentia seu coração povoar-se de um misto de tristeza e alegria.


Ossos do ofício



Uma vez uma besta do Tesouro,
Uma besta fiscal,
Ia de volta para a capital
Carregada de cobre, prata e ouro,
E no caminho
Encontra-se com outra carregada
De cevada
Que ia para o moinho.
Passa-lhe logo adiante
Largo espaço,
Coleando arrogante
E a cada passo
Repicando a choquilha,
Que se ouvia distante.
Mas salta uma quadrilha
De ladrões,
Como leões,
E qual mais presto
Se lhe agarra ao cabresto.
Ela reguinga e dá uma sacada,
Já cuidando
Que dispersava o bando;
Mas, coitada!
Foi tanta a bordoada,
Que exclamava enfim
A besta oficial:
«Nunca imaginei tal!
Tratada assim...
Uma besta real!
Mas aquela, que vinha atrás de mim,
Porque a não tratais mal ?!
– Minha amiga, cá vou no meu sossego:
Tu tens um belo emprego;
Tu sustentas-te a fava, e eu a troços;
Tu lá serves El-Rei, e eu um moleiro;
Eu acarreto grão, e tu dinheiro:
Ossos do ofício... que não há sem ossos!»


Tradução de João de Deus

23/05/2011

O burro que vestiu a pele de um leão


Um burro encontrou uma pele de leão que um caçador tinha deixado largada na floresta. Na mesma hora o burro vestiu a pele e inventou a brincadeira de se esconder numa moita e pular fora sempre que passasse algum animal. Todos fugiam correndo assim que o burro aparecia. O burro estava gostando tanto de ver a bicharada fugir dele correndo que começou a se sentir o rei leão em pessoa e não conseguiu segurar um belo zurro de satisfação. Ouvindo aquilo, uma raposa que ia fugindo com os outros parou, virou-se e se aproximou do burro rindo:
- Se você tivesse ficado quieto, talvez eu também tivesse levado um susto. Mas aquele zurro bobo estragou sua brincadeira!


Moral: Um tolo pode enganar os outros com o traje e a aparência,
mas suas palavras logo irão mostrar quem ele é de facto.


Fábulas de Esopo

18/05/2011

O leão às riscas



Contam esta história em África, à volta da fogueira.
Façam de conta que também lá estamos a ouvir o contador desfiar a história, enquanto tange o corá, que é um especial instrumento de cordas esticadas sobre uma caixa de ressonância, feita de meia cabaça revestida de couro. Plim... Plam... Plim... Conseguem ouvir?
Dantes, muito antes de os homens se terem espalhado pela Terra, os bichos não eram como são hoje. Por exemplo: a zebra tinha a pele igual à que o leão tem e o leão, imaginem a excentricidade, tinha a pele às riscas como tem a zebra. Devia ficar-lhe bem...
A zebra que, nessa época, passava por amiga do leão, disse-lhe, um dia:
- Estive a pensar que devias mudar de aspecto. Assim, com essa pele tão vistosa, chamas demasiadamente a atenção e deves ter dificuldade em esconder-te, quando queres caçar de surpresa.
O leão reconheceu que, efectivamente, já sofrera alguns desaires na caça à conta da sua bizarra pele às riscas.
- Queres trocar pela minha? - propôs a zebra.
Ela, sem riscas, parecia-se mais com um burro, o que não era nada lisonjeiro para a vaidade da zebra. No fundo, ela invejava a pele listada do leão.
Acertado o negócio, trocaram de pele. Naquele tempo, tudo era fácil.
Vendo-se vestida de riscado, como tanto ambicionara, a zebra foi ter com a restante bicharia, a avisar, a torto e a direito:
- Cuidado que, agora, o leão é que anda com a minha pele.
O leão não gostou. Aquela badalação era prejudicial aos seus intentos e aos seus pergaminhos de majestade. De modo que, desde essa altura, que ele anda a exigir à zebra a devolução da pele.
Onde quer que veja uma a jeito, salta-lhe para os lombos e tenta com as garras arrancar-lhe a pele. Até agora ainda não conseguiu recuperá-la, o que é pena. Quem é que não gostava de ver um leão às riscas?


António Torrado

Lenda da Estranha Visita

Embora não se passe em Portugal, esta lenda vive arreigada no espírito do nosso povo. A bem dizer, foi ele que a criou. De modo que tem o seu justo lugar entre as lendas de Portugal.

Lê-se no Novo Testamento, no Evangelho de N. S. Jesus Cristo, segundo São Mateus:
«Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. «Onde está o rei dos Judeus que acaba de nascer? — perguntavam. — Pois vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.» Ao ouvir tal notícia o rei Herodes perturbou-se e toda a Jerusalém com ele. E reunindo todos os sumos sacerdotes e escribas do povo, perguntou-lhes onde devia nascer o Messias. Eles responderam: «Em Belém da Judeia, pois assim está escrito pelo profeta: “E tu Belém, terra de Judá, de nenhum modo és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que apascentará o meu povo de Israel.”»
«Então, Herodes mandou chamar secretamente os magos e pediu-lhes informações exactas sobre a data em que a estrela lhes havia aparecido. E enviando-os a Belém disse-lhes: “Ide e informai-vos cuidadosamente acerca do Menino e, depois de O encontrardes, vinde comunicar-mo, para que também eu vá adorá-Lo.” Após as palavras do rei, puseram-se a caminho e a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que, chegando ao lugar onde estava o Menino, parou. Ao ver a estrela sentiram grande alegria e, entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se O adoraram e, abrindo os seus tesouros, ofereceram-Lhe presentes: ouro, incenso e mirra. Avisados em sonho a não voltarem para junto de Herodes, regressaram à sua terra a por outro caminho.»

A noite caíra, serena. Céu azul-escuro, coalhado de estrelas cintilantes. Noite fria, apesar de o vento estar ausente.
Dentro do pobre casebre onde o Deus Menino nascera, estavam apenas José e Maria junto do pequeno Jesus. Os reis magos haviam saído de lá quando ainda a luz do dia beijava a pobre cabana. Agora, porém, estavam sós. Sós e cansados. As visitas haviam sido muitas. Necessitavam dormir. O Menino fechara os olhitos. Sorria levemente, como em sonhos. Iam apagar a candeia quando, de súbito, mais alguém bateu à porta. José e Maria entreolharam-se, quase assustados. Quem poderia ser a horas tão altas? As batidas repetiram-se. José levantou-se da enxerga e perguntou:
— Quem bate?
Ninguém respondeu. Apenas o Menino choramingou, o que fez Maria debruçar-se sobre Ele, acariciando-O. Mas Ele parecia inquieto. José abriu a porta. Aproximou a candeia. Então ficou perplexo. Uma velha, muito velha, como que carcomida pelo tempo, olhava José com um olhar brilhante — como se tivesse apenas vinte anos.
José perguntou:
— Que quereis?
A velha não respondeu.
José tornou:
— Vindes de muito longe e quereis descansar?
De novo ficou sem resposta. Mas a estranha visita já não reparava em José. Olhava o Menino deitado nas palhinhas. Olhava-O numa expressão de amor e angústia, ao mesmo tempo.
José perguntou ainda.
— Quem sois?
A velha entrou devagar, de joelhos em terra, quase rastejando. Aproximou-se do Menino. Tinha lágrimas nos olhos e não O desfitava.
Maria, que a observava em silêncio, perguntou então, indicando Jesus:
— Vindes vê-Lo, também?
Parecia não os escutar, a estranha visita. José insistiu.
— Estais cansada. Descansai um pouco. Talvez queirais comer alguma coisa...
Só os olhos tinham vida, naquele rosto quase mumificado. E os olhos falavam silenciosamente com o Deus Menino, que lhe sorria, complacente.
Calaram-se, também, Maria e José. Havia algo de dramático naquela muda adoração. E o Menino não dormia. Parecia até compreender aquela voz interior. Às vezes, a estranha visita curvava mais a cabeça. E as lágrimas inundavam as suas mãos gastas pelo rodar dos anos. Quando isso acontecia, o Menino deixava de sorrir. E uma expressão triste toldava o Seu infantil semblante. Depois, a estranha visita olhava-O de novo, mais calma, e o Menino voltava a sorrir.
Assim foram decorrendo as horas, pela noite sem lua. E nem uma palavra voltou a ser pronunciada dentro da cabana onde Jesus havia nascido. Porém, quando a manhã chegou, quando os primeiros raios de Sol passaram através das frestas e da porta, agora entreaberta, a velha rompeu a soluçar, dolorosamente. As lágrimas já não caíam nas suas mãos trémulas, mas nos pezinhos do Menino.
Vendo-a nesse estado de desolação, Maria apiedou-se. Aproximou-se da velha. Tocou-lhe num ombro. Ela, porém, fugiu ao seu contacto, como se fosse doente e não a quisesse contagiar. José quis ajudar Maria e perguntou:
— Mulher, porque chorais assim? Dizei-nos porquê e talvez possamos ajudar-vos.
Como resposta, a estranha visita depositou algo aos pés do Menino, e saiu de costas, rosto quase em terra, rastejando...
José foi até à porta, mas no caminho a velha sumira-se, como se o vento — que não soprava — a tivesse levado. Então, José ouviu Maria chamar por ele:
— José! Anda ver o que a estranha visita deixou ao Menino!
José olhou. Os seus olhos piscaram, como se não acreditassem no que viam. E exclamou:
— Uma maçã!
Maria anuiu:
— Sim, uma maçã! E chorava, a pobre! Chorava arrependida!... Que pensas?
José volveu a olhar Maria:
— Penso que ela era...
Não terminou a frase. Maria concordou.
— Era ela, decerto! Veio também adorar o Menino… e pedir-Lhe perdão...
Olharam ambos o berço improvisado. O Menino sorria. Sorria como a dizer-lhes que tinham identificado a estranha visita.
O Sol brincou com os caracóis do Seu cabelo. Esperneou o Menino, contente desse contacto. Sorria, feliz.
A seu lado Maria e José olhavam essa maçã que o Sol agora doirava, sem se atreverem a tocar-lhe...

Assim se perpetuou, através dos tempos, a ideia de que a estranha visita teria sido a própria Mãe Eva, minada de remorsos — símbolo vivo das consciências atormentadas que depõem o peso e o fruto da sua culpa aos pés divinos de Jesus.

Recolha de Gentil Marques