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31/05/2009

O lobo, a cabra e o cabrito



A provida cabra, saindo de casa,
Em busca de pasto,
A encher o seu ubre que, à tarde, trazia
Pesado e de rasto;

Dizia ao cabrito, correndo a lingüeta:
"Se alguém cá vier,
Só deves abrir-lhe, se acaso esta senha,
Filhinho, te der:

— Má peste de cabo do lobo e lhe extinga
A pérfida raça!
Verás suceder-te, se não me atenderes,
Terrível desgraça".

Ouviu-lhe as palavras um lobo, que em frente
Da casa passou;
E logo no arquivo da pronta memória
Fiel as guardou.

Não vista da cabra, que logo se ausenta,
A fera voraz,
À porta dizendo metade da senha,
A voz contrafaz.

Suspeita o cabrito, e o luzio aplicado
Da porta na fenda:
"Só abro (responde) a quem alva pata
Por baixo me estenda".

Sabeis que tais patas nas rodas dos lobos
Estão em desuso.
Burlando o tratante, voltou como veio,
Corrido e confuso.

Ai! Pobre cabrito, se à senha atendesse,
Que o lobo lhe deu!
Dobrai de cautela; por mui precavido
Ninguém se perdeu.

Barão de Paranapiacaba (Trad.)

29/05/2009

A Lenda da Boca do Inferno



Pergunto-me se não conheceremos todos, pelo menos de nome, a Boca do Inferno, ali a Cascais, e quase certa de me não enganar posso dizer que ninguém a desconhece. Quanto à lenda ligada aos seus rochedos e redemoinhos, creio que também não me engano se disser que essa nem todos a conhecemos.
A memória dos homens é curta e por isso não sei já há quanto tempo se passou esta história. O que interessa, realmente, é que se passou tudo há longo tempo.
Nesse tempo esquecido existia por ali um enorme castelo, paço habitado por um homem de aspecto feroz e satânico que, nas horas da sua actividade, cultivavam a arte da feitiçaria.
Um dia, esse homem decidiu casar-se, e para escolher a mais bela mulher das redondezas consultou a sua lâmina de cristal de rocha para identificar o local e a casa onde deveria mandar buscá-la. Quando viu a mulher que os seus cavaleiros trouxeram, ficou estupefacto.
Era estupefactamente mais bela do que imaginara ao vê-la sugerida na lâmina das adivinhações. Diz-se que lhe deu uma fúria de ciúmes e tratou de a esconder da cobiça alheia para preservar o seu amor, mas penso que a escondeu do mundo para se proteger a si mesmo, que não a soubera cativar.
Encarcerou a mulher numa torre inexpugnável e solitária, e guardou-a como se guardam aquelas coisas que ao mesmo tempo se amam e detestam, ou temem. Escolheu-lhe para guardião o mais fiel dos seus cavaleiros, exactamente o homem que nunca a vira, para que mais cegamente a guardasse.
Frente ao mar o tempo passava, cronometrados os dias pelas marés, as semanas pela sucessão dos dias e das noites, os meses pela lua. Tão só se sentia o guardião como a cativa do seu senhor. O horizonte de ambos era o mar eternamente sempre outro e o mesmo. A música que a ambos chegava era a dos seus pensamentos, a do marulhar revolto ou terno das ondas, o sibilo do vento por entre as rochas. Assim passava o tempo e não passava, porque o tempo para ser tempo tem de se referenciar à vida, e ali não se passava nada que fosse vivo.
Até que, um dia, o ócio provocou no cavaleiro uma curiosidade inadiável. Insensivelmente, deu por si a pensar que mulher era aquela que merecia tão triste reclusão. Pouco depois, encontrou-se a desejar abrir a porta da torre para ver ao menos o rosto da mulher que guardava. Por fim, achou-se frente à porta de chave na mão.
Meteu-a na fechadura e rodou. A porta rangeu de ferrugem quando o cavaleiro se apoiou nela lentamente. E enquanto subia a escada de caracol que levava à câmara da cativa, talvez mil pensamentos se lhe entrecruzassem silenciosamente no cérebro: o que iria encontrar? Seria bonita ou horrorosa? Se calhar era aleijada! Muda ou doente! E se estivesse morta? Não, na realidade enquanto subia as escadas não pensou nada. Estava apenas expectante e quem vive expectativas não se pergunta nada, ainda que na sua espera hajam inscritas todas as interrogações do mundo.
Frente à porta da câmara da sua cativa, o cavaleiro parou para acalmar o coração e tomar coragem. Quando conseguiu dominar a tremura das pernas e das mãos, empurrou a porta. O sol, que entrava por uma das ogivas da torre, bateu-lhe nos olhos e cegou-o por momentos. Pouco a pouco, retomou a visão e a névoa foi-se dissipando até o deixar frente à mulher que a sua expectativa não pudera imaginar.
Semi-voltada, a cativa da torre, tão espantada quanto o guardião, olhou-o interrogativa, esperando a palavra que não veio, acabando por perguntar:
- Quem és tu, cavaleiro? Porque vens perturbar-me a solidão?
E o homem, quando achou de novo a sua voz, respondeu finalmente:
- Sou o vosso guardião, senhora! –e baixinho disse para si mesmo: «Agora o compreendo a ele…»
- O meu guardião! Guardião de quê? Desta solidão sem nome e sem razão? Vê, vê como se consomem os meus dias, sem prazer, sem ilusão!... ao menos tu…
- Eu , senhora? Eu estou ali em baixo tão só como vós, e a guardar o quê, para quê?! Mas a partir de hoje talvez possamos partilhar as nossas horas perdidas neste ermo. Tudo o que quiserdes, senhora, ordenai! Levar-vos-ei onde pedirdes!...
Diz a lenda que assim nasceu um louco amor assente sobre a cumplicidade dos segredos e das solidões. Os dias nunca mais foram lentos, o tempo fugiu à desfilada e instalou-se eterno e instante.
Um dia olharam-se, cativa e guardião, e perguntaram-se o que faziam ali. Porque estou eu prisioneira? De que sou eu guardião? Acharam aquela torre uma masmorra absurda. Que guarda um guardião sem chave? Como se sentir prisioneiro de uma prisão aberta?
Partiram.
Esqueceram tudo e esqueceram também o castelão feiticeiro que tudo sabia. Numa noite de luar montaram ambos o cavalo branco do cavaleiro e cavalgaram a toda a brida sobre os rochedos fronteiros ao mar.
No paço, o feiticeiro, louco de ciúmes e de raiva incontrolada, transformou a noite numa concentração de todas as tempestades e malefícios do mundo.
Sob as patas do cavalo abriram-se os rochedos negros de par em par, como se ali fosse uma das entradas do inferno. Cavalo e cavaleiros despenharam-se no abismo redemoinhante e foram engolidos pela boca do mar.
Assim que os dois amantes solitários desapareceram no redemoinhar infernal, acalmou a tempestade e o mar voltou a ficar manso como se nunca tivesse estado diferente. O buraco nos rochedos, porém, nunca mais fechou, como se a ferida da natureza quisesse perpetuar esta história. E talvez assim fosse, já que muitas vezes volta o vento e retoma a fúria do mar, tal como no dia em que morreram a cativa e o guardião da torre.

Por isto mesmo, e porque o povo da região nunca esqueceu a história, se chama àquele local de mistério Boca do Inferno.