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21/07/2008

A Terceira Viagem de Sinbad O Marinheiro


Pouco a pouco fui invadido pelo enfado diante da monótona ociosidade em que vivia em Bagdad. Minha alma ansiava pela movimentação e as novidades das viagens e pelo lucro do comércio. A ambição é a mãe de todas as desgraças. Mas só o aprendemos ao custo elevado da experiência. Comprei uma grande quantidade de mercadorias de valor, levei-as até Basra e embarquei no primeiro navio, com muitos outros de meus amigos e colegas. Passamos de porto em porto, vendendo e comprando com lucros elevados. Um dia, quando navegávamos em pleno oceano, vimos nosso capitão, que estava perscrutando o horizonte, bater de repente no rosto, arrancar os pêlos da barba, rasgar a farda e gritar: "Ventos adversos desviaram-nos de nossa rota e estão-nos empurrando para um mar sinistro e uma ilha de onde ninguém jamais voltou com vida. Estamos irremediavelmente perdidos." Enquanto o capitão falava, vimos nosso navio ser invadido por um exército de seres estranhos, mais numerosos que uma praga de gafanhotos. Eram hirsutos, como macacos, porém mais feios, com faces pretas, olhos amarelados e corpos de anões. Suas caretas e gritos aterrorizaram-nos. Parecia que estavam amaldiçoando e ameaçando-nos, mas falavam uma língua que não conhecíamos. Enquanto permanecíamos imobilizados pelo medo, eles tomaram posse do leme e escalaram os mastros. Desfraldaram as velas, cortando as cordas com os dentes. Dirigido por eles e empurrado pelo ventos, nosso navio encalhou na praia. Os macacos apanharam-nos então um por um e nos depositaram em terra firme. Deixando-nos lá, voltaram ao navio, que conseguiram repor a flutuar, e desapareceram com ele.
Abandonados e desamparados, avançamos para o interior da ilha onde descobrimos fontes de água doce e árvores frutíferas. Pelo menos, pensamos, poderemos nos manter vivos por algum tempo.
Em seguida, percebemos entre as árvores uma grande construção que parecia abandonada. Fomos até ela e entramos. O interior era composto de uma sala imensa onde os únicos móveis eram utensílios de cozinha estranhos e espetos de assar carne de comprimento incomum. O chão estava coberto de ossos, uns já secos, outros ainda frescos. Um cheiro nauseabundo invadiu-nos as narinas. Mas como estávamos exaustos, deixamo-nos cair por cima dos ossos e dormimos.Mal o sol se tinha posto, quando um barulho parecido com um trovão nos acordou, e vimos a figura de um gigante descer através do tecto. Era mais alto que uma palmeira e mais feio que todos os macacos juntos. Seus olhos vermelhos brilhavam como dois tições ardentes. Tinha dentes longos e pontudos como os de um javali; a boca tinha as dimensões de uma abertura de poço; as orelhas desciam até os ombros como as de um elefante; e as unhas eram recurvas como garras de leão. Trememos de terror, depois ficamos paralisados. O gigante sentou-se num banco e pôs-se a nos examinar um a um em silêncio. Depois, veio até mim, agarrou-me pela pele da nuca e apalpou-me todo como um açougueiro examina um carneiro. Não me achando a seu gosto, emagrecido como estava pelas viagens e o cansaço, atirou-me ao chão e apanhou meu vizinho, avaliando-o como fizera comigo e acabando por rejeita-lo também. Procedeu assim com todos até chegar ao capitão, que era gordo e carnudo e mais alto que qualquer um de nós. Tomou-o entre os dedos, deitou-o no chão e com um só movimento do pé quebrou-lhe o pescoço, fendeu-o em dois da boca ao ânus, enfiou cada parte num dos espetos enormes que estavam lá, acendeu o forno e pôs-se a virar e revirar o corpo do capitão até que ficou satisfatoriamente assado. Retirou-o então do fogo e dividiu-o em pedaços como se faz com uma galinha e devorou-o num fechar e abrir dos olhos. Depois, chupou os ossos e atirou-os ao chão. Satisfeito, estirou-se num banco e, breve, estava roncando como um búfalo. Dormiu até o levantar do sol e, então, foi embora como tinha vindo, deixando-nos meio mortos de ansiedade. Saímos daquele edifício e vagueamos pela ilha em busca de alguma gruta ou outro esconderijo. Mas nada conseguimos, pois a ilha era plana e árida. Ao cair da noite, pensamos que o menor dos males ainda era retornar à morada do gigante. Mal havíamos entrado, quando o gigante preto anunciou sua chegada com um barulho que parecia um trovão. Da mesma forma que na noite anterior, escolheu um de nós, assou-o e devorou-o. E roncou de novo como um animal até de manhã. Assim que foi embora deliberamos afogar-nos no mar antes de sermos devorados daquela maneira horrível. Mas, objectaram alguns: "Por que não tentar matar o monstro em vez de nos matarmos a nós mesmos?" Acrescentei: "E por que não construir uma jangada com os paus de que a praia está cheia para fugir desta ilha assim que o tivermos matado? Iremos para outra ilha onde a clemência de Alá talvez nos envie um navio que nos transporte de volta a nosso país. Se naufragarmos e perecermos, nossa morte será um martírio que contará a nosso favor no Último Dia." Todos concordaram. Construímos a jangada, colocamos nela frutos e ervas comestíveis e voltamos à morada do monstro. E assistimos mais uma vez à morte bárbara de um de nossos companheiros. Mas assim que o monstro adormeceu e começou a roncar, apanhamos dois dos enormes espetos de ferro, aquecemo-los no fogo até que se tornaram rubros e, apanhando-os pelo lado frio, enfia-mo-los com força nos olhos do gigante. Emitiu um grito pavoroso e, levantando-se, procurou localizar-nos e pegar-nos com as mãos estendidas, mas conseguimos facilmente nos desviar e evitá-lo.
desesperado, dirigiu-se para a porta às apalpadelas e saiu, dando berros de dor. Persuadidos de que o ogro morreria de seus ferimentos, corremos com alegria até a praia e embarcamos na jangada rumo ao alto mar, quando o vimos correndo em nossa direcção, guiado por uma mulher de sua espécie e ainda mais horrorosa que ele. Não podendo nos atingir, puseram-se a apedrejar-nos. Muitas pedras acertaram, e todos meus companheiros, menos dois, foram afogados. Nós, os três sobreviventes, conseguimos remar para fora do seu alcance. No alto mar, os ventos jogaram-se contra nós durante dois dias e duas noites e, depois, empurraram-nos para uma ilha. Lá encontramos frutas que nos permitiram continuar a sobreviver e, à noite, trepamos numa árvore e dormimos. Quando abrimos os olhos pela manhã, a primeira coisa que vimos foi uma cobra enorme, tão grossa quanto o tronco da árvore onde estávamos. Aproximou-se de nós com olhos flamejantes e uma boca aberta do tamanho de um forno. Abocanhou um de meus companheiros e engoliu-o. Ouvimos os ossos do infeliz estalar no ventre da serpente. Depois, satisfeita, desceu da árvore e foi embora. Gememos: "Por Alá, cada nova modalidade de morrer é mais detestável que a anterior. Não há salvação senão em Alá." Embora meio tontos de medo, descemos da árvore e, percorrendo a ilha, conseguimos água doce e frutas para nos manter vivos. E encontramos uma árvore tão alta que parecia fora do alcance de qualquer réptil. Ao cair da noite trepamos até o cume e procuramos dormir. Mas de repente, ouvimos um silvo monstruoso e o ruído de ramos quebrados. Antes que pudéssemos esboçar um movimento, a cobra tinha apanhado meu companheiro que estava sentado um pouco abaixo de mim. Ouvi outra vez o sinistro estalar de ossos quebrados. Fiquei imóvel no alto da árvore até de manhã, e só então tive a coragem de descer. Pensei em me jogar no mar e acabar com uma vida exposta e todo momento a perigos tão medonhos. Mas o espírito humano é soberbo. Resolvi, antes, me defender contra a cobra, elevando tábuas em volta de mim como um refúgio e fixando-as no chão. À noite, a cobra voltou e fez mil tentativas de chegar até mim através das tábuas; mas não o conseguiu. Pela manhã fui à praia e, sem crer nos meus olhos, avistei ao longe um navio com todas as velas desfraldadas. Ao vê-lo, desatei a gesticular e gritar, feito louco. Desenrolei o pano de meu turbante, amarrei-o a um galho de árvore, ergui-o tanto quanto pude e pus-me a agitá-lo, pedindo socorro. O destino quis que meu desespero não passasse despercebido. O navio virou de bordo e dirigiu-se para minha ilha, e breve o capitão e seus homens me recolheram. Deram-me roupa para cobrir a nudez e comida, que engoli com voracidade. E bebi água com um alívio que nunca conhecera na vida. Pouco a pouco, meu coração acalmou-se, e o repouso invadiu meu corpo como um bálsamo. Satisfiz então a curiosidade de todos, contando minha história. Fizemos uma excelente viagem até a ilha de Salahita, onde lançamos a âncora. Os mercadores desembarcaram para cuidar de seus negócios. Fui o único a permanecer a bordo, não tendo mercadorias para vender ou trocar. O capitão aproximou-se de mim e disse: "És pobre e estrangeiro e acabas de passar por grandes provações. Por isso, ajudar-te-ei a recompor a tua vida, esperando que me agradeças, invocando sobre mim as bênçãos de Alá. Fica sabendo que, anos atrás, havia connosco um viajante que esquecemos numa ilha. Nunca mais tivemos notícias dele, e não sabemos se está vivo ou morto. Suas mercadorias continuam guardadas connosco. Minha intenção é entregá-las a ti. Vende-as, fica com uma comissão e entrega-me o preço apurado para que o encaminhe à família do infeliz, em Bagdad." Agradeci ao capitão, e ele chamou um ajudante e mandou-o retirar do depósito as mercadorias guardadas sob o nome de Sinbad o Marinheiro. Gritei com espanto: "Mas eu sou Sinbad o Marinheiro!" Então, fixando o capitão, reconheci-o como o homem que me tinha esquecido quando dormi naquela ilha no começo de minha segunda viagem. Tremendo de emoção, perguntei-lhe: "Não me reconheces?" E lembrei-lhe as peripécias daquela viagem. Enquanto falava, um dos mercadores, voltando para o navio, olhou-me atentamente e me reconheceu. O capitão acabou por se lembrar também de mim. Tomou-me nos braços como se fosse um irmão e felicitou-me por estar ainda vivo. Depois, mandou entregar-me as minhas mercadorias, que vendi com um lucro enorme. Deixamos a ilha de Salahita e atravessamos mares desconhecidos, onde vi tantos prodígios que enumerá-los todos seria impossível. Vi, por exemplo, um peixe que parecia uma vaca e outro que parecia um asno.
Finalmente, chegamos a Basra com a permissão de Alá, e naveguei pelo rio até Bagdad. Fui à minha rua e à minha casa, onde senti a felicidade de estar rodeado por parentes e amigos. Distribuí presentes a todos e ajudei os órfãos e as viúvas, pois voltava desta viagem bem mais rico do que da viagem anterior.


Sinbad1