( 391x375 , 253kb)


31/07/2008

A Quarta Viagem de Sinbad O Marinheiro


As delícias da vida de Bagdad não me fizeram esquecer as viagens; e minha alma perdida não se detinha nos sofrimentos e perigos pelos quais havia passado nessas viagens, mais apenas nos belos descobrimentos e nas horas felizes. No fim, não consegui mais resistir às suas induções. Vendi minha casa e demais propriedades, comprei mercadorias e fui a Basra. Lá embarquei num grande navio em companhia de alguns dos mais conhecidos mercadores da cidade. Passamos de mar em mar e de ilha em ilha, vendendo e comprando com grandes lucros quando, um dia, estando em pleno oceano, ouvimos o capitão gritar de repente: "Lançai a âncora! Estamos perdidos!" Um temporal violento agitou o mar em volta de nós, batendo no navio e desmantelando-o. Fomos todos arrastados pelas ondas, inclusive o próprio capitão e os marinheiros. Pela graça de Alá, consegui agarrar-me, com alguns outros, a uma tábua do barco e, após esforços desesperados, fomos jogados na praia de uma ilha, mais mortos que vivos. Exaustos, passamos a noite deitados sobre a areia. Pela manhã, conseguimos levantar-nos e avançar para o interior. Lá avistamos uma habitação no meio de um bosque, e vimos uma multidão de pretos nus saírem daquela casa e, sem dizer uma palavra, cercar-nos e conduzir-nos a um salão onde um rei estava sentado num trono. O rei mandou-nos sentar e fez-nos servir uma variedade de carnes desconhecidas para nós. O aspecto dos pratos não me apeteceu, e abstive-me de comer enquanto meus companheiros,esfomeados, devoravam as iguarias. Mais ainda, os negros começaram a esfregar nossos corpos com uma pomada cujo efeito, ao que descobri, era dilatar o corpo e aumentar o apetite. Consegui desviar-me habilmente e evitar a pomada. Mas meus companheiros deixaram-se esfregar e ficavam cada vez mais gordos; e quanto mais gordos ficavam, mais comida engoliam. Logo depois, descobri o objectivo que movia esses negros. Eles se alimentam de carne humana crua e usam a pomada para tornar suas vítimas mais gordas e mais suculentas. Seu rei, um ogro, um Ghul, prefere carne grelhada e devora um prisioneiro por dia. Assim, ao recusar as carnes e desviar-me da massagem, tinha praticamente salvo minha vida sem saber. Pois a fome e o medo deixaram-me a sombra do que era: pele e ossos. Vendo-me assim, os nativos desprezaram-me, julgando que era impróprio para suas refeições. Quanto a meus companheiros, à medida que seu peso aumentava, sua inteligência diminuía. Num determinado ponto, tornavam-se bestiais, verdadeiros animais de matadouro. Todos os dias, um guarda os levava a pastar no prado. Aproveitei o pouco caso que se fazia de mim para fugir um dia da casa onde morávamos. Errei pela ilha durante seis dias e seis noites, escondendo-me na grama ao menor sinal de perigo e me alimentando de raízes e folhas verdes. Na manhã do sétimo dia, cheguei à outra extremidade da ilha. Lá vi homens brancos, vestidos como nós, ocupados a colher grãos de pimenta nas árvores. Rodearam-me, e falaram comigo na minha língua, o árabe. Contei-lhes a minha história. Ficaram espantados de que eu tivesse podido salvar-me dos devoradores de carne humana. Deram-me de comer e beber; depois, levaram-me a seu rei, que residia numa ilha vizinha. Nessa ilha, densamente povoada, vi numerosos cavaleiros montados em esplêndidos cavalos, porém sem sela nem estribos. Descrevi esses objectos de conforto ao rei. Disse-me que nunca ouvira falar neles. Propus fazer uma sela para que ele a experimentasse. Aceitou, e quando experimentou a sela, ficou tão satisfeito que me cobriu de presentes e honrarias. O vizir e todos os dignitários do rei também quiseram selas. Com os presentes recebidos, tornei-me o homem mais rico da cidade. Para me conservar perto dele, o rei casou-me com uma rapariga de alta linhagem, rica e bela. Ao mesmo tempo, presenteou-me com um palácio inteiramente mobiliado e com escravos dos dois sexos e tudo mais. Vivi lá em perfeito conforto, embora sonhasse secretamente em voltar um dia para Bagdad. Quando, porém, um acontecimento está predeterminado pelo destino, ninguém pode desviá-lo. Nossos projectos e nossa vontade são jogos infantis diante dos decretos da fatalidade. Um dia, a esposa de meu vizinho morreu. E descobri com horror que, naquela ilha, uma tradição imperiosa determinava que, em caso da morte de um cônjuge, o sobrevivente fosse sepultado vivo com o defunto. Apavorado, visitei o rei para saber se, eventualmente, o costume se aplicaria a mim, já que eu era um estrangeiro. "Sem dúvida, respondeu o rei. A lei se aplica a todos, mesmo ao rei." Passei a viver na infelicidade, apesar de verificar todos os dias que minha mulher gozava.de perfeita saúde. Considerava que ser enterrado vivo não era menos horrível que ser devorado por canibais. E, de repente, um dia, aconteceu o que devia acontecer. Inesperadamente, minha mulher adoeceu e faleceu. Vi me diante do inevitável, quando o rei me visitou e disse-me que eu era tão estimado e querido que ele próprio e toda a corte assistiriam a meu enterro. De fato, andaram ao meu lado quando chefiei a procissão fúnebre atrás do ataúde que continha o corpo de minha mulher, coberto de jóias e ornamentos. Na hora do sepultamento, procurei comover o coração do rei, chorando e repetindo: "Eu sou um estrangeiro e não é justo que seja submetido a vossas leis." Ninguém se importou com minhas súplicas e argumentos. Passaram as cordas por baixo de meus braços e amarraram às minhas costas o jarro de água e os sete pães que tradicionalmente são o último presente dos parentes e amigos ao cônjuge que vão enterrar vivo. Baixaram-me à sepultura com o ataúde de minha mulher, fecharam a entrada e foram embora. A pestilência do subterrâneo obrigou-me a tapar o nariz, mas aproveitei um resto de luz para inspeccionar aquele jazigo repleto de cadáveres antigos e recentes. Embora lamentasse minha sorte e me censurasse por ter empreendido essa viagem e me ter casado numa terra exótica, estava decidido a não me deixar morrer passivamente. Sentindo sede e fome, aproveitei com parcimónia as pequenas provisões que tinha, pensando no futuro. Vivi assim vários dias, habituando-me gradativamente ao cheiro nauseabundo daquela caverna cheia de ossadas. Chegou um dia em que não tinha mais nem água nem pão. Recitei as preces e encomendei minha alma a Alá quando a tampa do buraco foi removida e vi descer o ataúde de um homem morto e uma mulher viva, provida da jarra de água e dos sete pães. Esperei que tivessem fechado o buraco e, armado de um grande osso, aproximei-me silenciosamente da mulher, dei-lhe três golpes mortais a apoderei-me da sua provisão. Quando essa nova provisão estava esgotada, o destino mandou uma mulher morta e um marido vivo. Matei o homem e fiquei com a água e os pães. E vivi assim por muito tempo. Certo dia, acordei com um ruído estranho. Peguei num osso e segui uma sombra que se movia. De repente, vi algo que me pareceu um raio de luz, por onde a sombra escapou. Sem crer no que via, dei-me conta de que estava diante de um buraco cavado por animais selvagens, atraídos pelos cadáveres lá acumulados. Segui as pegadas desses animais e achei-me de súbito ao ar livre, sob o firmamento. Caí de joelhos e agradeci a generosidade do Altíssimo. Examinei o terreno e achei-me ao pé de uma montanha à beira-mar, uma montanha tão escarpada que não tinha comunicação com a cidade. Decidi esperar ali alguma outra oportunidade enviada por Alá. Entrava pelo buraco na caverna para matar os novos hóspedes e apoderar-me de suas provisões. Breve, com a expectativa da salvação, apoderei-me também das jóias, diamantes, braceletes, colares, pérolas, rubis, adornos de ouro e prata que os mortos levavam para a outra vida. Acumulei assim uma fortuna incalculável. Certa manhã, vi passar um navio muito perto do monte. Ergui-me às pressas e pus-me a fazer gestos largos, a correr na praia e soltar brados e gritos. A tripulação do navio acabou por ver meus sinais e enviou um barco em meu socorro.
Levaram-me com minha bagagem. A bordo, o capitão perguntou-me: "Quem és tu e como conseguiste alcançar aquele monte? Desde que navego por estas paragens, nunca avistei lá se;não animais ferozes e aves de rapina. Jamais um ser humano." Contei-lhe minha história. E ele aceitou levar-me de volta a meu país. Navegamos sem novidade durante dias e dias de ilha em ilha e de mar em mar. Eu ia recordando minhas aventuras e perguntando a mim mesmo se eram fatos ou sonhos. Enfim, pelo poder de Alá Todo Poderoso, chegamos a Basra e, dias depois, a Bagdad. Minha família e meus amigos festejaram meu regresso. E eu, carregado de tesouros, cumulei a todos com presentes, sem esquecer os pobres, as viúvas e os órfãos.
E jurei nunca mais desafiar o mar.