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23/10/2010

O prédio harmonioso



Tenho um vizinho que toca violino, e que bem que toca violino o meu vizinho. Mora no 1.º esquerdo.
Tenho outro vizinho que toca violoncelo, e que bem que toca violoncelo o meu vizinho. Mora no 2.º direito.
Tenho outro vizinho que toca piano, e que bem que toca piano o meu vizinho. Mora no 1.º direito.
Tenho outro vizinho que toca viola clássica, e que bem que toca viola o meu vizinho. Mora no 2.º esquerdo.
No rés-do-chão há uma loja de instrumentos musicais. A loja, durante o dia, está sempre cheia de música, porque nela vendem pianos, acordeons, violinos, violas, guitarras... eu sei lá que mais. Vendem e consertam. À noite, claro está, a loja descansa, mas os meus vizinhos encarregam-se da música do prédio, que fica só por conta deles.
Não tem mais andares o nosso prédio. É o rés-do-chão, o primeiro e o segundo. Então onde é que mora quem isto conta?
Onde é que eu moro, querem saber? Moro na escada, num canto escondido, e não me canso de ouvir música.
Quando oiço os meus vizinhos tocar, digo-lhes, em surdina, em segredo, como se eles pudessem ouvir: ?Certinhos! Certinhos! Muito certinhos!". É um prédio muito harmonioso.
Pelo meu lado, faço o que posso. Também toco, pois claro. Toco harpa. Sou a aranha da escada e toco harpa, quando os meus vizinhos já estão a dormir. Acredito que, em sonhos, eles devem ouvir-me.
Assim, o prédio harmonioso nunca conhece o silêncio.


António Torrado

22/10/2010

O Homem que vendia fantasmas

Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era um fantasma. - "Quem é você ?" perguntou por sua vez o fantasma. Tingpo mentiu e respondeu - "Eu também sou um fantasma." O fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou - "Estou a caminho para a cidade de Wanshih." - "Também vou para lá," afirmou a aparição. Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, o fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. - "ótima idéia," achou Tingpo. O fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse - "Você é pesado demais para um fantasma. Tem certeza de que é um fantasma mesmo ?" Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar o fantasma, mas êsse era tão leve que tinha a impressão de não estar carregando nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou ao companheiro qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. - "Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana", afirmou o fantasma. Assim foram andando, andando até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que o fantasma fosse adiante e observou que êle não fazia barulho algum ao nadar, mas quando êle entrou n’água, o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. Tingpo explicou novamente - "Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar a correnteza." No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar o fantasma nas costas apertando-o fortemente. O fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo o apertou com mais fôrça ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e o fantasma se transformou num bode. Tingpo cuspiu no animal a fim de que não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos dinheiros e foi para casa. Eis a razão do ditado de Shih Tsung: "Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos dinheiros."

(Do "Soushenchi", século IV)

20/10/2010

Corpo Seco

Blog+Corpo-Seco.jpg (image)
[Blog+Corpo-Seco.jpg]

Homem que passou pela vida semeando malefícios e que sevidiou a própria mãe. Ao morrer, nem Deus nem o Diabo o quiseram,e a própria terra o repeliu enojada de sua carne,e um dia, mirrado, defecado, com a pele engelhada sobre os ossos, da tumba se levantou em obediência ao seu fado, vagando e assombrando os viventes na calada da noite.

Conta-se no sertão que pobre mulher, certa vez, amadora dos bons guisados de urupês (orelha de pau), vagava pela mata para colher os apetecidos quando deparou com um pau-piúca caído, onde abrolhavam os saborosos parasitas. Colhia-as quando, no desvendar a parte extrema do madeiro, se tomou de pavor e muito susto ante dois olhos escarninhos que a fitavam, e disparou a correr desorientada sob o riso cachinado do Corpo Seco a chancear da peça que pregou.

Lenda do Brasil

18/10/2010

O gato e a raposa



O gato e a raposa não privavam, em trato de amizade, mas de uma vez que o acaso os juntou deram em considerar que não eram tão desparecidos um com o outro, como se julgavam.
Ambos tinham cauda, embora a da raposa mais felpuda e mais calhada para gola de samarra, o que não era de bom tom lembrar à raposa... Ambos tinham o passo de bailarina em pontas. Ambos tinham olhos de farolim, para descortinar os recantos da noite. Ambos tinham artes de caça e vasto receituário de matreirices. Ambos sabiam, com vaidade, que valiam mais do que pesavam. Ambos tinham aos cães a mesma raiva.
Foi, aliás, a propósito de cães que a raposa e o gato, um dia, em que passeavam a par pelo campo, tiveram a seguinte conversa:
- Se uma matilha de cães nos perseguisse, o que é que tu farias? - perguntou a raposa ao gato.
- Nem me fales nesses monstros, que fico com o pêlo em pé - disse o gato. - Uma matilha? Bastava-me um cão só, para lhe fugir.
- Pois sim, mas como te escapavas? - insistiu a raposa.
- Escapava-me. Fugia. Safava-me. Debandava. Raspava-me. Sumia. Onde houvesse uma árvore para eu trepar era por ela acima que eu desaparecia da vista do cão - explicou o gato, todo arrepiado.
- Vejo que és um pouco simplório e covarde - comentou a raposa. - Pois eu tenho mil manhas e recursos para os afastar de mim. Um catálogo de estratégias, podes crer. A dificuldade está na escolha, quando chega a ocasião.
Logo por azar, surgiu a ocasião. Dois cães de caça correram sobre o gato e a raposa. Sentindo-os perto, o gato saltou para uma árvore e pôs-se a salvo.
Mas já eles corriam sobre a raposa.
Então o gato viu a raposa, que há pouco se gabava de dispor de tantos e tão variados expedientes contra a fúria dos cães, fugir a bom fugir, como qualquer coelho assustadiço. E, lá mais adiante, ser filada pelo rabo...
Não tardaria muito que enfeitasse uma gola de samarra.
Do seu providencial poleiro, o gato matutava que mais vale saber do que apregoar que se sabe.

Era para ser




Há muitos monstros nesta história. É um aviso, a tempo. Não querendo, não conto.
Estava a apetecer-me, mas desisto. Mudo para uma história sem monstros. Pronto, acabou-se. Ele há tantas histórias por contar...
Por sinal que nesta até havia monstros simpáticos. Coitados. Que culpa tinham eles, se os enfiaram a todos na mesma história, empurrados, varridos, enxotados, expulsos, desterrados das histórias onde estão proibidos os monstros.
A monte, num grande aperto, ogres, lobisomens, monstrengos e gigantones eram um espectáculo desolador. Já não metiam medo. Quanto muito, metiam dó.
- Prestamos para nada - dizia um gigantão, com um olho só, no meio da testa. - É que ninguém, ninguém, ninguém nos liga.
E tinha razão o ciclope. Limpou uma lágrima que lhe escorria do olho único e fungou, que nem um menino amuado.
Como os monstros não se assustam uns aos outros, que préstimo tinham, ali acocorados, de cabeça baixa, a limparem as unhas, feitos monos?
- Só se fizéssemos um concurso. Elegíamos a Miss ou o Mister Monstro, que tinha de ser o mais feio de nós todos - sugeriu um lobisomem horrendo, com uma secreta esperança de ganhar. - Convocávamos a televisão e fazíamos um grande desfile.
Em resposta, um ogre, que estava perto, fez uma pavorosa careta de incredulidade.
- Concursos só se forem de beleza. A televisão não se interessa por concursos de fealdade.
Enganava-se. Este ogre estava pouco a par da programação televisiva. Não há nada mais na moda do que concursos de monstros e de monstruosidades.
Houve logo uma estação que pegou na ideia. E exigiu exclusivo.
- Preparem tudo em segredo, para que não haja fuga de informações nem copianços - recomendou o director do canal televisivo.
- Mas isso não era possível, porque estamos cá todos. Não há mais monstros por fora - disseram os monstros.
- Vocês esquecem-se de que a concorrência é terrível e bem capaz de inventar um concurso de falsos monstros - lembrou o director da estação, que sabia do que falava.
Mas, afinal, não chegou a haver concurso, para grande desolação dos monstros concorrentes. Sabem porquê? Porque não se conseguiu juntar um júri à altura.
Os jurados ou se amedrontavam ou desatavam a rir, para não se amedrontarem. Vieram levas sucessivas, à experiência, de óculos escuros, sem óculos escuros, de lenço ao pescoço, sem lenço ao pescoço, e ninguém ficou para as provas finais.
Em conclusão: os monstros voltaram ao mesmo desânimo. Se os deixassem passear, nem que fosse só um bocadinho, entrada por saída, vou ali e já venho, pelas histórias donde tinham sido expulsos, talvez arribassem, ganhassem melhor parecer, mais verdes, mais escamosos, mais peludos...
Qual quê! Ninguém os pode convidar para semelhante passeio. Até eu, que, às vezes, tenho ganas de contar histórias de monstros, sou sempre obrigado a desistir. Como agora.
Em segredo, aqui para nós, talvez volte a tentar, lá mais para diante.

António Torrado


17/10/2010

Dama do Lago

Dama do Lago (ou Fada Viviane como é mais conhecida) é, de acordo com a lenda, uma das sacertotisas de Avalon ou até a mais importante delas. Filha de Diana, a deusa dos bosques e irmã mais velha de Igraine, a fada tinha a missão de proteger e entregar a espada mágica do Rei Artur, a sagrada Excalibur. Ela foi morta por Balim,irmão de criação de seu filho Balam, enquando estava na comemoração de Pentecostes para pedir ao rei mais uma vez que ele fosse fiel às suas promessas sobre os antigos povos. Lancelot matou Balim em vingança da morte da mãe. O corpo da Dama do Lago não foi levado até Avalon para a despedida das outras sacerdotisas, e sim a Glastonbury,por ordens de Artur.





A sociedade dos bons sentidos



Eram duas orelhas. Só duas orelhas.
Estavam num grande cartaz que anunciava uma marca de aparelhos de rádio: PARA OS RÁDIOS THO-KATU-DO SOU TODO OUVIDOS.
O anúncio passou à história - será esta? - e as orelhas ficaram desempregadas. Que fazer?
Deu-lhes para voar sobre a cidade, como uma borboleta gigante, à procura de poiso.
Foram ter a um ferro-velho ao ar livre, onde, no meio de muita tralha, repousavam, sem préstimo, uns óculos gigantes, com o respectivo nariz. Tinham estado pendurados na fachada de uma loja de oculista, que mudara de ramo.
Associaram-se as orelhas aos óculos mais o nariz. Já não faltava tudo.
A borboleta que voava, agora, sobre os telhados da cidade estava mais completa. Ouvia, via e cheirava.
Operários andavam a desmontar do alto da porta de uma luvaria uma grande mão enluvada. O prédio ia ser deitado abaixo. A quem interessava uma luva sem luvaria?
Interessava à nova sociedade Orelhas, Óculos & Nariz, Ldª, em franco progresso.
Mesmo enluvada, a mão tinha tacto, pegava em coisas, dizia adeus. Era uma colaboradora imprescindível.
Se as orelhas ouviam, se os olhos atrás dos óculos viam, se o nariz cheirava e se a mão tacteava, o que é que faltava, para completar os cinco sentidos?
- Faltava a boca! - não disseram eles, porque não tinham boca para dizer.
Pois faltava a boca, que é a porta do paladar e, além disso, que fala, ri, assobia, beija. Ter boca dá imenso jeito.
Mas encontrar uma disponível?! Quem a tem, guarda-a para si. Não ia ser fácil.
A sociedade Orelhas, Óculos, Nariz & Mão, Ldª, resolveu pôr um anúncio no jornal:

BOCA
Precisa-se. De preferência,
com dentes. Resposta a
este jornal, ao nº tal e tal.

Responderam vários candidatos. Ofereceu-se uma dentadura, mas sem boca, o que não era conveniente. Ofereceu-se a Boca do Inferno, um precipício sobre o mar de Cascais, o que estava fora de causa. Ofereceu-se um pudim chamado Boca Doce, também a despropósito. Ofereceu-se uma boca de favas, que ninguém percebia.
Por isto ou por aquilo, todas as bocas que apareceram foram rejeitadas. A boca do estômago, a boca de incêndio, a boca da noite e outras bocas e boquinhas não vinham para o caso.
- Parece que ficamos sem boca - não disseram eles, que não tinham boca, mas pensaram.
Até que lhes apareceu um coração, um lindo coração doirado de noiva minhota, que se apresentou nestes termos:
- Faço as vezes da boca que vos faz falta, porque tenho o coração ao pé da boca.
Onde? Não se via, mas eles acreditaram. Havia tanta franqueza naquele coração de oiro, que tudo o que ele dizia tinha de ser verdade.
E provou.
O MAIOR ESPECTÁCULO DO MUNDO, anunciava a cara cheia de um palhaço, de grandes orelhas e óculos estapafúrdios, sobre o nariz pintado, a apontar, com a mão enluvada, a entrada de um circo.
Não passava despercebida.
Aquela cara inocente de palhaço tinha a boca ao pé do coração. Ou vice-versa. E cinco ou mais sentidos de alegria, sempre generosos e prontos a apresentar o maior espectáculo do mundo que é a vida. Ou vice-versa.


António Torrado


13/10/2010

O Julgamento de uma disputa



Em Linhuai, um vendedor de sedas levava uma peça desse tecido impermeável para vender na cidade. Quando começou a chover, êle a abriu sobre a cabeça para abrigar-se e em breve outro homem veio proteger-se sob a peça. Ao parar a chuva, ambos começaram a disputar sobre a posse da seda. Hsüeh Hsüan disse: - "Essa peça de seda impermeável vale apenas algumas centenas de moedas. Por que brigar por causa dela ?" Por conseguinte, cortou-a em dois pedaços e deu um deles a cada um dos contendores. Continuou a olhá-los e viu que o verdadeiro dono protestava que tinha sido enganado ao passo que o outro parecia bem satisfeito. Assim soube a quem pertencia mesmo a seda e o outro homem foi declarado culpado e condenado.

(Do Fengshut'ung, século II)

11/10/2010

Como um velho perdeu sua verruga

Há muito tempo atrás um velhinho morava com sua esposa perto de uma floresta. Na juventude ele fora um belo rapaz, mas à medida que envelhecia, uma feia verruga cresceu-lhe na face, ficando, com a idade, cada vez maior. Durante anos, recorreu a médicos e magos e experimentou pós e poções, mas nada adiantou. Por fim resignou-se com a verruga e tentava mesmo brincar a respeito.
Um dia, o velho precisou de lenha para o fogo; foi então para as montanhas e cortou algumas achas. Fazia um dia fresco de outono e ele se sentia tão feliz que nem viu as nuvens se adensarem. Quando caíram as primeiras gotas, correu a procurar abrigo. Encontrou uma árvore oca e lá se escondeu, no exacto momento em que irrompeu a tempestade. Trovões sacudiam as montanhas e raios cintilavam ao seu redor; ele, porém, estava seco e seguro. Depois de muitas horas, a tempestade amainou e o velho saiu de seu refúgio. Ouviu vozes à distância e pensou que seus vizinhos tinham vindo à sua procura. Mas quando viu do que se tratava, pasmou horrorizado - uma horda de gnomos e demônios se aproximava!
Mais que depressa, volou para seu esconderijo na árvore, tremendo de medo. Os demônios chegaram e um dos gnomos - o mais horrendo de todos e obviamente o chefe - dirigiu-se ao seu bando, dizendo com um gesto:
- Vamos dar uma festa aqui.
Então o rei-demônio acomodou-se de costas para o velho, na frente da árvore oca. O pobre homem quase desmaiou de medo.
Os demónios organizaram rapidamente um piquenique e começaram a cantar. O velho observava atónito - nunca vira nada semelhante. Mas quando os demónios começaram a dançar, não pôde conter o riso. Eram desajeitados e deselegantes, e todos pareciam ridículos, dando coices para todo lado e caindo. Finalmente, o rei dos demónios com um gesto ordenou aos dançarinos que parassem.
- Vocês são ruins demais! - disse, se lastimando. - Não existe ninguém aqui que saiba dançar bem?
Ora, o velho adorava dançar e sabia dançar muito bem. - Eu poderia ensinar-lhe uns passos - pensou consigo mesmo, mas não ousava revelar sua presença, temendo que os demónios o matassem. O rei-demónio tornou a perguntar se alguém sabia dançar e o velho continuava dividido entre seu amor pela dança e seu medo dos demónios. O rei-demónio perguntou uma terceira vez e o velho mandou seus receios às favas.
Saiu da árvore e curvou-se perante o chefe dos demónios.
- Eu sei dançar, meu senhor - disse e começou a fazê-lo.
Os demónios ficaram escandalizados por terem um homem em seu meio, mas, bem logo, admiraram a arte do velho. Começaram a marcar o ritmo com seus cascos, acompanhando a música e alguns se juntaram ao velho. Por sua vez, o velho sabia que sua vida dependia de ele dançar bem, de forma que pôs toda sua alma e todo seu coração em seus movimentos e divertiu-se, realmente. Quando parou, o rei-demónio aplaudiu e convidou-o a sentar-se ao seu lado, oferecendo-lhe um copo de vinho.
- Você precisa voltar amanhã para dançar para nós - o rei-demónio disse.
- Gostaria muito de vir - respondeu o velho.
Um dos conselheiros do rei admoestou-o. - Não se ode confiar nos homens. Precisamos ficar com algo que nos dê certeza de que ele vai voltar. - Infelizmente, o velho nada trazia de valor consigo.
- Bem, então - o rei-demónio disse - vou ficar com isto como penhor - e, estedendo a mão, agarrou a verruga do velho e arrancou-a com a facilidade de quem arranca um pessêgo maduro.
- Trate de voltar amanhã - ordenou, e todos os gnomos desapareceram.
O velho mal podia acreditar no que acontecera. Passou a mão pelo rosto e percebeu o quão suave - e simétrico! - estava. Ficou tão feliz, que foi para casa pulando, cantando - e dançando - durante todo o trajecto. A esposa, ao vê-lo livre da verruga, mostrou-se eufórica e ambos celebravam sua boa sorte.
Ora, o velho tinha um vizinho malvado e vaidoso que também tinha uma verruga e que nunca se cansara de procurar um tratamento para ela. Quando soube da celebração, foi espiar e ficou perplexo ao ver que a verruga do velho havia sumido. este homem invejosos imediatamente perguntou o que acontecera e o velho lhe contou a história dos demónios. O vizinho, então, insistiu para ir vê-los, no dia seguinte, em lugar do velho.
No dia seguinte, pois, o vizinho vaidoso rumou para as montanhas e encontrou a árvore oca, exactamente como o velho lhe dissera. E, sem sombra de dúvida, ao anoitecer, o bando de demónios apareceu.
- Onde está o velho que ia dançar para nós? - o rei-demônio perguntou. O mau vizinho rastejou para fora da árvore, tremendo de pavor. - Aqui estou! - disse e começou a dançar. Ele, no entanto, nunca havia aprendido a dançar; considerava a dança aviltante à sua dignidade de forma que apenas pulava de um lado para outro, agitando os braços. Ele achava que os demónios não iriam notar a diferença, porém o rei ficou ofendido.
- Mas que coisa horrível! - o rei-gnomo exclamou. - Você não está dançando como ontem! - O rei não atinara que estava tratando com outra pessoa porque, a seu ver, todos os humanos eram iguais. - Não dá para aguentar! - o rei-demónio gritou, afinal. Vasculhou o bolo e encontrou a verruga.
- Olhe, devolvo-lhe o penhor.
Dizendo isso, atirou a verruga no homem vaidoso e esta grudou-lhe no rosto e não havia dúvida: tinha duas verrugas, uma em cada face! Esgueirou-se para dentro de casa bem mais tarde da noite, e ninguém viu sua cara nunca mais porque, desse dia em diante, passou a usar um chapéu de abas largas, bem enfiado na cabeça.
Quanto ao velho que perdeu sua verruga, ele viveu ainda muito tempo e dançava quando se sentia feliz. O que, na verdade, acontecia quase sempre!

Lenda do Japão

Krishna




Krishna era da família real de Mathura - capital de um conjunto de três clãs: Vrishni, Andhaka e Bhoja - e o oitavo filho da princesa Devaki e o marido Vasudeva, um nobre da corte. No dia do casamento, como é de costume na tradição védica, o primo mais velho, Kamsa, ficou encarregado de conduzir Devaki e o esposo até a nova casa do jovem casal.
O rei Kamsa subiu ao trono após mandar prender o próprio pai, Ugrasena (rei da dinastia Bhoja). Kamsa é tido como um grande demônio, que pertencia à classe dos Kshatriyas (guerreiros), mas que, de algum modo, havia se desviado do Dharma universal.
No caminho que conduzia os noivos até a nova casa, Kamsa escutou uma voz que dizia que o oitavo filho de Devaki iria levá-lo à morte. Imediatamente fez menção de matar Devaki, mas Vasudeva implorou pela vida da esposa, prometendo que cada filho que nascesse, seria levado à presença de Kamsa.
Receoso, mandou prender Vasudeva e a esposa no porão do castelo, sendo vigiados dia e noite por guardas. Cada filho do casal que nascia era morto por Kamsa, que mesmo sabendo que a profecia se cumpriria apenas no oitavo filho, não tinha piedade de nenhum e matava a todos.
Kamsa havia sido alertado por Narada Muni que em breve Vishnu nasceria na família de Vasudeva. Soube também, através deste sábio, que em uma encarnação anterior, Kamsa havia sido um demônio chamado Kalanemi que tinha sido morto por Vishnu.
Conta a tradição védica que Kamsa, temendo que Vishnu nascesse em qualquer uma das famílias do reino, mandou matar todos os meninos com até dois anos de idade, a fim de evitar o cumprimento da profecia.
E foi então que o oitavo filho de Devaki nasceu - Bhagavan Sri Krishna. O local do nascimento é conhecido atualmente como Krishnajanmabhoomi, onde um templo foi erguido em honra. Como a vida corria risco na prisão, foi tirado da prisão e entregue aos pais adotivos Yashoda e Nanda em Gokula.

05/10/2010

A pulga e o carneiro

Certo dia, uma pulga que morava no pêlo macio de um cachorro, sentiu um agradável cheiro de lã.
- Que será isso?
Deu um salto e viu que o cachorro adormecera encostado à pele de um carneiro.
- Esta pele é exactamente o que preciso - disse a pulga - é mais espessa e mais macia, e principalmente mais segura. Não corro o risco de ser encontrada pelas patas e pelos dentes do cachorro, que a toda hora me procuram. E a pele do carneiro deve ser, certamente, mais agradável.
Então, sem mais pensar, a pulga mudou-se de casa, saltando das costas do cachorro para a pele do carneiro. Porém a lã era espessa, tão espessa que era difícil atravessá-la para chegar até a pele. Tentou e tornou a tentar, separando pacientemente os fios, procurando laboriosamente um caminho. finalmente atingiu as raízes dos pelos, mas eles eram tão juntos que ficavam praticamente encostados uns nos outros.
A pulga não encontrou sequer um furinho através do qual pudesse atingir a pele do animal.
Cansada, banhada em suor e profundamente desapontada, a pulga resignou-se a voltar para o cachorro. Porém o cachorro não estava mais lá.
Pobre pulga! Chorou dias a fio de arrependimento por seu erro.


Fábulas de Leonardo da Vinci



04/10/2010

A Lenda dos Aloendros



Reza a lenda que um cavaleiro de nome Dom João Peres de Aboim se encantou por uma princesa moura chamada Alhandra.
Estávamos na época da conquista da cidade de Faro aos Mouros, em 1249, sob o comando do rei Dom Afonso III. Os Portugueses queriam entrar nas muralhas e Alhandra ajudou Dom João Peres de Aboim a entrar, sob a condição de ele não matar nem mulheres, nem crianças e em troca poderia tê-la a seu lado.
O cavaleiro cumpriu o prometido. Quando chegou a casa em vez da princesa prometida, estava ali enviado pela princesa um lindo ramo de aloendros vermelhos. Dom João Peres de Aboim, perdidamente apaixonado, chorou e de seus olhos brotaram lágrimas de sangue pela amargura de ter perdido o seu amor.
Dizem que o rei mouro a encantou no arco do repouso, por ela ter traído o seu povo e que quem andar sobre as pedras da estrada até ao largo Dom Afonso III, vislumbra sombras de mouras encantadas.

02/10/2010

A Tomada do Castelo de Aljezur



D. Paio Peres Correa, conhecedor da situação privilegiada da velha fortaleza e da vigilância apertada que os moiros exerciam, mandou batedores no intuito da estudar as características do local e os hábitos das gentes, com vista à elaboração do seu plano de ataque.
Conseguiram “aliciar” uma moira de nome Maria Aires, de raro encanto, que lhes contou, como era costume e habito muito antigo e ainda observado, na madrugada do dia 24 de Junho os habitantes da região irem tomar banho à Praia da Amoreira.
Tanto bastou para que D. Paio arquitectasse o seu plano de ataque, tirando proveito daquela tradição moirisca.
Assim, na noite de 23 para 24 de Junho, as nossas tropas esconderam-se num vale próximo do castelo que hoje é conhecido pelo Vale de D. Sancho, em honra daquele nosso valoroso Monarca (D. Sancho II) e aguardaram que, com o amanhecer, os moiros iniciassem o seu ritual.

Mulla Nasrudin



Mulla Nasrudin sonhou que estava no céu e que tudo à sua volta era muito bonito e fácil. Só encontrava beleza e não precisava fazer esforço para nada, bastava desejar alguma coisa - qualquer coisa - e ela aparecia.
Nasrudin tinha tudo que queria e estava super-satisfeito, os milagres aconteciam sempre que desejava. Foi bom demais por algum tempo, até que ele começou a se entediar, deixou de achar graça naquela vida. Aí resolveu procurar algum problema, qualquer situação que lhe aborrecesse ou até lhe fizesse ficar deprimido, porque já não suportava mais tanta maravilha.
Não encontrou nada que o perturbasse. Passou a procurar um trabalho para fazer, uma responsabilidade qualquer e não havia nada, porque era perfeito.
No seu sonho Mulla Nasrudin gritou:
- Não aguento mais! Estou cheio de não fazer nada e de ter tudo! Preferiria estar no Inferno!
E uma voz lhe respondeu:
- E onde é que você pensa que está?
Por isso é que é isso: o céu e o inferno não são localizados geograficamente; mas emocional e psicologicamente. Cada um faz seu céu ou inferno no seu espaço interior.

No momento em que você compreender que o céu ou o inferno estão somente dentro de você, poderá mudar inteiramente a sua vida. Enquanto não compreender, não haverá transformação.


01/10/2010

O burro e o leão



O burro andava muito feliz. Sentia-se o rei da criação, isto é, o rei das galinhas, dos patos e dos perus do quintal onde vivia. E também das cabras, dos porcos e das ovelhas, porque aquele quintal era muito povoado.
Quando ele zurrava, todos fugiam.
As zurradelas do burro, realmente, eram de tal força, que assustavam qualquer bichinho. Até o cão se afastava, em sinal de respeito.
- Nunca imaginei que possuísse tanto poder? - dizia de si para si o burro, todo inchado de bazófia.
E fartava-se de zurrar, a torto e a direito, clamando que era ele o rei? iam-iam!.. o rei? dos? iam-iam!... dos animais? iam-iam!
Vozes de burro não chegam ao céu, diz-se, mas chegaram aos ouvidos do leão.
- Não sabia que tinha concorrentes de tamanha qualidade - disse ele, num breve rugido de ironia.
Estava bem-disposto o leão. Tinha-se refastelado com um suculento almoço de carne de javali, entremeado com o resto de um cabrito, que sobrara do jantar anterior. Tão cedo não ia ter vontade de comer e muito menos de comer carne de burro, que enjoava. O leão era de gostos mais apurados.
Sua Majestade espreguiçou-se, arrotou (com licença!) e disse:
- Vamos lá visitar esse fenómeno que se proclamou o rei dos animais.
Encontrou o burro a pastar num outeiro, não longe do quintal, onde tinha estábulo.
O burro, quando o viu, estremeceu, mas não quis dar parte fraca. Nem parecia bem que um rei, coroado de tão altas orelhas, sinal de majestade, fugisse diante de um animal de quem se não viam as orelhas, escondidas pela farta juba. O burro tinha a coragem dos simples. E dos ignorantes.
- Constou-me - começou o leão -, constou-me que te intitulas o rei dos animais. É verdade?
- É - respondeu, singelamente, o burro.
- Em que te baseias para ostentar o título? Donde te vem tal pretensão? Os teus pais ou os teus avós já eram reis da natureza animal? - questionou o leão, não sustendo a cólera. - Quantos reis burros houve antes de ti?
- Iniciei a dinastia - explicou o burro. - Iniciei a dinastia, com a força da minha voz. Queres ver?
- Estou cheio de curiosidade - disse o leão, sentando-se nas patas traseiras. - Demonstra-me, então, os teus predicados reais.
O burro repuxou o ar para os pulmões e, do alto do outeiro, trombeteou uma zurradela tão poderosa que gafanhotos, perdizes, estorninhos, lebres e coelhos do mato saltaram de todos os lados, num grande alarme. Lá longe, no quintal, os galináceos mandaram as galinhas para a capoeira e eles correram atrás. O mesmo fizeram os patos e os perus. Zurrar do burro equivalia a sirene dos bombeiros ou toque de recolher.
- A minha voz não tem igual. Assusto a bicharada em meu redor, como acabo de demonstrar - disse o burro, tossicando de importância.
- Efectivamente, possuis uma voz, que faz tremer as folhas - reconheceu o leão. - E como vamos de sombra?
- De sombra? - intrigou-se o burro.
- Sim, de sombra - insistiu o leão. - Queres reparar? Ora toma atenção.
Aqui o leão interpôs o corpo entre o sol e o quintal. A sua sombra majestosa projectou-se sobre a capoeira, a coelheira, o estábulo e o cortelho. Um vozear de pânico despegou-se da natureza, fosse brava ou mansa:
- O leão! - como o rolar de trovoada ao longe.
Depois, fez-se silêncio e frio, nem que tivesse descido, repentinamente, a noite. Até as cigarras pararam de serrar o sol.
O burro sentiu esse raio paralisante, que atravessava tudo, e borrou-se de medo.
Já o leão se afastava, pausada e majestosamente. Não precisava de dizer mais nada. A verdadeira grandeza dispensa zurradelas.
Em sentido contrário ao do leão, o burro, de orelhas caídas, desceu o outeiro, em direcção ao quintal. Recolhia à estrebaria e levava muito em que pensar.