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24/06/2011

Lenda dos raminhos de S. João



S. João é um dos santos populares. Com ele brinca e alegra-se o povo no seu dia, com o à-vontade de quem festeja um amigo. Ora acontece que onde há tradição há lenda. E assim são inúmeras as que surgem por esse Portugal fora sobre o santo mais festejado pelo nosso povo. Eis o que se conta dos tradicionais raminhos de S. João, em Cambas, freguesia do concelho de Oleiros.

Na aldeia havia grande efervescência. Chegara-se à véspera do dia de S. João. Embora a manhã viesse alta, já novos e velhos estavam levantados. Havia muito que fazer: preparar as brincadeiras, o baile, a fogueira para a noite.
Luzia, cachopa bonita, estava prometida a José, o moço mais brioso daqueles sítios. Mas uma tristeza mesclada de raiva tirava o ânimo ao jovem lavrador para ajudar os seus companheiros. Sofria. Sofria amargamente, porque Luzia andava com o olhar distante, o pensamento arredio. E ele sabia porquê. Um mês atrás surgira não se sabe donde outro jovem de bela aparência. Aparecia todas as tardes, ao sol-pôr, montado num soberbo cavalo negro. Procurava a casa de Luzia e falava com ela. A conversa não era a de um enamorado. Mas sentia-se a pretensão de a conquistar. Daí o ciúme e a revolta de José. Porque razão Luzia vinha sempre à porta falar ao desconhecido? A aldeia já murmurava. Era necessário tomar uma atitude.
Fechando os punhos num gesto de desespero, José respirou fundo a tentar dominar-se. Pensava para si próprio: «Hoje tem de ser! Ela terá de decidir-se.»
E encaminhava-se, quase sem dar por isso, para casa de Luzia.
Pisando com força o chão, fazia fugir o pó em bailados estranhos. Mas o pó voltava a anichar-se nas botas e nas calças do rapaz. Nunca a distância da sua casa à da sua prometida lhe parecera tão curta. Tinha a sensação de ter voado. Latejavam-lhe as fontes. Batia-lhe forte o coração.
Luzia estava junto da janela aberta, contemplando o novo dia. Sorriu-lhe quando o viu. Mas ele não. Dirigiu-se-lhe com certa dureza:
— Luzia, quero falar contigo!
Ela fingiu-se admirada:
— Que aconteceu?
Com a mesma rudeza na voz, ele retorquiu:
— Algo se está passando. E eu preciso esclarecer-me.
— Pois fala.
— Quero ver-te bem. Vem à porta. Preciso ter a certeza de que me não mentes.
Luzia deixou de sorrir. Abriu a porta da rua e deixou que o sol a beijasse.
— Aqui estou pronta a responder-te.
— Jura que vais ser sincera!
— Juro!
Ele olhou-a demoradamente. Olhos nos olhos, sem deixar que ela se afastasse. E só depois perguntou:
— Quem é esse homem que vem falar-te todas as tardes?
Ela perturbou-se, embora já estivesse certa do que seria a pergunta. Mas respondeu convicta:
— Não sei!
— E que pretende esse cavalheiro?
— Também não sei!
— Nunca te falou de amor?
— Vagamente.
— E ele sabe que vamos casar?
— Sabe. Já lho disse.
— E que respondeu?
— Que o destino de cada um pode ser alterado, se houver força para o conseguir.
— Qual foi a tua atitude?
— Não respondi.
— Portanto… ele tomou isso como uma aceitação.
— Não creio!
— Pois creio eu! E julgas que vou continuar a ser alvo do escárnio dos outros?
Ela afligiu-se:
— José, peço-te! Ajuda-me!
— Ajudar-te em quê?
— A desembaraçar-me desse homem!
— Pois é fácil: manda-o embora! Diz-lhe que não queres falar mais com ele!
Ela confessou, aterrada:
— Não posso!
José olhou-a de novo, olhos nos olhos.
— Não podes? Ora essa! E porquê?
— Não sei! Há no seu olhar uma força estranha que me deixa atordoada.
José ia falar, mas Luzia tomou-lhe uma das mãos, num arrebatamento.
— Não é o que tu pensas! Juro que não o amo, pois só a ti desejo para meu marido!
O rapaz não se deixou convencer.
— Luzia! Estás a querer tomar-me por parvo?
Ela abanou a cabeça, num aceno negativo. Havia aflição no seu olhar, na sua voz.
— Acredita em mim, peço-te! Não amo esse homem. Tão-pouco o admiro. Causa-me medo, podes crer. Um medo horrível, e também não sei porquê. Mas não consigo furtar-me à sua presença. Mal o oiço, fico inquieta e tenho de lhe abrir a porta!
José, de sobrancelhas franzidas, escutava Luzia com assombro. Desta vez não duvidava de que ela falasse com sinceridade. Mas a que atribuir esse domínio de um desconhecido sobre a vontade da rapariga?
José olhava a noiva, silencioso, pois não atinava com o que verdadeiramente desejaria dizer Luzia, lágrimas nos olhos, coração batendo, voltou a falar:
— José! Acredita em mim!
O rapaz olhou a aldeia que se estendia à sua frente. E completou alto o seu pensamento:
— De que servirá eu acreditar? Os outros não compreenderão que não tenhas coragem de o mandar embora. Por isso...
Não completou a frase. Ela, assustada, obrigou-o a concluir o pensamento:
— Por isso… o quê?
— Deixarei de vir falar-te… até que esse homem não volte mais aqui!
Luzia baixou a cabeça. As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Mas quedou-se silenciosa. E foi em silêncio, também, que José se afastou.

O fumo subia no ar. As fogueiras acesas nas ruas davam à aldeia um aspecto estranho. Rapazes e raparigas cantavam alegres:

Ó meu S. João Baptista,
Ó meu Baptista das flores,
Na noite do vosso dia
Hei-de tomar-me de amores!

Luzia, arredada das outras raparigas, não quisera entrar na marcha. Era quase meia-noite. Ela sabia que assim que o arraial terminasse todas as suas companheiras correriam à fonte para molharem o rosto e beber água — segundo a tradição. Mas Luzia já tinha o rosto molhado pelas suas próprias lágrimas. Não vira, sequer, o José. Ele, que era sempre dos mais divertidos e o que melhor cantava. Já não assistira à cavalhada. E todos sabiam porquê. Todos apontavam Luzia sem se apiedarem dela. Atormentada, viu e ouviu o rancho que passava à sua beira, a cantar:

Na fonte lavei a face
Na manhã de S. João,
Assim a água me lavasse
As mágoas do coração.

Luzia não pôde conter-se mais. Correu para a igrejinha e prostrou-se de joelhos. A porta estava fechada. Encostou o rosto à madeira. Soluçou. Do seu peito saiu um queixume:
— Ó meu S. João! Bem sabeis que quero livrar-me daquele desconhecido. Mas não sei como! Ajuda-me! Ajuda-me, por caridade!
Então, a seu lado uma voz soou:
— De madrugada, quando o arraial terminar, faz uma cruz de flores campestres e coloca-a à tua porta!
Luzia voltou-se admirada. Havia luar, mas estava ali sozinha. Amedrontou-se. Deixou de chorar e correu para junto das outras raparigas. Elas, porém, folgavam e riam sem lhe ligarem importância. Luzia começou a recuperar a calma. Foi buscar rosmaninho, cravos e malmequeres e fez com eles uma cruz. E silenciosamente dirigiu-se para casa, colocando a cruz à sua porta.

O dia de S. João nasceu claro, luminoso, quente. No coração da jovem Luzia começava a raiar também a esperança. Algo lhe dizia no íntimo do seu ser que daí em diante as coisas mudariam. Começou a ganhar confiança em si própria. Secou-se-lhe o pranto. Quase tinha vontade de cantar. Vestiu o seu vestido domingueiro. Pensou em descer ao largo e ir rezar à capela. De súbito, ouviu chamar pelo seu nome. Estremeceu. Era a voz do outro, do desconhecido. Estava lá fora e pedia-lhe que chegasse à janela. A voz insistia:
— Vem à janela, Luzia! Preciso falar-te.
Luzia aproximou-se. Com o coração a bater, mas animosa.
— Que me deseja?
O outro olhou-a. Um olhar faiscante.
— Abre a porta e leva estas flores daqui!
Luzia achou forças para perguntar.
— E porque hei-de levar as flores?
— Não as quero aí!
— Quero eu! A casa é minha!
— Mas tu hás-de pertencer-me!
Luzia surpreendeu-se a ripostar enérgica:
— Engana-se! Não o quero! Tenho o meu José! Pode retirar-se!
Ele gritou:
— Abre a porta!
— Não!
— Tira isso daí!
— A cruz de flores? Também não. Coloquei-a na porta para me proteger e proteger a minha casa.
Então, numa praga tremenda, o desconhecido montou no cavalo negro, que esperava impaciente, e desapareceu como levado pelo vento.
Atónita, Luzia não podia acreditar no que via. Mas teve, de súbito, a noção do que se passava. O desconhecido era o Demónio disfarçado de jovem bonito e elegante, que vinha tentá-la. E Deus havia-lhe dado o ensejo de o vencer!
Correu para a rua. Desceu a vereda que levava à igreja. Entrou nela ofegante. Caiu de joelhos. Orou cheia de unção. Da sua alma subia um cântico de louvor e graças a Deus e a S. João Baptista. A seu lado as mulheres olhavam-na estupefactas. E quando ela saiu vieram todas ao adro fazer-lhe perguntas. Na sua sinceridade ela contou, alegremente, o que lhe havia acontecido. E a nova espalhou-se de boca em boca.
À tarde, Luzia cantava, enquanto juntava rosmaninho e alfazema para as fogueiras:

Eu hei-de ir ao rosmaninho
Àquela terra de além
para acender as fogueiras
Ao S. João que lá vem.

Na noite de S. João
Fui falar ao meu derriço.
Pôs-se a Lua e o Sol nasceu,
Nenhum de nós deu por isso.

Sorrindo, José, que a espiava, oculto, respondeu na sua voz máscula, bonita:

Alfazema e rosmaninho
Numa cruz teu mal levou.
Foi S. João, com carinho,
Que de novo nos juntou!

Luzia voltou-se. Uma alegria imensa iluminou-lhe o rosto. O seu José estava ali, como dantes, ou mais amorável ainda. Deixou-se abraçar. Sentiu-se bem dentro dessas grades humanas. Que importava que os vissem assim? Iam casar. Casar brevemente. Antes mesmo que o ano findasse. Vencera o mal com a ajuda da Cruz. Agora, tinha a certeza de que seria feliz.
E conta a lenda que, desde então, ficou por hábito naquelas redondezas todas as raparigas casadoiras fazerem ramos de rosmaninho e flores campestres para oferecer a S. João no dia da sua festa, pedindo-lhe que as livre de todo o mal.


Gentil Marques
Castelo Branco



23/06/2011

Os meninos e as rãs



Uns meninos capetas estavam brincando na beira de um lago quando viram algumas rãs nadando no raso. Para se divertir, começaram a jogar pedras nas rãs e mataram uma porção. Cansada daquela história, uma das rãs pôs a cabeça para fora da água e disse:
-Chega, chega! Por favor! O que para vocês é distração, para nós é a morte!

Moral: nossos prazeres não devem prejudicar os outros.


Fábulas de Esopo


17/06/2011

A bola e os seus amigos



Veio uma bola pelo ar
que se pôs a saltitar
por cima deste papel.
Quem foi que lhe deu licença?

Houve um menino que a viu
e que correu a apanhá-la
ela então parou - fugir não fugiu
- e ficou à espera que o menino
com ela brincasse.
- Deixas que eu salte ao eixo?
- Pois decerto que deixo.

- E posso deitar-me sobre ti?
Não me empurras? Não me foges?
- Podes sim.
Sou bola boa. Redonda.
Não tenhas medo de mim.

Nisto, chegou-se uma menina
que perguntou:
- Esta bola é tua?
- Não sei! - respondeu o menino. - Pergunta-lhe a ela.

Falou então a bola:
- Sou vossa, de vocês dois, mas não me partam ao meio.
Era um perigo pois deixava de ser bola.
Brinquem, brinquem comigo. Não sirvo para outra coisa.
Mão de menino que em mim poisa
é mão de amigo.
Quantas mais mãos, mais amigos;
e eu, então, embora não pareça,
fico tão cheia de ar, de alegria,
que perco a cabeça.

Vieram mais meninos,
e a bola voou do chão,
andou de mão em mão
- é minha, é tua agora! -
saltou, correu, voltejou
e voou desta página para fora.


António Torrado

As estranhas coincidências da vida



Ao inspeccionar certo dia o seu reino, acompanhado por seu vizir Jafar, o califa Harun Ar-Rachid viu, sendo retirado do rio Tigre, o corpo de uma mulher assassinada. O califa comoveu-se e disse a Jafar: "Se não descobrires o assassino desta pobre mulher, serás enforcado no seu lugar."
Jafar teve sorte, pois o assassino se apresentou por si mesmo ao califa e contou a seguinte história: "Sabei, ó Comandante dos Fiéis, que esta mulher era minha mulher, mãe de meus três filhos. Amava-a, e ela me amava. No início deste mês, adoeceu e disse-me: `Tenho, ó Ali, o desejo de comer uma maçã.' Corri ao mercado, determinado a comprar maçãs até por um dinar a unidade. Mas não havia maçãs no mercado. E um agricultor me disse: `Esta fruta é rara. Só pode ser encontrada em Basra no jardim do califa.' "Por amor à minha mulher fiz a viagem até Basra em quinze dias e quinze noites. E convenci o jardineiro do califa a me vender três maçãs por três dinares cada. Ao voltar, encontrei minha mulher ainda mais doente. Colocou as três maçãs de lado e não as comeu. "Fui à minha loja e comecei a comprar e vender quando vi passar um negro alto e forte, segurando na mão uma das três maçãs. Disse-lhe: `Ó bom escravo, conta me onde conseguiste esta maçã para que consiga outra igual para mim.' Respondeu: `Foi-me dada por minha amante. Voltei ontem de viagem e fui visitá-la. Encontrei-a doente com três maçãs a seu lado me: `Meu como de marido foi até Basra comprá-las para mim.' Comi e bebi com ela, e fiquei com uma das três maçãs.'`Ao ouvir estas palavras, ó Comandante dos Fiéis, o mundo ficou preto aos meus olhos. Fechei minha loja e voltei para casa. Lá, vi apenas duas maçãs. `Onde está a outra maçã?' perguntei à mulher. Respondeu languidamente que não sabia. "Convenci-me de que as palavras do escravo eram verídicas e, na minha raiva, saquei de meu punhal, matei minha mulher e joguei-a no Tigre. De volta para casa, achei meu filho mais velho chorando. "Por que está chorando, meu filho? Perguntei-lhe”.Respondeu: “ Tomei uma das três maçãs da mamãe para brincar com ela; mas um negro alto e forte arrancou-a das minhas mãos. Chorei e contei-lhe que meu pai tinha ido até Basra comprar três maçãs para curar a doença de mamãe. Mas ele não me deu atenção. Levou a maçã e foi embora.' Aí, entendi a trama e lamentei meu erro. Mas era tarde demais. Sou culpado. Mereço a morte, ó Comandante dos Fiéis," concluiu o comerciante.
O califa ficou furioso contra o escravo caluniador e mandou Jafar descobri-lo dentro de três dias. "Senão, serás enforcado em seu lugar.”
Jafar não teve sorte desta vez. Procurou em vão pelo escravo criminoso. No terceiro dia, estava se despedindo da família antes de se apresentar à forca quando, ao abraçar a filha, sentiu algo redondo dentro de sua roupinha.
- O que é isto, minha filha? perguntou.
- É uma maçã , respondeu. Rohan, nosso escravo, trouxe-a há quatro dias e só aceitou me dar contra dois dinares.
Jafar chamou seu escravo e perguntou-lhe: "Onde conseguiste esta maçã?"
Respondeu: "Ó meu amo, a mentira às vezes nos salva. Mas eu falarei a verdade. Há cinco dias, passando na rua, vi-a nas mãos de um menino desconhecido e arranquei-a. O garoto chorou e disse que seu pai tinha ido até Basra comprar três maçãs para curar a mãe doente. Mas não me importei. Trouxe a maçã e dei-a a esta minha pequena ama."
Jafar ficou abismado ao saber que toda a tragédia fora causada por seu escravo. Levou o escravo ao califa e fê-lo repetir a história. O califa maravilhou-se com tantas coincidências e riu até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Perdoou o escravo e fez um rico presente ao viúvo infeliz.


(tradução brasileira)


13/06/2011

As vespas e as abelhas




Demandavam as vespas e as abelhas acerca da propriedade de um favo de mel; foi juiz da causa a formiga. Inquiridas as testemunhas, depuseram todas que tinham visto em torno desse favo uns insetos escuros, compridos, com asas, tais quais as vespas, diziam umas, tais quais as abelhas, diziam outras. Estava o juiz perplexo; o pleito já durava mais de seis meses, e prometia durar anos; escrivães, procuradores, advogados, já, de parte a parte, tinham devorado mais do que valia o favo, quando uma abelha prudente: “Para que estamos com estas coisas”, disse, “se o favo é das nossas contrárias, façam elas outro, que nós outro igualmente faremos, e ver-se-à quem delas ou de nós foi capaz de fabricar esse que pretendem lhes pertence”. As vespas não quiseram anuir, e assim, o juiz pôde sem escrúpulo condená-las.

Moral: Pela obra se conhece o artífice.


Fábulas de Esopo

11/06/2011

A Cegonha e a Raposa



Sendo amigas a Cegonha com a Raposa, a Raposa a convidou um dia a jantar. Chegado o tempo, preparou a Raposa ardilosa uma comida líquida, manjar como papas e a estendeu por uma lousa, e importunava a Cegonha a que comesse. Mas como ela picava na lousa, quebrava o bico, e nada tomava nele, com que se foi faminta para o ninho. Mas por se vingar, convidou a Raposa outra vez e lançou o manjar em uma almotolia, donde comia com o bico, e pescoço comprido. E a Raposa não podendo meter o focinho, se tornou para sua casa, corrida e morta de fome.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

08/06/2011

Boa ideia, mãe




Ele era muito distraído. Um cabeça-no-ar. Péssimo para fazer recados. Mas, mesmo assim, a mãe dele insistia:
- Ó Pedro, vai ali, se fazes favor, à mercearia do senhor Cosme e traz-me dois quilos de batatas.
O Pedro ia e voltava a correr com uma batata na mão.
- Então as outras? - perguntava a mãe.
- Já vou buscar, mãe - dizia o Pedro.
Nova corrida e nova batata. Trazia-as uma a uma...
- Ó filho, que trabalheira! Metia-las todas num saco e trazias, de uma só vez.
- Boa ideia, mãe. Para a próxima já sei.
O recado seguinte tinha a ver com o porco, que tinha ficado em observação no veterinário, por causa de umas vacinas, e que a mãe não tivera ainda tempo de ir buscar. Mandou o filho.
Quando o rapaz regressou sem o bicho, a mãe admirou-se.
- Fui metê-lo num saco e ele não quis - explicou o Pedro.
- Ó filho, trazia-lo para casa com um cordelinho amarrado pelo pé e tocáva-lo para diante com uma varinha.
- Boa ideia, mãe. Para a próxima já sei.
Pouco depois, a mãe mandou-o à feira para comprar um cântaro. Quando o Pedro chegou a casa trazia só a asa do cântaro, presa a um cordel. E ele, muito contente:
- Fiz como a mãe disse.
O que valia ao Pedro cabeça-no-ar é que a mãe tinha muita paciência. Ai dele se não tivesse!

07/06/2011

Ovos frescos



Era uma vez um açafate com ovos. Puseram-se à conversa. Eram ovos ainda frescos e tinham ambições. Um deles disse:
- Quem me dera a mim fazer-me em fios de ovos, a enfeitar um bolo...
- Não está má a pretensão - comentou um outro. - Pois eu preferia ajudar umas fatias douradas a ficar mais douradinhas.
- Fritos, não - cortou um terceiro. - Mas, numa gemada com açúcar, já eu entrava com gosto.
Outro ovo confessou:
- Gostava tanto de ser ovo estrelado. Estrelado vem de estrela... Deve ser bonito. Mas, não podendo ser, qualquer uso serve. Um ovo nunca passa despercebido.
Só faltava um.
- E tu o que queres ser? - perguntaram os outros.
- O ovo de Colombo.
Vamos fazer-lhe a vontade.
Como vocês sabem, Cristóvão Colombo descobriu a América. Quando regressou a Espanha, trazendo a notícia da sua descoberta, os fidalgos da corte, invejosos, desdenharam do feito. Isso também eles eram capazes. Bastava lá ir. Então, Colombo mostrou-lhes um ovo e disse-lhes:
- Ponham-no de pé.
Eles tentaram. Insistiram. Obstinaram-se.
- Não é possível - concluíram.
- Pois eu consigo - disse Colombo.
Muito ao de leve, bateu na mesa com a parte mais redonda e cheia do ovo, a casca amolgou-se, mas só um bocadinho, e o ovo ficou de pé.
- Que fácil - comentaram os fidalgos. - Isso também nós éramos capazes.
- Mas não o fizeram. Quem pôs o ovo de pé, quem descobriu um novo continente fui eu. Cabe-me o mérito a mim.
Aqui têm como eu fiz a vontade ao ovo que queria ser ovo de Colombo.
E agora? Agora, já satisfeito, vai juntar-se aos outros e, todos juntos, vão fazer uma omeleta.

02/06/2011

O homenzinho na orelha

Tan Jinxuan, trabalhava na subprefeitura de Zichuan, na província de Shandong, depois de ser aprovado nos exames de primeiro grau para funcionário público. Ele era taoísta e praticava exercícios respiratórios sempre que podia, mesmo quando fazia muito frio ou muito calor. Depois de muitos meses, achava que os exercícios de controle de respiração estavam lhe fazendo bem.
Um dia, pouco depois de se preparar para a meditação, escutou saindo de seu ouvido uma voz muito fina, tão fina que parecia a de uma mosca:
- Dá pra ver!
Tan Jinxuan abriu os olhos, mas não viu nada. Fechou-os novamente, prendeu a respiração, e os cochichos recomeçaram. Ele achou que esses cochichos eram um sinal de que seria imortal, e ficou muito contente com disso.
A partir desse dia, começou a ouvir essa voz logo que se sentava para meditar. E ficava ali, calado, esperando que a criatura de seu ouvido recomeçasse a cochichar, para descobrir como ela era.
Uma vez, como escutou de novo o cochicho, perguntou:
- Dá pra ver?
Sentiu imediatamente uma cosquinha na orelha, como se estivesse saindo alguma coisa de seu ouvido. Num lance, percebeu que era um homenzinho, de mais ou menos dez centímetros, e de aspecto tão repugnante como o de um yaksa, o demônio de origem indiana. Maravilhado com as cambalhotas que o homúnculo dava no chão, Tang concentrava toda a sua atenção nesses movimentos, quando, de repente, ouviu um vizinho bater à porta, certamente para pedir alguma coisa emprestada. Com esse barulho, o homúnculo entrou em pânico, correu de um lado para outro, como um rato em fuga que volta para a sua toca.
Sem fôlego, Tan nem conseguiu perceber para onde a criaturinha tinha corrido. E nesse instante mesmo caiu num estado de demência, gritando e chorando sem parar, só se curando seis meses depois, com um tratamento à base de poções com ervas colhidas no alto da montanha.