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05/04/2011

Lot escapa à tragédia

Ficheiro:Lot daug.jpg

Os dois homens disseram a Lot: «Quantas pessoas ainda tens aqui? Manda sair desta região os teus genros, os teus filhos, as tuas filhas e todos os parentes que tiveres na cidade. Pois vamos destruir todas estas terras, porque o clamor que se eleva contra os seus habitantes é enorme diante do SENHOR, e Ele enviou-nos para os aniquilar.» Lot saiu e falou aos genros, os que deveriam casar com as suas filhas, e disse-lhes: «Levantai-vos e saí daqui, pois o SENHOR vai destruir a cidade.» Mas os seus genros pensaram que ele estava a gracejar.
Ao amanhecer, os mensageiros insistiram com Lot, dizendo-lhe: «Ergue-te, foge com a tua mulher e as tuas duas filhas que estão aqui, a fim de não morreres também tu no castigo da cidade.» E como ele se demorava, os homens agarraram-no pela mão, a ele, à mulher e às duas filhas, porque o SENHOR queria poupá-los, e conduziram-nos para fora da cidade.
Depois de os terem conduzido para fora, um dos mensageiros disse-lhe: «Escapa-te, se quiseres conservar a tua vida. Não olhes para trás nem te detenhas em parte alguma do vale. Foge para o monte, de contrário morrerás.»
Lot disse-lhe: «Não, SENHOR, peço-te! Este teu servo mereceu a tua benevolência, pois demonstraste a tua imensa generosidade para comigo, conservando-me a vida, mas não poderei fugir até ao monte, pois a destruição atingir-me-ia antes e eu morreria. Há aqui perto uma cidade, na qual obterei refúgio. É muito pequena; permiti que eu vá para lá. É tão pequena! E salvarei a minha vida.» Ele disse-lhe: «Concedo-te ainda o favor de não destruir a cidade a que te referes. Apressa-te, porém, a refugiar-te nela, pois nada posso fazer antes de lá chegares.» Por isso, deram àquela cidade o nome de Soar.
Erguia-se o sol sobre a terra, quando Lot entrou em Soar. Então, o SENHOR fez cair do céu, sobre Sodoma e Gomorra, uma chuva de enxofre e de fogo, enviada pelo SENHOR. Destruiu estas cidades, todo o vale e todos os habitantes das cidades e até a vegetação da terra. A mulher de Lot olhou para trás e ficou transformada numa estátua de sal.
Abraão levantou-se de manhã cedo e foi ao lugar onde tinha estado na presença do SENHOR. Voltando os olhos para o lado de Sodoma e Gomorra e para a extensão do vale, viu elevar-se da terra um fumo semelhante ao fumo de uma fornalha. Ao destruir as cidades do vale, porém, Deus recordou-se de Abraão e salvou Lot do cataclismo com que arrasou as cidades onde habitava Lot.
Lot deixou Soar e fixou-se no monte com as suas duas filhas, porque temia continuar em Soar. Habitava numa caverna com as duas filhas. A mais velha disse à mais nova: «O nosso pai está velho, e não há homens nesta região, com quem nos possamos casar, como é de uso em toda a parte. Vamos embriagar o nosso pai e deitarmo-nos com ele, a fim de não deixar extinguir a raça do nosso pai. Naquela mesma noite, pois, deram a beber vinho ao pai, e a mais velha deitou-se com ele, que de nada se apercebeu, nem quando ela se deitou nem quando se levantou. No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: «Deitei-me ontem com o nosso pai; embriaguemo-lo também esta noite, e vai deitar-te com ele, a fim de não se extinguir a raça do nosso pai.» Também naquela noite deram a beber vinho ao pai, e a mais nova deitou-se com ele, que de nada se apercebeu, nem quando ela se deitou nem quando se levantou.
E, assim, as duas filhas de Lot conceberam do próprio pai. A mais velha deu à luz um filho, ao qual deu o nome de Moab, pai dos moabitas, que vivem ainda hoje. A mais nova teve igualmente um filho, ao qual deu o nome de Ben-Ami, pai dos amonitas, que vivem ainda hoje.

28/03/2011

O lobo e o cordeiro



De ardente sede obrigados,
Foram ao mesmo ribeiro
A beber das águas frescas
Um lobo e mais um cordeiro.

O lobo pôs-se da parte
De onde o regato nascia;
O cordeiro, mais abaixo,
Na veia de água bebia.

A fera, que desavir-se
Co’a mansa rês desejava,
Num tom severo e medonho
Desta sorte lhe falava:

«Por que motivo me turvas,
A água que estou bebendo?»
E o cordeirinho inocente
Assim respondeu, tremendo:

«Qual seja a razão que tenhas
De enfadar-te, não percebo!
Tu não vês que de ti corre
A mim esta água que bebo?»

Rebatida da verdade,
Tomou-lhe a fera cerval:
«Aqui haverá seis meses,
Sei de mim disseste mal.»

Respondeu-lhe o cordeirinho
De frio medo oprimido:
«Nesse tempo, certamente,
Inda eu não era nascido!

– Que importa? Se tu não foste –
Disse o lobo carniceiro; Foi teu pai.»
E, por aleives,
Lacera o pobre cordeiro!

Esta fábula dá brados
Contra aqueles insolentes
Que por delitos fingidos
Oprimem os inocentes.


Tradução de Malhão

Um A no peito



Era uma vez uma T-shirt com um A impresso no peito. Ou melhor: era uma vez um rapazinho com uma T-shirt, que tinha um A impresso no peito. Um A grande. Muito bem desenhado. Com dois traços assim, a descer, cada qual para seu lado, e outro assim, a cortá-los, na horizontal. Claro que todos sabem como é que se escreve um A. Mas deixem-me também a mim provar que sei...
Perguntavam ao menino, o tal da T-shirt com um A impresso no peito:
- Como é te chamas? António?
- Não.
- Alberto?
- Não.
- Álvaro?
- Não.
- Ah! Pois claro. Chamas-te André!
- Não.
- Agostinho?
- Não.
- Almiro?
- Não.
- Alfredo?
- Não.
- Alípio?
- Não.
- Albano?
- Não.
- Não é possível! Então como é que tu te chamas?
- Timóteo.
- Timóteo? Mas não tem A. Espera: estás a usar uma T-shirt emprestada?
- Não.
- Nesse caso o A é nome de família... Chamas-te Timóteo Alves? Almeida? Amorim? Andrade? Antunes?
Não havia meio de acertar.
Só então é que a T-shirt se explicou:
- Não gosto que me tratem por T-shirt. Chamo-me Camisola de Manga Curta e de Algodão. O A de algodão é nome de família.
Foi a partir desta altura que as outras peças de roupa passaram a exigir, bem assinaladas, as respectivas letras iniciais do apelido. L de lã para as meias. S de seda para as blusas. F de feltro para as calças.
E se não fizermos a vontade, a roupa já disse que deixa de nos servir.
Que transtorno, ehm!? Principalmente no Inverno...

António Torrado

27/03/2011

Lakshmi



Numa época remota, existia um grande Asceta, o Sábio Durvasa. Um dia, ele estava caminhando com uma guirlanda de flores na mão, que na Índia se chama "Santanaka" para oferecê-la a Indra. Indra que vinha na posição oposta cavalgando o elefante Airavata, passou pelo sábio e o ignorou. Indra fez com que Airavata pisasse e rasgasse a guirlanda de flores. Durvasa se encheu de ira e rogou uma praga em Indra:
"O orgulho da riqueza subiu à sua cabeça, Lakshmi irá te abandonar."
Então Indra, que havia percebido a loucura que tinha feito, se curvou perante Durvasa e pediu seu perdão. Durvasa disse: "Que Vishnu o faça feliz" e partiu.
Por causa da maldição de Durvasa, Lakshmi deixou Indra e desapareceu. Como Lakshmi, a deusa da prosperidade, poder e coragem, desapareceu, a vida dos Devas se tornou miserável. Os Assuras depois dessa oportunidade, invadiram o paraíso, derrotaram Indra e os Devas em uma guerra e ocuparam o paraíso. Indra perdeu seu reino e todo seu poder para os Assuras, e os Devas perderam sua imortalidade e seu valor.
Vários anos se passaram. O mestre de Indra, Brihaspati pensou num caminho para acabar com os problemas de Indra. Então ele foi juntamente com os Devas falar com Brahma, que os levou até Vishnu, de acordo com os desejos dos Devas. Então Vishnu disse: "Não tenham medo, eu lhes mostrarei uma maneira, o mar de leite precisa ser agitado. É certamente uma tarefa muito difícil, então façam amizade com os Assuras, e peçam sua ajuda. Usem a montanha Mandara como poste, e Vasuki, o rei das serpentes como corda. Eu irei ajudar na hora certa. Quando o oceano é agitado, o Amrita emerge das profundezas, bebam ele e sejam imortais, vocês ganharam força e poderão derrotar os Assuras. Quando o mar for agitado, Lakshmi que havia desaparecido, reaparecerá e derramará sua graça sobre vós".
Brihaspati foi muito inteligente. Ele foi ter com os Assuras, e com astucidade conseguiu fazer amizade com os mesmos. Então ele pediu que os ajudassem no Batimento do mar de Leite. Os Assuras aceitaram, porque secretamente queriam o Amrita para eles. Depois de conseguirem a ajuda dos Assuras, eles começaram a fazer oferendas ao Oceno de leite. Os Devas e os Assuras ofereçeram toda sorte de ervas e plantas para o Oceano. Todos se juntaram para realizar a tarefa de adquirir o Monte Mandara. Eles alcançaram a planície onde o majestoso monte estava posto. Depois de grande trabalho de cavar, conseguiram desarraigar o monte da terra. Eles então tentaram carregar a montanha Mandara para o oceano, mas o peso da montanha era demais para eles, muitos morreram e muitos se machucaram. Pouco tempo depois Vishnu chegou e com um olhar ressucitou todos os mortos e curou todos os feridos. Então ele mandou Garuda carregar o monte mandara para o oceano. Garuda carregou o monte Mandara nas suas costas até a beira-mar, então o imergiu no oceano de leite. Ele amarrou Vasuki o rei das cobras como corda no monte. Os Assuras e os Devas ficaram cada um com uma ponta da serpente, então começaram a bater no oceano. O batimento continuou por um longo tempo sem que nada emergisse dele, até que o monte começava a deslizar para o fundo do oceano. Os Devas e os Assuras não poderiam continuar com o batimento sem o monte mandara. Até que eles foram abençoados com a Misericórdia de Vishnu. Vishnu, escutou o choro deles e veio logo ao resgate. Então ele tomou a forma de Kurma, seu Avatar com forma de tartaruga, colocou o monte nas costas e o levou de volta à superfície. Os Devas e os Assuras respiraram aliviados, pois agora poderiam continuar com o batimento do oceano. O Batimento do oceano de leite continuou com vigor. Então surgiu do fundo do oceano uma nuvem de fumaça que sufocava os Devas e os Assuras. Então eles começaram a clamar por socorro, pois estavam sem saber o motivo do sufocamento, até que descobriram que o Oceano tinha expelido o "Kalakuta", um veneno mortal. Todos estavam amedrontados diante da ferocidade do veneno. Os Devas oraram fervorosamente por Shiva e esperaram que ele poderia vir para ajudá-los, pois era uma substância que corroía tudo que tocava, e Shiva era o mais resistente dos Deuses. Shiva escutando o clamor dos Devas, rapidamente veio ao local, então, como foi pedido pelos Devas, Shiva concordou em beber o veneno. Shiva reteu o veneno em sua garganta, e salvou os Devas da destruição. O veneno era muito poderoso, tanto que fez com que a garganta de Shiva ficasse azul, por isso até hoje ele é chamado de "Neel-Kantha", que significa "aquele que tem a garganta azul". Depois que o veneno foi consumido por Shiva, os Devas e os Assuras continuaram mais uma vez com o Batimento do Oceano de leite. Pasado algum tempo com o batimento do oceano, os Presentes Celestiais tomaram forma, o batimento trouxe à tona vários tesouros perdidos:

Sura (deus do vinho); Chandra (a lua); Apsaras (ninfas celestiais); Kaustabha (uma jóia preciosa para o corpo de Vishnu); Uchchaihshravas (o cavalo divino); Parijata (a árvore dos desejos); Kamadhenu (a vaca sagrada); Dhanvantari (o médico dos deuses) Airavata (o elefante de quatro trombas) Panchajanya (concha sagrada de Vishnu) Sharanga (o arco invencível).

Continuando com o batimento, no meio das ondas do oceano de leite, uma deusa angelical apareceu, ela estava sentada em cima de um lótus desbarochado com um colar de flores de lótus no pescoço e segurando um lótus na mão. Sua aparição foi a mais atraente de todas. Em sua face havia um sorriso brilhante, era a própria Lakshmi!
Os sábios começaram a entoar cânticos em honra de Lakshmi, enquanto as apsaras dançavam. Os elefantes esguichavam água sagrada nela, ela adquiriu o nome de Gajalakshmi. O rei do oceano apareceu em sua forma natural e revelou que Lakshmi era sua filha. O rei presenteou Lakshmi com jóias e roupas, dando à ela uma guirlanda de flores de lótus. Quando todos os Devas olhavam surpresos, Lakshmi colocou a guirlanda no pescoço de Vishnu e, a partir daí, começou a habitar seu coração. Quando Lakshmi olhou para Indra ele logo adquiriu vigor e um brilho extraordinário.
Os Devas e os Assuras continuaram a bater no oceano, até que finalmente Dhanvantari emergiu do mar. Dhanvantari é o médico dos Devas. Ele carrega um pote sagrado nas mãos, esse pote continha o Amrita, néctar que garante imortalidade a quem bebesse. Quando os Assuras viram o que tinha acontecido, correram e tomaram o pote das mãos de Dhanvantari! Aqui começa a luta entre os Assuras e os Devas. Vishnu que via tudo, resolveu ajudar os Devas. Ele se disfarçou de Mohini. Mohini emergiu do oceano com beleza e graça. Ela chegou para os Assuras e perguntou:
"Porque vocês estão lutando?"
Eles responderam:
"Nós lutamos porque queremos o Amrita!"
Mohini sorrindo disse:
"Não briguem pelo Amrita! Se vocês aceitarem, eu mesmo sirvo ele pra vocês! Façam duas filas, uma de Devas e outra de Assuras!"
Os Assuras encantados aceitaram a proposta, assim como os Devas. Mohini, com seus truques, serviu veneno aos Assuras e Amrita aos Devas. Os Assuras encantados nem se tocaram do truque que havia sido usado. Os Devas beberam o Amrita e ganharam imortalidade, então começaram uma guerra com os Assuras, os quais foram derrotados facilmente.

26/03/2011

Lakshmi



Lakshmi é uma divindade do hinduísmo, esposa do deus Vishnu, o sustentador do universo na religião hindu. É personificação da beleza, da fartura, da generosidade e principalmente da riqueza e da fortuna. A deusa é sempre invocada para amor, fartura, riqueza e poder. É o principal símbolo da potência feminina, sendo reconhecida por sua eterna juventude e formosura.
Lakshmi é uma Shakti, a esposa de Vishnu. Manifesta o poder que sustenta o Universo e o mantêm em equilíbrio. É representada sobre a flor de lótus, símbolo da pureza e do conhecimento. Valoriza a beleza, a generosidade, a justiça, misericórdia e representa o bem-estar, a boa alimentação, fertilidade, riqueza espiritual e material, saúde e sorte.
Pode ser vista sentada sobre uma flor de lótus, ou segurando flores de lótus nas mãos, e um cântaro que jorra moedas de ouro.
Geralmente atribui-se a Lakshmi o símbolo da suástica, que representa vitória e sucesso. Apadma é o nome dado a Lakshmi, quando representada sem o lótus, ao sair do Oceano.
Lakshmi é uma Deusa Indiana consorte Vishnu, um Deus Protetor, que é muito amada por seu povo. Foi ela que deu a Indra, o Rei dos Deuses, o soma (ou sangue do conhecimento) do seu próprio corpo para que ele produzisse a ilusão do parto e se tornasse o Rei dos Devas.

A Deusa Lakshmi significa "boa sorte" para os hindus. A palavra "Lakhsmi" é derivada da palavra "Laksya" do sânscrito, significando o "alvo", o "objectivo".

24/03/2011

Thor em Jotunheim



O deus Thor, filho de Odin, estava viajando rumo a Jotunheim, a terra dos Gigantes, junto com Loki e seu criado Thialfi, quando chegaram todos a uma grande floresta.
- Alto! - disse ele, erguendo o braço. - Vamos parar aqui e procurar um lugar protegido para passar a noite.
Cada qual seguiu para um lado até que Thor exclamou:
- Acho que encontrei um bom lugar!
Thor estava diante da entrada de uma imensa caverna; portando um archote, ele adentrou-a junto com os demais.
- É um lugar amplo e bem seco! - disse o servo Thialfi.
- Será que não é a toca de algum animal? - perguntou Loki.
- Vamos ver! - disse Thor, avançando mais para o interior.
Após investigar com cautela o local, perceberam que estava desabitado.
- Vejam! - exclamou Loki. - Há várias câmaras por aqui!
De facto, a caverna bifurcava-se em cinco câmaras amplas e separadas do tamanho de grandes salões.
- Vamos passar a noite nesta - disse o deus do trovão, acomodando-se junto com Loki e Thialfi na mais ampla das câmaras.
Os viajantes dormiram um bom pedaço da noite, quando, subitamente, foram despertados por um tremendo baque seguido de um ruído assustador, que lembrava o grito de mil ursos.
- O que foi isto? - exclamou Loki, pondo-se em pé.
Thor e Thialfi ficaram alertas, mas ao ruído seguiu-se um profundo silêncio. Então, todos voltaram a dormir e, como o ruído assustador não voltasse a acontecer, estiveram em paz o restante da noite.
Na manhã seguinte, saíram todos da caverna.
- Que ruído pavoroso terá sido aquele? - indagou Thialfi, que ainda estava intrigado com o incidente da noite.
- Esqueça - disse Thor -, florestas escuras como estas são pródigas em ruídos misteriosos.
Mas, o deus estava enganado, pois, logo adiante, deram de cara com um monstruoso gigante que, estirado na relva, ainda dormia profundamente.
- E esta agora? - disse Thialfi, amedrontado.
- Vamos embora, antes que ele acorde! - sussurrou Loki, dando as costas do gigante. Infelizmente, a orelha dele era tão grande, que captou o sussurro dos três e, logo, seus gigantescos olhos abriram, cobertos por remelas do tamanho de batatas fritas.
- Quem são vocês e o que fazem aqui? - gritou a criatura prodigiosa, erguendo-se com uma rapidez espantosa para alguém do seu tamanho e se pondo i procurar algo com grande avidez.
- Sou o poderoso Thor e venho com meus companheiros de Asgard no rumo de Jotunheim - disse o deus, empunhando por cautela o seu martelo Miollnir.
Mas o gigante continuava a andar de lá pra cá, sem dar muita atenção aos forasteiros até que, de repente, deu um grande grito:
- Ah, achei!...
Era a sua luva, que Thor e os demais haviam tomado por uma caverna. E a câmara, que todos haviam achado confortável e espaçosa, não era mais do que o polegar da luva!
- Sou Skrymir e vou indo também para Jotunheim - disse ele, enquanto ajeitava a luva. - Por que não vamos todos juntos?
Loki deu uma olhadela para Thor, mas este fez um sugestivo sinal com o martelo para que aceitassem o convite do gigante.
Após uma rápida refeição, seguiram em frente, tentando a muito custo acompanhar as enormes passadas do gigante, que andava adiante deles, balançando nas costas sua ruidosa mochila de provisões. Ao ver, entretanto, que os asgardianos também levavam algum mantimento, declarou com a mais cândida das vozes:
- Hum... vejo que vocês também têm o seu farnel! Partilhemos, então, como bons companheiros de viagem, as nossas provisões...!
Skrymir tomou as mochilas dos três e as introduziu dentro da sua e, com isto, estava feita a partilha.Assim, viajaram durante todo o dia com o gigante regalando-se de hora em hora, ao mesmo tempo em que os outros penavam sede e fome contínuas, até que o dia escureceu novamente e todos acomodaram-se sob uma grande árvore para descansar e passar a noite. O gigante, entretanto, antes de começar a roncar disse aos outros para que se servissem, livremente, dos mantimentos que havia em abundância na sua mochila, acrescentando cinicamente: "dormir de estômago vazio provoca pesadelos".
Não houve uma transição muito grande entre suas palavras e seu sono, pois antes que sua boca se fechasse novamente, fez-se ouvir por toda a floresta o som de seu poderoso ronco. Enquanto isso, Thor, tão faminto quanto os seus companheiros, tentava abrir a maldita mochila. Infelizmente, ela estava tão bem amarrada, que foi impossível desatar-lhe um único nó. Depois de lutar por um longo tempo com os nós cegos, Thor acabou por perder de vez a paciência e exclamou, irado:
- Definitivamente, este gigante sujo está debochando de nós!
O deus agarrou o seu martelo e avançou para o gigante, que permanecia adormecido, e desfechou um furioso golpe em sua testa. Um estrondo cavo ressoou por toda a floresta, como se um pavoroso trovão tivesse eclodido.
- O que houve? - disse Skrymir, abrindo um de seus olhos. - Oh, esta árvore deve estar cheia de ninhos de pássaros, pois acaba de cair uma pena de um filhotinho sobre a minha testa. - Depois, voltando-se para Thor e seus companheiros, perguntou: - Como é, já fizeram a refeição...? - Mas, antes que o deus pudesse responder - e certamente reclamar - Skrymir já havia adormecido outra vez.
Thor, inconformado com a desastrada tentativa, empunhou novamente o seu martelo e chegando ao pé do gigante desferiu-lhe novo golpe, agora, sobre o topo do crânio.
Skrymir acordou e levando a mão à cabeça, resmungou:
- Diacho! Agora foi uma noz que caiu! - Em seguida, virou de lado e voltou a dormir, como se nada houvesse acontecido.
Loki e Thialfi observavam as infrutíferas tentativas de Thor sem nada dizer, temerosos de que a ira do deus acabasse por se voltar contra eles. Thor resolveu esperar que o dia começasse a amanhecer para tentar um último e definitivo golpe. "De manhã estarei descansado e, então, darei cabo deste miserável!", pensou, acomodando-se para dormir.
Tão logo o sol raiou, ele se pôs em pé, mais disposto, embora ainda esfomeado e percebendo que o gigante ainda dormia profundamente, tomou de seu martelo e aplicou-lhe um golpe tão violento, que o instrumento se enterrou até o cabo dentro da cabeça do desgraçado, que acordou com um grande bocejo.
- Ou estou muito enganado - disse ele, alisando os cabelos - ou algum passarinho largou uma titica sobre a minha cabeça! - Pondo-se em pé, Skrymir conclamou os demais para que também acordassem.
- Vamos, preguiçosos...! - disse ele, estendendo os braços e derrubando dezenas de árvores à direita e à esquerda. - O sol está alto e Jotunheim já está perto!
Já haviam começado a andar, quando Skrymir resolveu advertir-lhes:
- Preparem-se, pois lá encontrarão gigantes de verdade!
- Quê? - exclamou Thialfi, incrédulo. - São ainda maiores do que você?
- Maiores...? Você deve estar brincando! - disse o gigante, dando uma sonora gargalhada. - Meu nanico, logo vocês verão que eu não passo de um anão perto deles!
Andaram mais um pouco, até que chegaram a uma grande encruzilhada.
- Muito bem, aqui nos separamos - disse Skrymir abruptamente.
Os três entreolharam-se, surpresos, não sem uma ligeira e indisfarçada manifestação de alívio.
- Mas você não vai para Jotunheim? - perguntou Loki.
- Não, vou para o norte, mas vocês devem seguir a estrada que vai para leste. Dou-lhes, entretanto, o conselho para que evitem se mostrar arrogantes quando chegarem à terra dos gigantes, pois os habitantes do lugar, e em especial Utgardloki, não admitem que forasteiro algum demonstre presunção diante deles - ainda mais, umas formiguinhas feito vocês.
Antes que Thor pudesse responder, o gigante já estava tomando o seu rumo.
- Adeus, amigos! Foi um prazer viajar ao seu lado! - disse Skrymir, lançando para as costas a sua recheada mochila. Com duas ou três passadas, desapareceu pela floresta, deixando Thor e os outros a caminho do país dos gigantes.

***

Os três companheiros já haviam caminhado bastante desde a separação, quando avistaram uma cidade no fim de uma extensa e elevada planície.
- Vejam, lá está um grande palácio! - disse Loki, apontando para a construção, que mesmo de longe já era imensa.
Aquele era o castelo de Utgardloki, um dos reis de Jotunheim, o qual, embora o nome, não tinha parentesco algum com o acompanhante de Thor.
Na verdade, era um palácio tão alto que ao tentar avistar a mais alta de suas torres quase caíram todos de costas. Quando baixaram os olhos, novamente, deram-se conta de que os imensos portões estavam fechados.
- E agora, poderoso Thor? - disse o servo Thialfi, cocando a cabeça.
- Vamos tentar abri-los à força - disse o deus do trovão, apoiando as duas mãos na porta maciça, enquanto retesava os músculos das pernas para tentar entrar no palácio.
Loki e o criado uniram-se aos esforços do deus, mas foi tudo em vão: as portas não moveram-se um único milímetro.
- Ufa!... - exclamou Loki, enxugando o suor da testa. - Por que não tentamos bater a aldrava?
De facto, havia uma gigantesca aldrava de bronze colocada no meio do portão, mas estava fora do alcance de qualquer um deles. Então, Thor, depois de estudar melhor a porta, descobriu que havia uma pequena fenda entre as duas pesadas folhas. Para os gigantes era uma fenda tão desprezível que seus olhos não podiam nem percebê-la, mas, para os visitantes, era uma passagem perfeitamente possível de ser atravessada - desde, é claro, que não se importassem em se espremer um pouquinho.
- Vamos entrar neste palácio nem que seja a última coisa que eu faça! - exclamou Thor, que possuía em grau admirável a virtude da persistência.
Thor se espremeu, então, até conseguir ultrapassar a estreitíssima fenda, sendo seguido imediatamente pelos dois companheiros.
- Ótimo! - exclamou Loki. - Já estamos dentro!
- Chhh! - fez Thor. - Temos de pegá-los de surpresa, senão nos expulsarão daqui antes mesmo que estejamos em seu salão. Ou esqueceu que deuses e gigantes são inimigos implacáveis?
Os três foram avançando, assim, pé ante pé, enquanto vozes retumbantes ecoavam pelos corredores. Por diversas vezes cruzaram com sentinelas postados à margem dos vastíssimos corredores, mas eles eram tão imensos em comparação com os intrusos, que, a menos que tivessem olhos nas canelas, jamais teriam sido capazes de percebê-los.
- É ali o salão dos gigantes! - disse Thor aos demais.
Tomando a dianteira, o deus escalou um pequeno banquinho e se fez anunciar dali com sua portentosa voz, que, no entanto, diante do vozerio assumiu as proporções diminutas do zumbido de um mosquitinho.
Loki, sempre apreciador do ridículo, seja humano ou divino, fazia um grande esforço para controlar o seu riso, enquanto que o criado Thialfi fingia ter perdido algo pelo chão.
Tomando, então, Miollnir, o seu poderoso martelo, Thor começou a malhar o banco onde estava até fazê-lo em pedaços.
- Atenção, todos! Sou Thor e vim aqui para desafiá-los!
Algumas cabeçorras, atraídas pelo ruído do martelo, voltaram-se para a direção de onde provinha aquele minúsculo, mas agora nítido ruído. Ao avistar Thor, entretanto, puseram-se a rir, deliciados, apontando para os visitantes dedos enormes como toras de carvalho desprovidas de ramos.
- Oh, então, você é Thor, o famoso deus do trovão? - exclamou uma voz, postada na ponta da grande mesa onde estavam assentados os gigantes. Ela pertencia a Utgardloki, o maioral do lugar.
- Sim, é Thor, o matador de gigantes, quem está à sua frente! - esbravejou o deus num assomo verdadeiramente admirável de audácia.
- Oh, longe de nós querermos pôr à prova a veracidade de suas palavras - disse o líder dos gigantes, descobrindo os dentes num ar de evidente deboche, embora, interiormente, tivesse dúvidas se não seria mais prudente evitar um confronto com o famoso deus (vai que era mesmo verdade o que diziam de sua força...!).
- Muito bem, forasteiros, aproximem-se - disse Utgardloki, fingindo-se bom anfitrião. - Há sempre lugar à minha mesa para mais três bocas!
"Ainda mais deste tamanhinho!", disse ele à boca pequena (por assim dizer) aos seus vizinhos de mesa, que imediatamente caíram na gargalhada.
- Mas, para que desfrutem de minha generosa hospitalidade - continuou a dizer Utgardloki em tom grandiloquente -, terão os três de nos brindar com algum prodígio de força ou habilidade!
Loki, que não estava para muitas conversas, e sentia dentro do estômago um buraco do tamanho daquelas criaturas, adiantou-se e disse:
- Quanto a mim, o único prodígio do qual me sinto capaz, neste instante, é o de comer mais do que qualquer um de vocês!
- Muito bem, está aceito o desafio! - disse um deles, erguendo-se no mesmo instante. Era Logi, um dos gigantes mais fortes - e seguramente mais esfomeado - de todo o bando. - Vamos começar o desafio imediatamente!
Loki sentou-se em frente ao gigantesco Logi e, logo, travessas imensas de carne foram postas diante dos dois. Para Loki, a carne foi servida sob a forma de pernis, enquanto, para o gigante, foram servidos bois inteiros.
Dado o sinal, os dois competidores arreganharam os dentes e lançaram-se às suas porções com terrível voracidade. Loki fez jus à sua fama de voraz comilão, tendo
esvaziado a sua travessa no mesmo espaço de tempo que o adversário. Só que este, como a perfeita personificação da Fome, não só devorara a sua porção como também os ossos e a travessa, o que lhe valeu a vitória.
- Muito bem, agora é a sua vez, nanico! - disse Utgardloki a Thialfi, que aguardava em suspense a sua vez de provar o seu valor.
- Bem, se eu tenho alguma virtude, senhor gigante - foi dizendo o criado de Thor - é a de ser o mais veloz dos mortais. Por isto, desafio qualquer um dos presentes a me vencer numa corrida.
Hugi, o mais veloz dos gigantes ali presentes, bradou da outra ponta da mesa:
- Vamos, saiam da frente, que esta é comigo!
Thialfi voltou o rosto, rapidamente, em direcção ao distante local de onde a voz soara, mas antes que seu eco tivesse terminado, ele já estava diante dele.
- Então, nanico, está pronto? - disse Hugi, com um sorriso superior.
O rei ergueu-se e foram todos para uma pista que havia no lado de fora do castelo.
Os dois, Thialfi e Hugi, foram colocados lado a lado, até que Utgardloki concluiu, a seu modo, a contagem regressiva:
- Dez! nove! oito! sete! quatro! seis!... Dez! nove! oito! cinco! dois!... Dez! nove! sete! seis! meia dúzia!... Ora, inferno, partam de uma vez!
Os pés de ambos começaram a correr com tal agilidade, que ficou muito difícil observá-los. Mas, com um esforço maior podia-se divisar as pernas de Thialfi, as quais alternavam-se com tamanha rapidez que pareciam imóveis.
De repente, entretanto, percebeu-se num pasmo, que Hugi já estava voltando!
De fato, o gigante fora tão rápido, que chegara ao fim da pista e retornava agora, cruzando por Thialfi, com uma grande risada. E, antes que o pobre Thialfi conseguisse completar o trajecto, o gigante voltou e venceu-o pela segunda vez.
Com Thialfi derrotado, chegara a vez de Thor enfrentar o desafio. Como estivesse muito sedento, propôs aos gigantes uma disputa de bebida.
- Tragam-me o maior chifre que houver, repleto de hidromel e beberei tudo de um único gole! - disse o deus, confiante em seu fôlego prodigioso. Utgardloki trouxe um chifre verdadeiramente imenso - tão imenso, que não se podia enxergar a sua extremidade - e o colocou diante de Thor.
- Pronto, aqui está, falastrão! - disse ele. - Se for mesmo forte, beberá seu conteúdo de um só trago. Se não for tão resistente assim, precisará de dois grandes tragos. Agora, se for um maricas, então, terá de dar três longos goles. Mas, não creio que tal aconteça, pois nunca ninguém tão fraco assim se apresentou por aqui! - acrescentou o gigante, empinando logo o chifre.
Thor encheu os pulmões de ar e colou a boca ao bocal, puxando todo o conteúdo do gigantesco chifre. Suas bochechas ficaram infladas e lustrosas, mas tão logo engoliu aquele grande trago, percebeu que ainda havia muito para ser engolido. Na verdade, a marca que indicava a quantidade existente dentro do recipiente mal se movera. Derrotado na primeira tentativa, Thor tomou novo fôlego e puxou nova e assustadora quantidade para dentro da boca, que quase estourou de tanto líquido. Mas, foi em vão: a marca permanecia praticamente inalterada. Os gigantes entreolhavam-se com risos e caretas.
- Não quer tentar uma última vez? - disse Utgardloki ao pé do ouvido de Thor.
Enchendo os pulmões de ar, o deus sorveu um último e prodigioso gole, a ponto de o hidromel escorrer-lhe pelas barbas numa verdadeira cachoeira.
- Desisto! - disse Thor, sabendo que nem em mil goles conseguiria beber todo o conteúdo.
- Que pena! - exclamou Utgardloki, falsamente condoído. - Pensei que o poderoso deus fosse um pouquinho mais resistente! Mas, como você é uma divindade muito respeitada, vou dar-lhe uma nova chance em um novo desafio! - disse Utgardloki, fazendo sinal para que trouxessem o seu grande gato cinzento.
- Temos aqui uma nova competição da qual participam somente as crianças:
consiste apenas em levantar do chão meu gato de estimação. É lógico que eu não teria me atrevido a propor tal brincadeira ao grande Thor seja não tivesse comprovado a sua lamentável fraqueza!
O magnífico gato, apesar de também ser gigantesco, não parecia, de facto, representar um desafio acima das forças de Thor. Por isso, o deus acolheu o desafio com um sorriso de alívio.
Thor aproximou-se do bichano, dizendo: "Aqui, Mimi, aqui!" O gato aproximou-se de mansinho com suas patas branquinhas da cor da neve e ronronou suavemente. Então, o deus envolveu o gato em seus poderosos braços e começou a suspendê-lo - ou a imaginar que o suspendia, pois na verdade o gato apenas esticara um pouco as suas pernas para dar a impressão de que cedia aos esforços do deus.
- Está difícil, deus do trovão? - disse o gigante, escarnecendo.
Todos os demais riam fungado, fazendo coro com o rei, inclusive, o gato, que parecia ter na boca ornada por elegantes bigodes um sorriso sutil de ironia.
Por mais que Thor forcejasse, nada conseguiu, além de fazer o gato erguer uma de suas patas brancas, o que pareceu, por fim, mais uma condescendência do bichano do que qualquer mérito seu.
- É fracote mesmo! - disse um dos gigantes, dobrando-se de tanto riso.
Utgardloki balançava a cabeça numa fingida desolação.
Thor, entretanto, tornara-se a tal ponto irado por causa de tantas humilhações, que resolveu lançar um último desafio aos atrevidos gigantes.
- Está bem, sou pequeno - disse o deus, espumando de raiva -, mas quero ver qual de vocês está disposto a lutar comigo!
- Meu amigo - disse Utgardloki, olhando para os homens sentados nos bancos -, aqui os fortes só brigam com os fortes. No entanto, conheço alguém a quem talvez você possa fazer frente. Chamem Elli, a minha velha ama - disse o rei a um lacaio.
Dali a instantes entrou no salão uma velha de cabelos ralos e brancos, que endereçou a Utgardloki um sorriso deserto de dentes.
- Velha Elli, aí está um desaforado que diz poder derrotá-la! - disse o gigante à velhota, que, no mesmo instante, começou a arregaçar as saias, preparando-se para o embate. - Mostre a ele quem é o mais forte por aqui!
O deus e a velha postaram-se no centro do salão e a um sinal do gigante a luta começou. Thor arremessou-se à adversária com certa cautela, pois não pretendia maltratar aquela velha centenária. Mas, ela não era nada daquilo que aparentava, e dando um pulo para o lado, que fez inveja ao próprio gato, esquivou-se do ataque e veio postar-se às costas de Thor. Em seguida, aplicou uma valente chave em um dos braços do adversário com tal força, que Thor viu-se obrigado a se ajoelhar e a reconhecer a derrota.
Com isto, encerraram-se as disputas. Thor e seus humilhados companheiros receberam um leito cada qual para descansar antes de partir na manhã seguinte. Tão logo os primeiros raios do sol surgiram no horizonte, já estavam os três prontos para ir embora daquela terra infamante. Utgardloki mandou que lhes servissem uma mesa repleta de iguarias e bebidas. Depois, acompanhou-os até a porta da cidade, e, antes que partissem, perguntou:
- E, então, Thor, gostou da viagem e da hospitalidade?
- Se lhe agrada saber, direi que nunca fui tão humilhado em toda a minha vida! - disse o deus, cabisbaixo, louco para ganhar a estrada.
- Bem, agora já pode se acalmar - disse Utgardloki, tão logo haviam transposto os portões do palácio. - Agora, que você está fora da cidade posso lhe contar o que, verdadeiramente, ocorreu.
Os três entreolharam-se, sem nada entender.
- Palavra de honra, se soubesse que possuía uma força tão descomunal e companheiros tão extraordinariamente competentes jamais teria permitido que aqui entrassem. Na verdade, iludi-os o tempo todo com minhas artimanhas. Primeiro, na floresta, onde amarrei a mochila com arame para que não pudesse desamarrá-la.
- Você? - exclamou Loki.
- Sim, Skrymir era eu mesmo! - disse Utgardloki com um grande riso. - Aquelas três pancadas que me desferiu com seu martelo, seguramente, teriam-me esfacelado o crânio, caso me tivessem realmente atingido! Mas, fui hábil o bastante para enganá-lo no momento certo, entrando para debaixo da terra, de modo que suas pancadas atingiram enormes montanhas, produzindo aquelas fendas profundas, que podem ver lá adiante.
Os três asgardianos olharam naquela direção e viram três grandes abismos que o martelo de Thor abrira naquelas encostas.
- Da mesma forma, foram enganados nas outras disputas - continuou a dizer o gigante. - O adversário de Loki na disputa da comilança não foi outro, senão o próprio Fogo, que devora tudo quanto encontra pelo caminho. Já aquele contra quem Thialfi disputou a corrida era o Pensamento, sendo impossível a qualquer um correr na mesma velocidade que ele.
Loki e Thialfi pareceram aliviados ao descobrir que não haviam sido humilhados, afinal.
- Quanto a você, poderoso Thor, jamais poderia ter esvaziado aquele imenso chifre, pois ele estava ligado na outra ponta ao inesgotável oceano; mesmo assim, se olhar bem na direção do mar, verá que ele está com a maré bem baixa, o que prova a quantidade prodigiosa de água que engoliu! Quanto ao gato, cumpre dizer que operou um feito não menos invejável, pois aquele bichano era na verdade a serpente Midgard, a vasta serpente que contorna toda a terra com suas longas espirais. Ficamos verdadeiramente espantados quando vimos que havia conseguido erguê-la um pouco acima do chão. Mas, de todas as derrotas, com certeza, a menos infamante foi a que lhe pareceu a mais vergonhosa: pois aquela velhota contra a qual lutou era a própria Velhice e jamais alguém pôde vencê-la em tempo algum.
Ao escutar o fim do discurso de Utgardloki, Thor mostrou-se tão furioso - pois, afinal, havia feito papel de bobo diante de toda aquela corte - que ergueu seu martelo Miollnir, pronto a aplicar um castigo de verdade ao gigante. Este, porém, percebendo o perigo, desapareceu instantaneamente.
Sem se dar por vencido, Thor retornou ao castelo para destruir tudo, mas quando lá chegou, uma última decepção o aguardava: o castelo havia desaparecido, como num passe de mágica!

O velho e a Morte


Um miserável velho se afligia
Com um feixe de lenha que trazia:
Jogou com ele ao chão, já de cansado,
E chamou pela Morte, agoniado.

Aparecendo-lhe esta, perguntava
Com que fim tão solícito a chamava.
«Rogo-te – disse o velho, de mãos postas
Que me ajudes a pôr o feixe às costas.»


Tradução de Couto Guerreiro


21/03/2011

O pavão e o grou



O pavão zombava do grou por causa da cor de sua plumagem:
- Minha roupa é de ouro e púrpura, já a tua plumagem não tem nenhuma beleza.
- Só eu - respondeu o grou -, canto entre as estrelas, e meu voo me leva às alturas; tu, igual a um galo, caminhas pela terra como a galinhada.

Moral: Melhor a glória em andrajos que a desonra no fausto.


Fábulas de Esopo

19/03/2011

O carneiro e o porco


Um porco tinha-se misturado a um rebanho de carneiros e pastava com eles. Um dia o pastor o pegou. Como ele gritasse e resistisse, os carneiros o repreenderam:
- Nós ficamos berrando quando ele nos pega?
O porco replicou:
-Questão de detalhe. Quando ele corre atrás de vocês, é porque quer sua lã ou seu leite, mas de mim ele quer a carne.

Reclamamos com razão quando querem tirar não teus bens, mas tua vida.


Fábulas de Esopo

A raposa e o leopardo



Uma raposa e um leopardo estavam deitados descansando depois de um laudo jantar e se distraíam falando da própria beleza. O leopardo tinha muito orgulho de sua pele lustrosa e toda pintada, e dizia à raposa que ela era completamente sem graça. A raposa se orgulhava da bela cauda estufada com a pontinha branca, mas tinha o bom senso de reconhecer que não chegava aos pés do leopardo em matéria de aparência. Mesmo assim, continuou com suas brincadeiras, fazendo troça do outro só pelo prazer da discussão e para não perder a prática. O leopardo já estava quase perdendo a paciência quando a raposa levantou bocejando e disse:
- Você pode ter um pêlo muito requintado, mas estaria mais bem servido se tivesse um pouquinho mais de requinte dentro da cabeça e menos ao redor das costelas, como eu. Para mim, beleza de verdade é isso.

Moral: Nem sempre bela embalagem anuncia belo recheio.


Fábulas de Esopo

17/03/2011

O pastor e o leão



Um pastor que apascentava seus animais perdeu um bezerro. Como já andara todo o campo em vão, fez uma promessa a Zeus: sacrificar-lhe um cabrito se descobrisse quem era o ladrão. Nesse ínterim, ele viu, à beira de uma floresta, um leão devorando o bezerro. Tomado pelo medo, levantou os braços para o céu e exclamou: "Ó Zeus soberano, há pouco fiz uma promessa para te oferecer um cabrito se eu encontrasse o ladrão; agora imolarei um touro se eu escapar das garras dele".

Assim agem os que, na dificuldade, procuram uma saída que, depois de encontrada, só pensam em se safar.


Fábulas de Esopo

Uma ideia de pulga



Era uma senhora que tinha uma menina. Era uma menina que tinha um cão. Era um cão que tinha uma pulga. Era uma pulga que tinha uma ideia.
Que ideia seria?
Não sabemos. E, como não sabemos, o melhor é perguntar:
- Ó pulga, que ideia é a tua?
- Uma grande ideia, uma ideia que vai mudar tudo. Uma ideia ex-tra-or-di-ná-ri-a!
E, ao dizer isto, a pulga saltitava de entusiasmo. Saltos de pulga em pêlo de cão dão comichão. O cão, que não era de cócegas, parou e coçou-se. A menina do cão parou, à espera do cão. A senhora, que levava a menina pela mão, parou também. Como iam a atravessar uma rua de muito movimento, parou o trânsito. Nas outras ruas, que iam dar à rua de muito movimento, parou tudo - automóveis, camionetas, autocarros... Buzinavam os carros. Gritavam as pessoas:
- Então esta história anda ou não anda?
E nós, para a pulga:
- Deixa-te de saltinhos e salta lá com essa ideia extraordinária, que estamos todos à espera.
- É muito simples - disse ela. - Para que as histórias com cães, meninas e senhoras possam ir à sua vida, sem serem interrompidas pelos saltos de uma pulga, eu proponho, eu exijo, que, daqui em diante, as pulgas deixem de usar saltos altos.
- Ah! - admirámo-nos nós, que não sabíamos que as pulgas usavam saltos altos.
A pulga continuou:
- Nós, de saltos altos, não conseguimos passar despercebidas, quando pisamos, quando saltamos. Por isso eu proponho, eu exijo, que as pulgas, em vez de sapatos de saltos altos, passem a calçar pan-tu-fas ou sapatinhos leves, que não chamem a atenção ao pisar.
Mas parece que a ideia não pegou. Ainda ontem vimos um cão a coçar-se, furiosamente. Ter-se-ão esgotado as pantufas, no mercado das pulgas? Nada disso. Era um colégio de pulguinhas novas, na aula de ballet. Todas de sapatilhas leves, a dançar em pontas... Estas ainda vão esperar muito tempo até usar pantufas...


António Torrado

A Corça que salvou a vida do marido



Era uma vez um veado que comandava um rebanho de cervos e vivia em uma floresta com sua bela esposa. A corça era muito fiel a seu marido e o ajudava em qualquer assunto.
Certo dia, o veado foi pego em uma armadilha de um caçador, e a corça ficou tão assustada quanto o próprio veado. Todos os amigos do veado fugiram, deixando-o para trás, mas sua esposa ficou junto a ele, esperando pelo caçador. Ela era muito devotada a seu marido. Logo que o caçador chegou, ela caiu de joelhos e implorou: “Senhor, por favor, faça uma boa cama de folhas para mim e meu marido, e então me mate, e depois meu marido, e assim você terá um belo banquete.”
O caçador ficou tão maravilhado e surpreso pelo amor da corça que, antes mesmo de preparar a cama de folhas, libertou o veado da armadilha, de modo que o casal de animais fugiu no primeiro instante.

Moral: Um grande amor tudo pode.


Contos e Lendas da Mitologia Hindu

Os artifícios de Dalila, a trapaceira



Conta-se, ó afortunado rei, que vivia em Bagdá no reinado de Harun Ar-Rachid, um homem chamado Ahmed Danaf, que se destacara a tal ponto no roubo e na fraude que o califa, sempre atento a usar qualquer talento, nomeou-o chefe da polícia, com vencimentos de 5 mil dinares de ouro por mês, guarda de honra e tudo mais. Naquela mesma época, vivia na mesma cidade, uma temível megera chamada Dalila, conhecida sob a alcunha de Dalila, a Trapaceira. Vendo as recompensas que Ahmed recebia por ser um grande ladrão, jurou à filha, Zainab, a Embusteira, que inventaria embustes que fariam esquecer os de Ahmed. Começou por cobrir a face com um véu, vestir um manto de sufi com mangas tão largas que varriam o chão e pendurar rosários no pescoço. Assim disfarçada, saiu pelas ruas a repetir: "Alá! Alá!" em alta voz, rezando com a língua, enquanto o coração corria na companhia dos demónios e os olhos procuravam algo a explorar. Dentro em pouco, passou por um palácio sumptuoso e parou para pensar. Ora, esse palácio pertencia ao chefe de guarda do califa, um homem rico e influente, mas violento e mal educado. Chamavam-no Mustafá Terror-das-Ruas, porque, com ele, os socos vinham primeiro, e só depois as explicações. Esse homem era casado com uma linda mulher chamada Khatum a quem jurara, na noite da primeira penetração, nunca tomar uma segunda esposa. Naquela manhã, Mustafa tinha tido uma briga com ela. Pois, apesar de seus cabelos brancos, Mustafa estava sem filho algum, enquanto todos os homens com quem lidava tinham dois, três ou mais filhos. - Sai da minha frente, tinha gritado ele para a mulher. O dia em que te conheci foi um dia nefasto para mim. - O que está ocorrendo? perguntara a mulher. - Está ocorrendo que és uma tola estéril, um vale de pedras em que desperdicei minhas sementes. A mulher respondera no mesmo tom: "Digo-te que a culpa é tua. És um mulo estéril, com um nariz chato. Teus testí-culos só contêm água e sementes mortas." - Achas? Na volta tomarei outra mulher, e vere-mos, retrucara o homem e saíra. Khatum lamentou então sua falta de paciência e de enge-nhosidade e ficou à janela, preocupada. Naquele momento, Dalila a viu coberta de jóias e de vestidos luxuosos e bela como a lua. "Dalila," disse a bruxa a si mesma, "chegou a hora de abrir o saco de teus artifícios." Parou debaixo da janela a repetir: "Alá! Alá! Vós todos os amigos de Deus, abri caminho para mim." "Talvez," pensou a mulher de Mustafa, `Alá me conceda sua graça por intermédio desta santa mulher," e mandou Abu-Ali, o administrador da casa, convidá-la a subir.
A bela Khatum jogou-se aos pés da mulher e beijou-lhe as mãos. "Minha filha", disse a astu-ta Dalila, "vim porque Alá inspirou-me a ideia de que precisavas de meus conselhos." Kha-tum ofereceu à visitante toda espécie de iguarias conforme as tradições da hospitalidade árabe, mas Dalila negou-se a tocar em qualquer delas, explicando: "Não tenho apetite senão para as iguarias do Paraíso. Por isso, ando sempre de jejum, excepto cinco dias por ano." Khatum ficou ainda mais impressionada e contou à mulher seu drama com o marido. - Vê-se, minha filha, replicou a velha, que nunca ouviste falar das virtudes de meu amo, o Xeque Pai-dos-Impulsos, o Santo Multiplicador-das-Gravidezes. Uma única visita a este santo transforma qualquer mulher estéril num campo frutífero. Se quiseres, levar-te-ei até ele hoje mesmo e, quando voltares, deixa teu marido penetrar em ti; e ficarás grávida no acto. Ouvindo essas promessas, a ingénua Khatum ficou encantada, pôs seus vestidos mais ricos, cobriu-se de jóias e seguiu a mulher. Quando chegaram perto da loja de Sidi Muhsim, um formoso jovem mercador, ainda solteiro, Dalila pediu a Khatum que a esperasse e entrou na loja.
- Amigos teus te recomendaram a mim, disse a Sidi Muhsim. Aquela moça é minha filha. Seu pai morreu, legando-lhe uma fortuna imensa. Está saindo de casa pela primeira vez, pois acaba de atingir a idade do casamento. Apressei-me a sair com ela, conforme o aviso dos sábios: "Oferece tua filha cedo e teu filho tarde." Uma inspiração divina e os elogios de teus amigos trouxeram-me até aqui. Não queres casar-te com ela? Se és rico, serás mais rico. Se precisas de dinheiro, ela te dará o dinheiro deixado pelo pai, e terás duas lojas em vez de uma.
O mercador olhou para Khatum, e seu corpo e seu coração se derreteram.
- Aceito com gratidão tua proposta. Mas minha mãe, que era uma mulher experimentada, me fez jurar, antes de morrer, que examinaria pessoalmente qualquer virgem com quem quisesse me casar a fim de prevenir surpresas humilhantes.
-Neste caso, levanta-te e segue-me. Prometo mostrar-te tua noiva completamente nua.
O jovem mercador levantou-se, levou uma bolsa de mil dinares para enfrentar qualquer eventualidade e seguiu a velha charmuta, que pensava com alegria: "Agora, sábia Dalila, prepara-te para sacrificar este jovem touro." Ao passar pela loja do tintureiro Hajji Mahmud - um homem famoso no mercado pela dualidade de suas inclinações, tendo sua faca sempre pronta para cortar tanto machos como fêmeas - Dalila pediu aos dois jovens para esperar e dirigiu-se a ele.
- Com certeza és Hajji Mahmud?
- Sou, sim, senhora, que queres de mim?
- Amigos têm-me falado muito de ti nos termos mais lisonjeiros. Agora, olha para esse belís-simo casal formado por meu filho e minha filha, cuja educação quase me arruinou. A velha casa onde vivem comigo está ameaçada de ruir; já mandei reformá-la. Mas os trabalhos só ficarão prontos daqui a um mês. Até lá, preciso alugar uma casa para instalá-los. Fala-ram-me da casa que tens disponível. Por isso vim a ti. O tintureiro olhou para os dois jovens e regozijou-se. "Ó Hajji Mahmud, disse a si mesmo, eis biscoito com manteiga para teus velhos dentes!" E disse à mulher: `A verdade é que disponho do primeiro andar da casa onde moro; mas preciso de parte dele eventualmente para hospedar certos clientes que vêm de longe."
- Não te preocupes com isto, disse a mulher. Será nosso prazer partilhar esse andar contigo. O homem não se conteve mais, esperando muito dessa coabitação, e entregou as chaves dos dois andares a Dalila. Dalila levou os dois jovens à casa de Hajji Mahmud e, após pedir a Sidi Muhsim que esperasse, levou Khatum a um quarto do primeiro andar e disse-lhe: "Minha filha, no térreo desta casa mora o venerável Santo Multiplicador-das-Gravidezes. Iremos visitá-lo dentro de um momento. Só receio uma coisa. Ele tem por ajudante um filho idiota que não pode ver uma dama vestida como estás vestida sem pular sobre ela e rasgar-lhe a roupa e quebrar-lhe as jóias. Penso que seria melhor que tirasses a roupa e as jóias. Guardá-las-ei num lugar seguro até que voltemos da visita." A jovem mulher, feliz com a prometida gravidez, tirou imediatamente a roupa e as jóias e entregou-as a Dalila. Esta disse que iria avisar o santo e voltar para levá-la a ele. Trancou a porta, guardou o pacote num canto e foi procurar o jovem comerciante.
-A tua noiva virá logo toda nua para que a possas examinar conforme a promessa feita a tua mãe. Mas aconteceu uma coisa desagradável. Quando os vizinhos souberam que tenciono casar-te com minha filha, foram dizer-lhe: "Será que tua mãe não aguenta mais sustentar-te para que queira casar-te com um homem atingido de sarna e lepra? Que podia fazer senão prometer-lhe, como prometeste a tua mãe, mostrar-lhe seu noivo nu antes do casamento?
- Apelo para Alá contra a língua dos caluniadores, gritou o moço, e tirou espontaneamente toda a roupa.
- És tão são quanto bonito, disse a velha.
E vendo-o dobrar a roupa com o cinto, a bolsa com mil dinares e o punhal de prata e ouro, disse-lhe: "É muito perigoso deixar essas coisas tentadoras por aqui. Vou guardá-las num lugar seguro até depois da visita de tua noiva." Embrulhou-as e levou-as, prometendo voltar logo com a noiva nua. Apanhou o outro pacote, trancou a porta e foi embora. Voltou à loja do lascivo tintureiro, elogiou a beleza de sua casa e disse-lhe: "Vou agora transportar os móveis para lá. "Posso pedir-te um favor? Eis um dinar. Compra com ele pão e carne e leva-os a meus filhos que não comem desde ontem. E, por favor, almoça com eles."
- Quem tomará conta de minha loja?
- Teu aprendiz.
-Seja, disse o tintureiro que se alegrava já com a perspectiva de almoçar com os dois jovens. Dalila foi dispor dos dois embrulhos; e quando voltou à loja, disse ao aprendiz: "Teu amo manda-te ir encontrar-se com ele na mercearia onde está comprando pão e carne." - Ouço e obedeço. Assim que o aprendiz saiu, Dalila começou a juntar todos os objectos que podiam ser carregados. Enquanto isso, viu um burriqueiro passar na porta da loja, com seu asno. - Por Alá, disse-lhe, conheces meu filho, o tintureiro?
- Ninguém o conhece melhor do que eu.
- Saberás, bom amigo, que meu filho está falido. Pediu-me juntar os bens de seus clientes para devolver-lhes. Eis um dinar. Aluga me teu asno para levar esses objectos. Enquanto esperares por mim, quebra o que puderes dos móveis desta loja para que o cádi não encon-tre nada para confiscar.
- Com prazer, disse o burriqueiro. Pois teu filho tem sido sempre bom para comigo. E nada cobrarei pelo serviço.
O tintureiro comprou o pão e a carne e dirigiu-se para sua casa. Seu caminho passava pela loja. Viu, pois, o que o burriqueiro estava fazendo.
- Pára! Pára! gritou.
O burriqueiro parou e disse: "Meu coração está contigo. Graças a Alá, evitaste a cadeia."
- O que estás dizendo?
- Foste declarado falido e estou quebrando as coisas para que o cádi não encontre nada para confiscar.
- Quem te contou isto?
-Tua mãe que juntou os bens dos clientes, alugou meu burro e foi entregá-los.
- Ai de mim! Minha mãe morreu há anos, gemeu o tintureiro.
Compreendendo o logro de que era vítima, pôs-se a bater no peito e gritar alto: "Desgraça! Desgraça! Meus bens estão perdidos. Os meus e os dos meus cientes." O burriqueiro pôs-se a chorar, por sua vez, e a gritar: "Desgraça! Desgraça! Desgraça! Meu asno está perdido! Tintureiro de meu traseiro, devolve-me o asno que tua mãe levou." Hajji Mahmud lançou-se sobre o burriqueiro e surrou-o, gritando: "Onde está minha mãe a quem con6aste meus bens, ó burriqueiro mais burro que todos os burros." Um dos vizinhos raciocinou: "Já que a velha alugou a casa de Hajji Mahmud para instalar os filhos nela, por que não a procuram lá e põem as coisas em ordem?"
Foram lá. Bateram em vão à porta. Depois, quebraram-na e entraram. Encontraram um homem nu no térreo e uma mulher nua no primeiro andar.
- Onde está vossa mãe? perguntaram-lhes.
- Nós não somos irmãos, e ela não é a mãe de nenhum de nós. Roubou-nos até a roupa e deixou-nos neste estado.
E contaram toda a história. As quatro vítimas da trapaceira juntaram-se e foram ao califa. "Como iria descobrir uma velha mulher entre tantas velhas mulheres que vivem nesta cida-de?" perguntou o califa. Mas depois, lembrou-se de que designara Ahmed Danaf chefe da polícia justamente porque conhecia todos os ladrões de Bagdá. Chamou-o e ordenou-lhe localizar a velha megera e levá-la a sua presença.
- Ouço e obedeço, disse Ahmed e, em menos tempo do que se leva para contar o facto, localizou Dalila, a Trapaceira e levou-a à presença do califa.
A velha trapaceira jogou-se aos pés do califa e disse: "Califa de Alá, não roubei pelo prazer de roubar, mas somente para chamar a atenção de Vossa Majestade sobre mim. Sempre fui uma mulher virtuosa e pobre, e nunca roubei seja o que for, mas nunca recebi de Vossa Majestade a menor atenção, enquanto Ahmed Danaf, por ser o maior ladrão desta cidade, foi nomeado chefe da polícia com vencimentos de 5 mil dinares de ouro por mês."
O califa achou notável mais esta burla da famosa trapaceira e riu gostosamente. Depois, mandou indemnizar todas as vítimas de Dalila e nomeou-a chefe do khan, tendo sob suas ordens quarenta negros e quarenta cães de caça afegãos. "Tua cabeça responderá pela perda de qualquer um dos pombos, os quais são mais caros a meu coração que meus próprios filhos." Assim foi recompensada por sua vez a arte de enganar e roubar de Dalila, a Trapaceira. Louvado seja Aquele que ensinou aos califas a tolerância e a generosidade!


(tradução brasileira)

16/03/2011

O sócio do diabo

Diz que era uma vez um lavrador muito pobre que não conseguia medrar no seu trabalho. Tanto mais se esforçava menos rendia a tarefa ao pobre homem. Vai um dia, desesperado, gritou:
— Apareça quem me ajude mesmo que -seja o próprio Diabo!
— Aqui estou eu! respondeu o Demo.
Ajustaram logo o contrato. O lavrador ganhou um belo terreno e o Diabo lhe disse:
— Plante o que quiser que bem dará. Nascendo em baixo é meu e saindo em cima é seu…
O homem plantou milho, trigo e centeio que nasceram como um louvar a Deus. Quando a plantação estava no pé de ser ceifada, veio o Diabo cobrar a parte.
— Pode levar o que é seu…
Foi ver o Diabo o que era dele e só encontrou raízes sem valor. Ficou furioso e desmanchou o pacto, propondo outro: ‘
— Vamos às avessas. O que sair por cima é meu e sendo de-baixo é seu.
O homem aceitou. Vendeu o milho, o trigo e o centeio por bom dinheiro e plantou batatas, cenouras e nabos que era um nunca acabar. No tempo da colheita voltou o diabo pela sua parte.
— Leve o que está por cima que é o trato… O Diabo desta vez ficou desesperado com o logro. Desmanchou o negócio e propôs outro:
— Faço-o rico como um conde e, no fim de vinte anos, ganho su’alma. Está feito?
— Está feito, com uma condição; escrevemos tudo num papel que fica no meu poder e lhe darei ao fim dos vinte anos. Se passar um minuto depois da meia noite e você não tiver o contrato na mão, estarei livre.
— Só aceito se o papel ficar na minha mão no fim do prazo!
— Está feito o negócio….
Ficou o homem rico da noite para o dia, tratando-se do bom e do melhor, fazendo caridades. No fim dos vinte anos, dia por dia, foi falar com o vigário da paróquia e lhe pediu uma escudela cheia de água benta. Dentro da escudela meteu o papel e esperou o Diabo.
Quando este chegou, o homem foi dizendo:
— O papel está ali, dentro daquela escudela, bem à vista. É só tirar.
O Diabo meteu a mão para agarrar o papel e largou um uivo como se tivesse metido a pata nas brasas. Foi outra vez e gritou com a dor. Por mais que procurasse retirar o contrato a água benta não deixava. Depois de muito esforço, o relógio bateu doze pancadas. O homem, então, benzeu-se:
— Vai-te para as areias gordas, que eu de ti estou livre!
O Diabo estourou como um petardo e foi para o Inferno. O homem continuou rico e feliz, morrendo quando Deus o permitiu.


Conto tradicional português