( 391x375 , 253kb)


28/08/2011

Um peixe na sala



- Não gosto nada que olhem para mim - dizia o peixinho vermelho com riscas azuis, que morava no aquário.
Era um grande globo de vidro, enfeitado com algas, umas verdadeiras, outras a fingir, e estava, em lugar de destaque, na sala da tia Elisa.
Quem ia fazer uma visita à tia Elisa dava sempre uma mirada ao peixinho, que revolteava na água, muito enervado.
- Detesto que me observem - dizia o peixe. - Se as pessoas vivessem em aquários também não gostavam que andassem a espreitar para dentro das casas delas.
E o peixinho tentava esconder-se por trás de umas algas, mas sem nenhum êxito. Ou sobrava cauda ou sobrava cabeça.
A tia Elisa, que era uma simpática velhinha, cuidava dele com todo o desvelo. O peixe conhecia-a bem e agradava-se das suas atenções. Era, aliás, a única pessoa que ele tolerava.
Mas a tia Elisa adoeceu. Doença grave. Vieram os médicos, parentes e amigos, que passaram a falar em voz baixa na sala de visitas, com ar muito preocupado. A única coisa que lhes atenuava a preocupação era o peixinho vermelho com riscas azuis, revolteando, alegre e indiferente, no meio do seu globo de vidro. Alegre e indiferente, julgavam eles, porque o peixinho não parava de queixar-se:
- Embirro que olhem para mim. Esta gente toda não tem mais nada que fazer senão postar-se, de olhos arregalados, diante do meu aquário?
Uma dessas pessoas, que distraidamente observava o peixe, teve o seguinte desabafo:
- Não sei quem vai cuidar do peixe, quando a tia Elisa desaparecer.
Para o peixe, a tia Elisa há muito que tinha desaparecido. Desde que adoecera. Quem lhe polvilhava a superfície da água com a ração diária de comida era uma empregada, mas sem as gentilezas da tia Elisa. O peixe sentia a diferença.
Até que, um dia, a tia Elisa morreu. Ficou a sala que tempos sem visitas, de cortinas descidas, portadas cerradas. Mas o peixe sentiu-se mais aliviado.
Entretanto, vieram os sobrinhos para desfazer a casa.
- Quem quer ficar com o peixe do aquário? - perguntou um deles.
Nenhum queria.
- Deita-se o peixe para o tanque do quintal - decidiu um e os outros concordaram.
O peixinho vermelho com riscas azuis foi parar a um tanque de águas profundas. Podia nadar à vontade, pelo meio das sombras e dos lodos, que já ninguém o via.
Foi então e só então que o peixe vermelho começou a sentir saudades do tempo em que todos olhavam para ele.

António Torrado

24/08/2011

O leão que vai à guerra



Tendo o leão na ideia certa empresa,
Fez conselho de guerra;
E a todos animais mandou aviso
Por seus régios alcaides.
Cada um, por seu teor, entrou no alvitre:
Às costas o elefante
Levar quantos petrechos importasse,
E pelejar, como usa;
Para os assaltos, o urso, aparelhar-se;
Engenhar-se o raposo
A ter inteligências no inimigo,
E diverti-lo o mono
Com suas mogigangas. Alguém disse
Que despedidos fossem,
Por boto o burro, e por medrosa a lebre.
«Oh, não! – disse o monarca –
Quero empregá-los: nem completo fora
Sem eles nosso exército.
De trombeta, que espante, sirva o burro;
E a lebre de correio.»
Do mais ténue vassalo o rei prudente
Tirar proveito sabe:
Todo o talento emprega; nada é inútil,
Onde o bom senso lavra.


tradução de Filinto Elísio

19/08/2011

O cão, o galo e a raposa



Um Cachorro e um Galo que viajavam juntos, resolveram se abrigar da noite, em uma árvore. O Galo se acomodou num galho no alto, enquanto o cão deitou-se num oco, na base do tronco da mesma. Quando amanheceu, o Galo, como de costume, cantou ao despertar.
Uma Raposa, que procurava comida ali perto, ao escutar o canto, se aproximou da árvore, e foi logo dizendo o quanto lhe agradaria conhecer de perto, o dono de tão extraordinária voz.
"Se você me permitir", ela disse, "Ficarei muito grato de passar o dia em sua companhia, apreciando sua voz."
O Galo então disse: "Senhor, por favor, dê a volta na árvore, e peça para meu porteiro lhe abrir a porta, pois eu o receberei de bom grado."
xxxx
Quando a Raposa se aproximou da árvore, o Cachorro a atacou afugentando-a para longe.
Autor: Esopo

Moral da História:
Quem age de má fé, cedo ou tarde acaba por cair na própria armadilha.


Fábulas de Esopo

Lenda do testemunho de Amor

Bensafrim é povoação muito antiga. Tão antiga que se perde na ronda do tempo. As suas tradições andam de boca em boca entre os mais velhos do lugar. E como a lenda é o fio doirado que tece a teia do maravilhoso, Bensafrim não podia fugir à regra. Vamos contar uma das lendas oriundas de Bensafrim.

Há muitos anos existia um rei jovem e belo. Tinha vindo de um povo que descera do norte e conquistara aquelas terras. Como ainda não casara, pensou em escolher mulher entre as jovens mais belas do país que viera governar. Porém, era muito exigente, pois receava que uma mulher vinda de um povo conquistado pudesse um dia atraiçoá-lo. Assim, imaginou para aquela que ele escolhesse o maior testemunho de amor que uma mulher pudesse dar. Enviou emissários por todo o reino para lhe trazer a mais bela das jovens encontradas. E no dia fixado uma fila imensa de jovens desfilou perante o seu senhor, sem que este parecesse entusiasmado. De súbito, o rei estendeu um braço e disse para um dos seus validos:
— Repara! Aquela jovem, além, junto à pedra da fonte!
O interpelado olhou. Franziu as sobrancelhas.
— Senhor, indicas-me aquela de cabelo tão loiro como as espigas?
— Essa mesma. É muito bela e recorda-me as mulheres do meu país.
O outro mostrou-se embaraçado.
— Senhor, ela é belíssima, decerto. Mas essa não a escolhemos, porque o pai foi dos que mais nos combateram, morrendo durante a luta. Não merece confiança!
O rei teve um suspiro de contrariedade.
— Pois é pena! Por essa é que o meu coração vibrou.
— Esquece-a, Senhor! Nem para simples prazer te pode servir, pois, como te disse, é perigosa!
O rei encolheu os ombros.
— Ora! Saberei dominá-la. Escolhe quatro ou cinco destas mulheres. Manda as outras embora. As escolhidas, dá-lhes prendas e ordena-lhes que se conservem no acampamento até amanhã. Quanto à loira, cor de espiga... diz-lhe que venha falar-me.
Embora atónito com a decisão do rei, o valido não teve outro remédio senão cumprir as ordens recebidas.

Devagar, a jovem entrou na tenda ricamente adornada.
— Senhor, mandaste-me chamar?
O jovem rei olhou-a sorrindo.
— Mandei. Aproxima-te.
A jovem obedeceu. Ele tornou:
— Tens família?
— Não, meu senhor.
— Desde quando vives só?
— Desde que pensaste conquistar a nossa terra.
— Teus pais morreram?
— Sim.
— Odeias-me, decerto!
— Sinto-me envergonhada por não ser assim!
— Tens vergonha, porquê?
— Porque devia odiar-te. Meu pai combateu-te até ao seu último alento. E eu devia fazer o mesmo.
— Porque não fazes?
— Porque perdi a coragem.
— Quando?
— Quando te vi.
— Porquê?
Ela olhou-o sem responder. Ele animou-a:
— Vamos, sê sincera comigo!
— Nunca menti!
— Nunca?
— Nunca, Senhor!
— Então, diz-me porque não me odeias?
— Porque... quando entraste nesta terra à frente dos teus homens... vi-te tão jovem… tão belo… tão forte e decidido que...
Ela calou-se. Ele sorriu abertamente.
— Vamos, continua!
Ela baixou os olhos.
— Senhor... Eu nunca vira um homem como tu!
— E daí?
— Tive pena de que não fosses dos nossos!
— Sou o teu rei. Portanto, tu és agora uma das minhas súbditas!
— Bem o sei. E se me chamaste porque tenho andado fugida, acredita que é do meu povo que fujo!
— Do teu povo?
— Sim. Sinto-me, como te disse, envergonhada de mim mesma. Serei incapaz de odiar-te, mesmo que me tirasses a vida!
O rei exultou.
— Eis uma esplêndida confissão! Diz-me: como te chamas?
— Griselda.
— Um nome estranho, como estranha é a tua beleza.
Pegou-lhe numa das mãos, que estavam frias e húmidas. Perguntou, adoçando a voz:
— Serás capaz de amar-me?
Com a maior sinceridade, a jovem respondeu:
— Já te amo, Senhor!
Ele riu.
— Óptimo! E gostarias de ser minha mulher?
Ela abriu os seus lindos olhos.
— Casar contigo, eu? Mas... sou pobre e sem família!
— Isso não me incomoda. Responde apenas: gostarias ou não de ser minha mulher?
— Sim! Seria a realização de um maravilhoso sonho!
— Pois casarás comigo, se te sujeitares a uma condição.
— Qual?
— Terás de obedecer-me cegamente em tudo quanto te pedir. Será esse o teu testemunho de amor.
Griselda sorriu, comentando:
— Senhor, é fácil obedecer a quem amamos.
— Conforme!
Ela meneou a cabeça.
— Não creio que isso me custe. A tua vontade será sempre a minha, pois já te amo desde que te vi entrar como triunfador.
— Que fazias junto à fonte?
— Queria ver-te. Sempre que posso, observo-te.
Ele riu. Depois chamou o seu valido e declarou-lhe, solene:
— Já encontrei a esposa que procurava. Podes tu escolher entre as cinco que foram eleitas. Mas chama toda a corte. Quero que oiçam a jura que Griselda vai prestar antes das nossas bodas.
O outro perguntou, curioso:
— Que jura, senhor?
— A de obedecer-me cegamente de hoje em diante. Será o maior testemunho de amor!
— E como saberás que será esse o maior testemunho de amor?
— O tempo falará por mim!
E resoluto:
— Vai... Espalha aos quatro ventos que o teu rei já arranjou esposa!
As bodas celebraram-se com a maior pompa. Ricamente vestida, Griselda era, sem dúvida, a mais bela jovem de léguas em redor. O régio par sentia-se feliz e a sua alegria transbordava para os que de perto com eles conviviam.

Um ano passou. Griselda adorava de tal modo o esposo que lhe perdoava qualquer modo mais brusco ou acedia sem protesto a assistir ao julgamento de algum conterrâneo mais rebelde.
Griselda andava radiante e o rei também. Esperavam um herdeiro. Os homens da corte diziam em voz baixa:
— Oxalá traga o sangue do nosso rei!
Nasceu um rapaz. Loiro como as espigas de trigo, olhos verdes, cor do mar. Griselda apertava-o ao peito, louca de alegria. Também lhe pareceu ver emocionado o rosto do seu amado esposo ao contemplar o seu menino. E sentiu mais quente o beijo que ele lhe deu. Passados oito dias, porém, Griselda viu entrar nos seus aposentos o rei seu esposo acompanhado de três dos seus conselheiros. Sem saber porquê, o seu coração bateu forte. Afrouxou o sorriso nos seus lábios. Estreitou o filho nos braços e ficou muda, olhando o seu senhor. E eis que ele a chamou com a voz solene dos grandes momentos:
— Griselda! Estás recordada do teu juramento?
Tremendo, ela declarou:
— Sim, meu senhor!
— Pois bem: sinto dizer-te que terei de matar o menino nascido de ti, porque um rei só pode ter descendência de sangue puro!
Griselda arregalou os olhos de pavor.
— Que dizeis? Vais matar o teu filho?
— Que é teu, também!
— Mas... porque casaste comigo?
— Porque juraste obedecer-me cegamente.
— Assim foi!
— Então, dá-me o menino!
Griselda abraçou o filho. Depois olhou o esposo. Baixou o olhar. Lágrimas silenciosas inundaram o seu rosto. O rei ordenou aos seus:
— Levem-no!
Griselda deixou que o filho lhe fosse arrebatado. Não teve um queixume. Fechou os olhos. Dir-se-ia à parte do mundo!
Sem dizer mais palavra, o rei deixou os aposentos da mulher. E durante meses não mais lhe apareceu.

Outro ano decorreu. Griselda parecia um fantasma vagueando pelo palácio. Um dia, inesperadamente, o rei veio visitá-la. E perguntou-lhe:
— Griselda, ainda me amas?
Com voz dolorida, ela confessou:
— Sim, meu senhor… embora devesse odiar-te!
— Pois bem. Se me amas, vais compreender a minha situação.
— Que situação, Senhor?
— O povo quer um herdeiro, mas de sangue puro.
— Já o calculava!
E eu peço-te que te retires do palácio e vás habitar novamente a tua casa de solteira, pois breve chegará do meu país a noiva que me destinaram. Ficarás com o suficiente para viveres.
Com o coração despedaçado, ela apenas disse:
— Jurei obedecer-te cegamente... e obedeço-te! Mas… porque não preferes tirar-me a vida?
— Porque deves viver para continuares a amar-me!
Griselda levou uma das mãos ao peito.
— Senhor, creio que não será por muito tempo. Mas enquanto o meu coração bater, só por ti baterá!
E sem querer ouvir mais foi arranjar as roupas que havia trazido de solteira, e saiu do palácio sem que alguém se opusesse à sua partida.

Mais outro ano passou. Griselda era visitada com frequência por um conselheiro do rei, a saber da sua saúde. Triste, mas sem um lamento, a esposa do rei sorria, afável, e tinha sempre a mesma resposta:
— Dizei ao meu senhor que estarei bem enquanto puder fazer a sua vontade.
O conselheiro abanou a cabeça, condoído.
— Senhora! Não sei se vos é possível ir mais além...
Ela pareceu assustada.
— Mais? Que pode o rei desejar de mim?
— Que consentis em ir assistir às suas novas bodas, pois acaba de chegar a esposa que ele esperava.
Griselda fez-se horrivelmente pálida. Para não cair, encostou-se à mesa da sua pobre casa. E respondeu, baixando o olhar:
— Enquanto tiver vida hei-de obedecer sempre, sem queixumes, aos desejos do meu rei!
— Viremos buscar-te.
— Quando?
— Dentro de alguns dias.
— Espero que ainda me encontrareis com a vida!
Saiu o conselheiro do rei. Só então Griselda se deixou cair sobre um banco, cabeça entre as mãos, sem lágrimas já para chorar!

Amparada pelas damas, Griselda deixou-se vestir com as maiores galas. Uma das damas perguntou:
— Senhora! Não sentis curiosidade em saber porque vos vestimos assim?
Ela sorriu. A sua voz era fraca.
— O vosso rei e senhor não deseja que a sua nova esposa me encontre mal trajada!
Sorriram as damas, entreolhando-se. Uma delas arriscou:
— Admiro-vos! Como podeis suportar tanto?
Cada vez mais fraca, Griselda respondeu:
— Se suporto... é porque posso aguentar. De outra forma já teria feito companhia ao meu adorado filho!
— Mas vós consentistes...
— Perdoa... se não falo mais em tal assunto... Mas não devo… nem posso...
Tremia Griselda, ainda admiravelmente bela, embora magra e pálida como defunta.
Soaram trombetas. As damas sorriram.
— Vamos! Preparai-vos para tudo!
A outra dama recomendou:
— Cuidado! Não faleis demais!
Griselda aceitou os braços que lhe ofereciam, mas caminhou com firmeza. Algo de estranho fazia-lhe bater mais forte o coração. Uma das damas censurou:
— Senhora, caminhais com tanta energia que vais cansar-te!
Ela ainda encontrou forças para sorrir e dizer:
— Vou ao encontro do nosso rei!
O salão esplendidamente decorado estava cheio. No trono, o rei. Vaga, a cadeira da rainha. Quando Griselda entrou, toda a corte se manifestou com respeito e alegria. O rei veio buscá-la. Olhou-a nos olhos profundamente. Beijou-lhe uma das mãos e disse alto:
— Senhoras e senhores! Eis a vossa rainha, a quem fiz passar pelas mais duras provas! Em público quero pedir-lhe perdão pelo que a fiz sofrer e regozijar-me pelo grande testemunho de amor que me deu a mulher que eu amo e que escolhi para minha esposa!
Não disse mais o rei. Griselda desmaiara de comoção!
Foi um burburinho. Vieram físicos para a reanimarem. Lentamente, a rainha voltou a si. Abriu os olhos. Viu o seu senhor, as damas da corte, os conselheiros do rei, mas os seus olhos procuravam mais. Algo mais que ali não via. E aos seus lábios subiam perguntas ansiosas, mas que não queria formular, não fossem elas desgostar o rei. Por fim, foi o próprio monarca quem falou.
— Griselda, sei o que procuras! Sei o que busca o teu olhar ansioso. Já mandei buscar o nosso filho! Ele vive! Vive, e é lindo e bom como tu!
Griselda fechou os olhos. Lágrimas límpidas correram pelo seu rosto emagrecido. Apertou a mão do esposo e murmurou:
— Senhor, mostra-me o meu filho!... Depois... poderei morrer!
O rei ciciou:
— Não morrerás! Os físicos vão curar-te! Quero-te a meu lado por muitos anos! E quero dar-te em alegrias o que te dei em sofrimento!
Uma aia entrou no aposento onde estava a rainha. Trazia ao colo um lindo menino. Griselda abriu os olhos, estendeu os braços e murmurou:
— Meu adorado filho!
Os braços descaíram de novo. A cabeça descaiu também. Desmaiara uma vez mais. Aflitos, os físicos acorreram. O rei perguntou:
— É grave o que tem a rainha?
Um dos físicos olhou o rei.
— Senhor, não sei se poderá resistir. Foste grande, tanto no tirar como no dar!
O rei abriu os olhos num espanto.
— Não quero que ela morra! Eu amo-a, podem crer!
Fez-se silêncio a seu lado. Mas, lá fora, o vento veio bater ao de leve na janela da câmara de Griselda, como um convite a segui-lo na liberdade do espaço...


Gentil Marques
Faro

17/08/2011

O dragão das nove e trinta



Leva uma rica vida o dragão da minha história. É verde, como dizem que são os dragões, tem escamas que o cobrem de cima a baixo e uma espinha eriçada em dentes de serra, do pescoço ao rabo. Como se vê, é um dragão vulgar.
Agora imaginem-no, como eu imagino, carregado de meninos. Imaginar não custa nada.
Nestes dias de Verão, por volta das nove e trinta, passa pela minha rua, deitando muito fumo pelas ventas, o dragão de que vos falo.
Pára nas paragens dos autocarros e para ele sobem os meninos em férias. Quando estão todos instalados, o dragão buzina alegremente e põe-se a andar. Não sabiam que os dragões buzinavam? Pois buzinam, mas só quando estão bem-dispostos.
Com o seu carregamento de meninos, o dragão toma o caminho da praia. Corre ao lado do comboio, que também leva o mesmo sentido, e quase sempre chega primeiro.
Na praia, assim que o último menino salta para a areia, o dragão mete-se dentro de água, faz-se pequenino e transforma-se num hipocampo, isto é, num cavalo-marinho, para poder nadar sem chamar a atenção. Perder a banhoca é que nunca!
Ao fim da tarde, volta a crescer e a apresentar-se como um dragão aprumado e responsável, que nunca se esquece de que tem de trazer os meninos de volta para casa.
À noite, trabalha na Feira Popular. Como tem uma bocarra lança-chamas, ocupa-se a assar frangos ou sardinhas. E, sempre que pode, vai dar uma voltinha no carrossel. Rica vida!


António Torrado


13/08/2011

O cão e o seu reflexo



Um cão estava se sentindo muito orgulhoso de si mesmo. Achara um enorme pedaço de carne e a levava na boca, pretendendo devorá-lo em paz em algum lugar.
Ele chegou a um curso d´áqua e começou a cruzar a estreita ponte que o levava para o outro lado. De repente, parou e olhou para baixo. Na superfície da água, viu seu próprio reflexo brilhando.
O cão não se deu conta que estava olhando para si mesmo. Julgou estar vendo outro cão com um pedaço de carne na boca.
Opa! Aquele pedaço de carne é maior que o meu, pensou ele. Vou pegá-lo e correr.
Dito e feito. Largou seu pedaço de carne para pegar o que estava na boca do outro cão. Naturalmente, seu pedaço caiu n`água e foi parar bem no fundo, deixando-o sem nada.

Moral: Quem tudo quer tudo perde.


Fábulas de Esopo

12/08/2011

O sapo e o rato


Um rato do campo criou fortes laços de amizade com uma rã. Esta teve a infeliz ideia de atar a pata do rato à sua. E foram juntos pelos campos para arranjar alimento. Quando chegaram à beira de um açude, a rã arrastou o rato para o fundo, lançando-se na água com espalhafato. O pobre do rato, de tanto beber água, morreu. Como seu cadáver flutuasse, amarrado que estava à pata da rã, um milhafre veio e o levou em suas garras. A rã foi forçada a ir com ele e terminou também na pança do milhafre.

Moral: A tua vítima, mesmo morta, pode ainda punir-e; a justiça divina tudo vigia e, com o olho na balança, dá a cada um o que merece.


Fábulas de Esopo

11/08/2011

O dedo do ladrão





Conta-se que na madrugada do dia 11 de Agosto de 1908, na Capela do Parque da Nossa Senhora de La Salete, em Oliveira de Azeméis, o guarda da capela estava dentro a dormir. Em determinada altura, um ladrão entrou e, não se apercebendo da presença do guarda, dirige-se ao altar onde estava a imagem da Nossa Senhora de La Salete, em busca do anel sagrado. O ladrão, como não conseguia tirar o anel, partiu o dedo à santa.
De repente, o guarda da capela acordou e, ao ver o ladrão no interior da capela, não hesitou e disparou um tiro de caçadeira, tendo acertado no mesmo dedo do homem que havia sido partido à santa.
O ladrão fugiu e o dedo ficou caído no chão, tendo sido depois guardado num frasco. Ainda hoje lá está para quem o quiser ver.

Oliveira de Azemeis


10/08/2011

A Faia e a Cananoura



A Faia alta e direita não queria dobrar-se ao vento, antes vendo a Cananoura que se meneava facilmente, a aconselhava que estivesse tesa, sem dobrar-se. Respondeu a Cananoura:
- Tu podes resistir e eu não, que não tenho raízes compridas, nem sou forte como tu és.
Dizendo isto, veio um pé de vento com braveza, que arrancou a Faia com raízes e tudo; mas a Cananoura, que se dobrou, ficou em pé.


Fábulas de Esopo
(Século VI a.c.)

08/08/2011

Onde vamos passar as férias


O macaco, o beija-flor e o grilo eram amigos, muito amigos, mas nem sempre se entendiam. Acontece...
Uma vez, decidiram passar férias juntos.
- Vamos escolher o sítio mais lindo do mundo - concordaram os três. Mas onde?
- Tenho uma ideia - disse o macaco. - Vamos para um armazém de bananas. Os outros não eram da mesma opinião.
- A minha ideia é melhor - disse o beija-flor. - Vamos para um jardim cheio de flores, carregadinhas de néctar, para nós sorvermos.
Os outros não eram da mesma opinião. O macaco e o grilo não se imaginavam a voar, de flor em flor, nem nunca tinham aprendido tal habilidade.
- A minha ideia é a melhor de todas - disse o grilo. - Venham atrás de mim. Seguiram-no. Não foram longe.
- Têm de concordar que este sítio, onde vos trouxe, é o mais lindo do mundo. Apreciem! - e o grilo apontava para uma toca de madeira podre, no meio de um monturo.
E ainda não foi daquela vez que o macaco, o beija-flor e o grilo passaram as férias juntos. Mas continuaram amigos.

05/08/2011

Até a metade do céu

Quando o rei de Wei decidiu construir uma torre que iria chegar até a metade do céu, ele deu uma ordem:
- Quem tentar me dissuadir, será condenado à morte.
Xu Wan, um ministro de Wei, procurou-o com um cesto nas costas e uma lança na mão.
- Senhor, ouvi que está querendo construir uma torre que vai chegar até a metade do céu - disse Xu,- e seu humilde servo veio lhe oferecer ajuda.
- O que de forte tem para me oferecer?- quis saber o rei.
- Eu não sou forte - respondeu Xu- mas eu posso trabalhar no projeto da construção.
- Sim - disse o rei.
- Senhor, ouvi dizer que a distância entre o céu e a terra é de 15 mil li. Como quer construir uma torre que chega até a metade da distância entre a terra e o céu, a torre deve ter 7.500 li de altura. Para agüentar essa estrutura, os alicerces devem ter a circunferência de oito mil li. Toda a suas terras juntas, senhor, não são suficientes para os alicerces. Há muito tempo atrás, os reis Yao e Shun estabeleceram ducados com a circunferência de cinco mil li. Se estiver determinado a construir essa torre, deve primeiro atacar os duques e pegar todas as terras deles. Mas ainda não vai ser o bastante. Deve também expulsar várias tribos que vivem em longínquas regiões ao norte, ao sul, a leste e a oeste. Quando conseguir uma áreas com limites de oito mil li, aí, sim, será o suficiente para os alicerces. Quanto a questão do material de construção, trabalhadores e depósitos de comida, tudo isso deve ser calculado em algumas centenas de milhões. For a da área cercada de 8 mil li, uma grande extensão de campos deve ser escolhida para a produção de comida para os trabalhadores se alimentarem enquanto estiverem construindo a torre. Quando todas essas condições para a construção das torres forem preenchidas, o trabalho pode começar.
O rei ficou calado, sem encontrar uma resposta. Ele abandonou a idéia da construção da torre.



28/07/2011

Lenda dos Sete Ais



A lenda que vou contar é um tanto estranha, na verdade. Mas justifica — segundo a tradição — o nome de um lindíssimo local do concelho da nossa famosa Sintra. Desta vez, porém, não foi nenhum velho nem velhinha quem me contou a Lenda de Seteais, mas sim uma jovem de alma sonhadora que vive sempre debruçada sobre as histórias românticas do nosso País. Histórias que ela escuta em noites de Inverno, junto à lareira, contadas por seus avós…

Quando D. Afonso Henriques, ajudado por uma esquadra estrangeira, conquistou Lisboa aos Mouros em 25 de Outubro de 1147, o castelo de Sintra rendeu-se sem resistência, apenas sob a condição dos mouros seus moradores se poderem estabelecer em terras vizinhas, o que lhes foi outorgado.
Entre os cavaleiros mais chegados ao rei, estava o jovem D. Mendo de Paiva, um dos designados pelo monarca para ocupar o castelo. D. Mendo foi o primeiro a subir a serra de Xentra. Chegado ao alto, parou um instante. A azáfama era enorme. Fazia-se a retirada. Chocavam-se os homens e as mulheres, em vozearia. Os mouros mais destacados utilizavam uma saída secreta, que D. Mendo não tardou a descobrir — no momento preciso em que uma jovem moura ia a sair por ela, acompanhada da sua velha aia. Ao vê-lo, a fugitiva afligiu-se, pois esperava poder escapar aos olhares dos vencedores. Com o nervosismo da surpresa, gritou. Zuleima, a sua velha aia, ficou ainda mais aflita. E indagou, com o medo estampado no rosto:
— Anasir! Por que gritaste?
Ela respondeu, mal refeita ainda do susto:
— Não pude conter este meu ai.
D. Mendo sorriu. E perguntou, cavalheiresco:
— Senhora, causo-vos assim tanto medo?
A jovem moura tapou o rosto com os véus e respondeu:
— Sois cristão, e não estava preparada para encontrar-vos.
Ele barrou-lhe a passagem. Sorria sempre. E perguntou:
— Por que escondeis tão grande beleza sob esses véus?
A resposta foi pronta:
— Porque não deveis conhecer o meu rosto!
Sorriu mais ainda o fidalgo cristão.
— Mas o destino quis que vos visse! Todavia… talvez tivesse sido melhor não vos ter encontrado!
Foi a velha aia quem perguntou:
— Porquê, senhor? Não ides permitir que partamos? Temos licença de sair em liberdade. O que pretendeis são os nossos bens e as nossas terras, não é assim? Pois aí fica tudo! Posso partir?
D. Mendo respirou fundo, e quase maliciosamente retorquiu:
— Sim, podes partir. Deixa-me tudo... sem esquecer a tua querida ama!
Aflita, Anasir soltou novo grito de susto, embora desta vez mais abafado. Mas logo Zuleima lhe pegou nas mãos, presa de novo pavor.
— Anasir, minha querida ama! Já é o segundo ai num tão curto espaço de tempo! Evitai essa exclamação, peço-vos!
D. Mendo olhou a velha aia com surpresa. Não menos surpreendida, a jovem moura repreendeu a sua companheira.
— Não te compreendo, Zuleima. No momento em que o inimigo te propõe deixares-me abandonada, só te preocupas com a minha pobre exclamação de repulsa e tristeza?
Zuleima mostrou-se ainda mais aflita. Tentou justificar-se:
— Querida Anasir! Vós não podeis entender-me porque ignorais a razão do que me atormenta. Mas confiai em mim. Sabeis que vos amo e que por vós daria a vida. Não solteis mais nenhum ai! Quanto ao cavaleiro cristão, vai agora ouvir-me.
D. Mendo apressou-se.
— Pois falai, velha Zuleima! É este o teu nome, não é verdade?
Veio seca, a resposta.
— É. Bem o entendeste, na boca da minha ama.
— Fala, então!
— Pois bem! Ouvide. Vou sair deste castelo, mas levando comigo a jovem princesa, que me foi confiada pela mãe, à hora da morte. Estava também a cargo do governador deste castelo; mas o medo falou nele mais alto que o dever. E partiu com a família pela passagem secreta. Agora, Anasir só tem o carinho desta humilde serva!
D. Mendo perguntou:
— É tudo quanto tens para dizer-me?
— Assim o creio, pois vamos sair e espero não tornar a encontrar-vos.
D. Mendo replicou:
— Pois vou fazer segunda proposta. Ficarás acompanhando a tua querida menina. Mas apressa-te a seguir-me. Não quero que te vejam!
Anasir interrompeu-o.
— Senhor! Tratais-nos como despojos de guerra! Não fazemos parte das alfaias que ficam neste castelo!
D. Mendo olhou fundo nos olhos negros da jovem moura. Adoçou a voz.
— Anasir! Seria difícil explicar-vos agora porque não consentirei em deixar-vos. Mas tentarei quanto me for possível para vos fazer feliz!
— Agora tomais-vos misterioso?...
— Vereis que não existem mistérios. Há apenas necessidade de partir, e já!
Zuleima atalhou:
— Oiço ruído! Parece um exército!
— São os meus homens que chegam. Não há tempo a perder! Se vos vêem...
Passos apressados soaram perto. Anasir assustou-se e gritou. Mas já D. Mendo lhe tapava a boca com a mão:
— Senhora! É preciso que vos leve daqui sem que vos vejam!
Porém, mais pálida ainda, Zuleima apontava a sua jovem ama quase sem poder falar. Anasir indagou:
— Que estais vendo?
Ela esclareceu:
— Não vejo: ouvi! Ouvi o vosso terceiro ai num espaço de tempo tão curto!
— E que tem isso, Zuleima?
Como se estivesse vendo um fantasma, a velha aia exclamou:
— É o destino a marcar-nos com o fogo da sua destruição! E porquê? Porquê?...
Alteava já a voz, indiferente ao que pudesse surgir depois. Apontou o cavaleiro D. Mendo.
— Fostes vós, cristão, que nos trouxestes a desgraça! Fostes vós!
Vendo-a tão desesperada, Anasir tentou acalmá-la.
— Zuleima! Que se passa?
Esta respondeu no mesmo tom de amargura:
— Prometei-me! Prometei-me, Anasir, que não soltareis mais nenhum ai! Fazei essa graça à vossa humilde serva!
Anasir olhava-a, perplexa. D. Mendo também. Por fim, a princesa moura acalmou-a.
— Se isso te dá alívio, prometo-te, Zuleima, que farei o possível para não pronunciar mais nenhum ai. É isso o que pretendes?
— Sim, minha querida ama!
Soaram vozes muito perto. Eram os cristãos que chegavam junto ao corredor que dava para a parte sul da serra. D. Mendo tomou Anasir por um braço e segredou-lhe, quase:
— Vinde comigo! Quero isolar-vos dos que estão a chegar. Tenho aqui perto um grande terreiro e uma pequena casa. A paisagem é maravilhosa. Sabeis montar?
Ela respondeu:
— Sei. Dai-nos um só cavalo. Isso nos bastará. Eu levarei Zuleima.
D. Mendo meneou a cabeça.
— Perdoai-me, mas a experiência tornou-me desconfiado. Vós ireis no meu cavalo e Zuleima montará outro.
— Ela monta mal, senhor!
— A distância é curta. Além disso, não tendes por onde escolher.
— E se eu recusar?
O olhar de Anasir era um desafio. D. Mendo cobrou energia, e declarou:
— Se recusardes... levar-vos-ei à força e separar-vos-ei de Zuleima!
Resoluto, pegou-lhe com certa violência num pulso. Ela gritou:
— Ai!
Zuleima agarrou-lhe os vestidos. Nasceram lágrimas nos seus olhos.
— Senhora, senhora!... Havíeis prometido!... E afinal...
Anasir respirou fundo. Parecia confusa.
— Tens razão. Mas não compreendo...
As vozes dos cristãos estavam mais perto ainda. D. Mendo impôs-se.
— Partamos!
E em breves instantes o cavaleiro cristão ajudava Zuleima a montar num cavalo, e colocava Anasir no seu, dirigindo-se para a casinha do terreiro...

Começava o Sol a descer, quando D. Mendo acabou de instalar na casa a princesa moura e a velha aia.
Anasir olhou em volta. Sentou-se comodamente. Sorriu. Zuleima investigava o brilho do olhar da sua jovem ama. Declarou, confusa:
— Não vos entendo.
Ela olhou-a.
— De que te admiras?
Respeitosa, embora deixando transparecer na inflexão das suas palavras um pouco de censura, Zuleima elucidou:
— Senhora, somos mouras... Vós sois princesa. Perdemos uma guerra. E vós, mais do que isso: perdestes Aben-Abed!
Ela voltou a sorrir.
— Sim, Zuleima, perdemos uma guerra. Agora é necessário encontrar a paz. Quanto a Aben-Abed... creio que não o perdi: foi ele que me perdeu...
— Que dizeis?
Anasir olhou D. Mendo, que a escutava em silêncio. E perguntou:
— Senhor!... Já alguma vez amastes?
Ele respondeu, convicto:
— Até hoje, não!
Ela continuou:
— Pois bem: se de hoje em diante amásseis, seríeis capaz de deixar ao abandono a escolhida do vosso coração, só porque o inimigo estava perto e era necessário fugir?
D. Mendo aproximou-se. Pegou numa das mãos da princesa moura e levou-a aos lábios, dizendo:
— Senhora, a resposta trouxeste-a convosco. Não parti sem vos trazer, Anasir!
Ela baixou os olhos. Destapou o seu lindo rosto.
— D. Mendo... Gosto desta casinha! Creio que ficarei aqui até o desejardes.
Ele apertou entre as suas mãos possantes as mãos delicadas da jovem moura e afirmou, com toda a força do seu coração:
— Querida Anasir! Prometo que sereis feliz!

Anasir e Zuleima viviam semicativas na casinha do terreiro, onde D. Mendo as escondera de mouros e cristãos. Amava Anasir e não queria perdê-la. Desejava a sua permanente companhia.
Contudo, temia as censuras do rei. Saía às escondidas, de vez em quando. Mas voltava logo que podia voltar.
Certa tarde, porém, D. Mendo regressou pouco depois de ter saído. Ao vê-lo, Zuleima indagou, curiosa:
— Vós... já de volta?
D. Mendo parecia preocupado.
— Ouve, Zuleima! Descobri que andam a rondar estes sítios. É preciso que a tua ama não saia de casa!
Ela assustou-se.
— A rondar, dizeis? Mas quem? Algum cristão vosso amigo?
Enervado, o cavaleiro declarou:
— São mouros! Mouros meus inimigos! Falaste num tal Aben-Abed. Será ele… ou alguém por ordem dele?
Zuleima abriu os olhos, num espanto.
— Aben-Abed?... Sim, talvez seja ele… ou alguém por ordem dele... Anasir atraiçoou-o… Que Alá nos proteja!
D. Mendo irritou-se:
— Esse tal Aben foi um cobarde! Fugiu, deixando-a entregue ao seu destino! Perdeu o direito ao seu amor. O seu destino, agora — sou eu!
A velha ama estava pálida e atarantada.
— Bem sei. Mas ele... virá matá-la... E eu não quero... não quero!...
— Nem eu! Escuta. Se eles conseguirem levar Anasir, juro-te que arrasarei tudo, compreendes? Não escapará nem um só mouro dos que andam por aí em liberdade!
Zuleima retorquiu, já mais serena:
— Descansai, cavaleiro! Ninguém nos levará daqui! A minha querida menina também vos ama. Se assim não fosse, já se teria suicidado, acreditai!
— Onde está ela, Zuleima?
— Foi descansar. Mas eu vou chamá-la.
— Não! Eu esperarei. Entretanto, esclarece-me um ponto que continua para mim envolto em mistério.
— Que é, senhor?
— Por que te afligiste tanto quando Anasir pronunciou um ai? Se ela gritar com outra exclamação qualquer, tu não te alteras...
Zuleima ficou a olhar por momentos um ponto vago no espaço. Depois voltou a olhar para o rosto de D. Mendo. E falou:
— Senhor! A vós posso contar o que há muito me foi dito. Quando a minha ama nasceu, uma feiticeira disse que Anasir morreria ao pronunciar o sétimo ai.
— E ela nunca pronunciara essa exclamação enquanto pequena?
— Nunca!
— Nem mesmo depois de crescida?
— Nunca, senhor! Compreendeis agora o meu desespero por ouvi-la exclamar quatro ais quase a seguir?
D. Mendo ficou pensativo.
— Zuleima! Por mim... prefiro não acreditar em profecias de feiticeiras.
— Mas eu acredito, senhor!
— De qualquer modo, tentaremos evitar que Anasir volte a proferir tal exclamação — que, por desgraça, é tão vulgar!
— Assim o desejo! Mas estou crente que o destino está contra nós... Nada poderemos fazer.
No limiar da porta que dava para a alcova, Anasir surgiu, sorrindo.
— Que surpresa agradável, meu senhor!
E censurando Zuleima:
— Por que não me chamaste?
— D. Mendo assim o determinou.
Ela tentou ralhar-lhe:
— Ai, meu senhor, por que fizeste isso?
Mas deixou de sorrir vendo a palidez de Zuleima. Voltou-se para o cavaleiro:
— D. Mendo! Achais que Zuleima se assusta com razão quando eu grito: Ai?...
D. Mendo não conseguiu esconder certa apreensão. Zuleima chorava em silêncio.
O cavaleiro falou à sua amada:
— Sabeis decerto que na vossa religião se acredita em vaticínios de feiticeiras.
— Sei.
Propositadamente, D. Mendo mentiu, fingindo acreditar no que lhe dissera Zuleima.
— Pois bem: dizem que os ais vos trazem infelicidade.
Ela sorriu.
— D. Mendo! Não sei porque há-de Zuleima chorar!
Entre lágrimas, Zuleima respondeu:
— Porque vós, senhora, soltastes mais dois ais! São já seis, senhora! Seis!...
Ela olhou-a, perplexa:
— E isso que tem? Desde que os pronuncio é que conheço a felicidade! E a vós a devo, D. Mendo!
O cavaleiro cristão apertou nos braços a jovem moura.
— Querida! Como gostaria de ficar sempre ao pé de vós!
— Por que não ficais?
— Sou obrigado a ausentar-me por algum tempo. O meu senhor, el-rei D. Afonso Henriques, nomeou-me para nova empresa.
O sorriso desapareceu do rosto da jovem moura.
— Ides... combater os mouros?
— Sim.
— E tendes mesmo de obedecer?
— Sou guerreiro, e devo obediência ao meu rei.
— Pois ide! Continuarei a amar-vos, apesar de quanto tenta separar-nos! Quando partis?
— Depois de amanhã.
— Seguireis aquela estrada que se vê além?
— Sim.
— Pois ficarei sentada naquele penedo, a olhá-la, até os meus olhos não poderem distinguir-vos mais!
— Minha doce Anasir! Por que há-de o mundo separar os namorados?
Ela olhou-o através de um véu de lágrimas.
— Porque esta terra é uma terra de mágoa e de dor! Pagamos bem caro cada minuto de felicidade!
Como se a tarde se quisesse associar à súbita tristeza de Anasir, o Sol escondeu-se por detrás da serra, numa pequena nuvem de estranho desenho...

Mais sete dias passaram, segundo a lenda. Anasir parecia uma sombra deslizando na pequena casa do terreiro. A saudade pelo jovem cristão punha-lhe na alma o amargo da espera. Entretanto, Zuleima espiava os arredores. Também ela descobrira sombras suspeitas que rondavam a casa. E, de súbito, a algazarra de um grupo de mouros que haviam entrado no terreiro pô-la em louco sobressalto. Zuleima correu a ver de que se tratava. Anasir seguiu-a. Então, entre os mouros um se destacou. Era Aben-Abed. Zuleima gritou-lhe:
— Por que vens agora, se já abandonaste o que era teu?
Aben-Abed olhou-a com rancor.
— O que é meu é sempre meu!
Vendo-o caminhar para Anasir, Zuleima colocou-se na sua frente, e gritou-lhe:
— Vai-te! Afasta-te do nosso caminho e segue o teu! É melhor assim!
Mas Aben-Abed continuou a caminhar direito a ela, vagarosamente.
Pálida de susto, Anasir parecia ter perdido a fala. Zuleima protegia-a com o seu corpo.
Então, Aben-Abed levantou o alfange, e sem mais palavras cortou de um só golpe a cabeça da velha e dedicada aia.
Louca de aflição, Anasir soltou o sétimo ai, que ficou repercutindo no espaço. Vendo o algoz da que fora a sua segunda mãe, a jovem moura gritou-lhe:
— Maldito sejas, Aben-Abed!
A voz, porém, extinguiu-se-lhe na garganta. O mouro ferira-a no peito. E era mortal, a ferida.
No horizonte surgiu uma mancha de fogo. Aben-Abed fugia pela segunda vez, abandonando as suas vítimas. O silêncio voltou a reinar na casinha do terreiro. Um silêncio profundo. Um silêncio de morte.

Quando o jovem D. Mendo regressou e soube da horrível tragédia, ficou louco de dor. Deu ao terreiro que lhe pertencia o nome de Seteais, em memória da jovem moura que ele tanto amava. Ao sair dali, jurou eterna vingança.
E nunca D. Afonso Henriques chegou a compreender a razão porque o seu súbdito D. Mendo de Paiva se tornara, desde a tomada do castelo de Sintra, um dos mais ferozes caçadores de mouros...


Gentil Marques
Sintra