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09/08/2010

O tigre da montanha que devorava homens


Vivia outrora na província de Longxi (hoje, Gansu) um homem chamado Li Cheng, parente distante do imperador Tianbao.
Quando era jovem, Li Cheng tinha sido um estudante brilhante, apaixonado pela caligrafia chinesa. Depois de excelentes estudos e depois um início de carreira promissora na Administração Imperial, ele foi nomeado, contra sua vontade, chefe de polícia numa pequena cidade do interior.
Li Cheng detestava essa função. Achava que era um posto indigno dele. A amargura fazia com que ele fosse arrogante e algumas vezes, dizia aos seus companheiros.
— Mas o que faço aqui, tão inteligente, junto de ignorantes como vocês?
Claro, ninguém gostava dele.
Depois de algum tempo, Li Cheng pediu demissão desse posto que detestava e passou a vive sozinho na sua casa, como um recluso, durante quase um ano. Depois disso, pela necessidade de ganhar sua vida, ele arrumou suas coisas e partiu para uma província do sudoeste, onde iria ser administrador. Como ele era excelente nessa função, foi muito estimado e se cercou de pessoas que admiravam sua erudição e sua inteligência. Um ano ou dois mais tarde, no momento de voltar àsua terra natal, os amigos que ele tinha feito no lugar o cobriram de presentes.
No caminho de volta, Li Cheng parou em um albergue ao pé de uma montanha. Lá ele pegou uma febre súbita e começou a falar coisas sem sentido. Tomado por terríveis acessos de raiva, ele fazia com que a vida de seu ajudante fosse pior ainda, agredindo-o a todo instante. Depois de dez dias, Li Cheng piorou e desapareceu gritando dentro da noite.
Ninguém soube para onde tinha ido. Seu ajudante procurou-o durante algum tempo e depois ficou por ali, esperando. Depois de um mês, como não tivesse voltado, o ajudante sumiu com o cavalo de seu mestre e tudo o que ele tinha.
No ano seguinte, um homem chamado Yuan Zhan estava passando pela região, a caminho de uma missão imperial no sul. Ele ia a cavalo, com uma escolta importante. Certa manhã, quando se preparava para pegar a estrada depois de uma noite numa pousada, o dono da hospedaria disse para ele:
— Não parta assim tão cedo! Na estrada, não longe daqui, esconde-se um tigre muito feroz, que devora quem dele se aproxima. Ninguém se aventura, a não ser durante o dia. Ainda está um pouco escuro. Espera só mais um pouco.
— Mas eu represento o imperador! — impacientou-se Yuan Zhan. Somos muitos, temos cavalos, não vai ser um animal da montanha que vai nos amedrontar.
E deu o sinal de partida.
Logo que a pousada desapareceu de vista, um tigre saiu de seu esconderijo urrando. Yuan Zhan deu um grito de terror. Então, para sua surpresa, ele viu o tigre dar meia volta e desaparecer novamente no mato. E logo uma voz se ouviu de uma touceira:
— Incrível! Quase matei meu velho amigo.
E Yuan Zhan reconhecer essa voz. Era a de Li Cheng, amigo de infância e de juventude, que ele não via há muito temo. Adolescentes, depois jovens, eles tinham estudado juntos e estavam ligados de amizade, até que a vida os tinha separado.
Yuan Zhan não estava compreendendo nada. Primeiro, o tigre, e depois essa voz...
Ele perguntou:
— Quem é? É o meu amigo Li Cheng, de Longxi?
— Sim, sou eu, Li Cheng, teu amigo. Por favor, espera um pouco, para que possamos aparecer um para outro.
Yuan Zhan desceu do cavalo e foi na direção da touceira de bambu.
— Meu amigo Li Cheng, há quanto tempo. O que aconteceu?
— E você? — respondeu a voz — Desde que nos caminhos tomaram direções diferentes, tantos anos já passados, não tenho notícias suas. O que aconteceu nesse tempo todo? Onde vai, nesse momento mesmo? Há pouco, vi passar dois orgulhosos cavaleiros, precedidos por um carregador com roupas imperiais. Me diz uma coisa, você é o corregedor do imperador, em missão oficial?
— Sim, tive a honra de ter sido nomeado corregedor. Nesse exato momento, estou a caminho de Cantão.
— Você é digno dessa função, com certeza - retomou a voz. - Você era um espírito refinado, e tinha, me lembro bem, a integridade absoluta exigida de todo corregedor. A você a nobre tarefa de ser vigilante em relação à honestidade dos representantes do imperador! Sim, nosso imperador escolheu bem ao nomeá-lo para este posto. Estou feliz com isso, do fundo do coração. Minhas felicitações!
Yuan Zhan respondeu:
- Nós tínhamos feito estudos parelhos. Rivais e inseparáveis amigos, lembra? Nós conseguimos juntos os diplomas, iguais no êxito. Depois o tempo passou muito depressa, não tivemos mais essa oportunidade de nos vermos nem de nos ouvirmos. No entanto, que alegria poder compartilhar com você essas reflexões. E que surpresa, hoje, de evocar assim uma amizade tão antiga.! Mas por que se esconde, em vez de vir aqui? É assim que a gente recebe um velho amigo?
— Eu não sou mais um ser humano - respondeu a voz do outro lado dos bambus. - Eu sou um tigre. Como ousaria aparecer diante de um amigo?
Yuan Zhan ficou sem voz durante algum tempo. Depois perguntou, tremendo:
— Mas...como isso pode ter acontecido?
— Foi no ano passado - respondeu o tigre. Eu vinha do sudoeste, para voltar à nossa província. Uma noite, parei em um albergue, no pé da montanha. Do dia para noite, caí doente e endoideci. Corri para a montanha em delírio e bem depressa me descobri andando a quatro patas. Eu senti que meu coração ficou feroz, minhas forças foram multiplicadas por dez. Meu corpo cobriu-se de pêlo e diante dos viajantes na estrada, dos agricultores nos campos, dos pássaros ou de outros animais, tinha apenas um desejo, o de me jogar sobre eles e devorá-los. Um dia, a fome foi mais forte do que eu. Um homem passava por lá, eu o ataquei, eu o despedacei, eu o devorei sem deixar nada para trás. Desde então, é assim que eu vivo. No entanto, apesar de minha arrogância passada — sim, eu era arrogante, bem sei — eu sonho ainda muitas vezes nas pessoas de quem gosto e nos meus amigos de antigamente. Mas eu violei a mais sagrada das proibições. E aqui estou, transformado numa fera. Como poderia aparecer diante das pessoas de quem mais gosto? É certo que você e eu estudamos juntos e éramos muito próximos um do outro. E agora, o que somos hoje? Você, com um cargo imperial, enche de orgulho os seus familiares e amigos. Eu, tenho de me esconder no bosque e o mundo dos homens ficou impossível para mim. Eu pulo e suspiro para o céu. Eu baixo a cabeça e choro calado. Perdido, eu estou perdido para o serviço dos outros.
Nesse momento, o tigre ficou em silêncio e começou a soluçar baixinho.
— Mas se é tigre - disse Yuan Zhan - como consegue falar com uma voz humana?
— Só meu aspecto mudou - respondeu o tigre. - Tenho ainda um coração de gente, uma inteligência humana. Mas sou bruto e impulsivo, provocando temores e ódios, incapaz de observar as regras de amizade e de hospitalidade. Eu suplico, não me esquece e perdoa meu comportamento. Mas se nossos caminhos se cruzarem de novo, pois logo vais passar por aqui na volta de Guanzhou, tenho medo de esquecer nossa antiga amizade e.... Cuidado, então! Não me deixa cometer um crime que me faria ainda mais desprezível!
O tigre deu um longo suspiro e acrescentou:
— Dizer que éramos tão próximos! Posso pedir uma coisa?
— Como eu poderia recusar algo a um velho amigo? — respondeu Yuan Zhan — O que é? Eu farei o impossível.
— Obrigado - disse o tigre.- Sem essa resposta, não poderia lhe pedir nada. Depois que enlouqueci no albergue e depois que desapareci nas montanhas, meu criado partiu com meu cavalo e tudo o que eu tinha. Minha família deve ainda morar na mesma aldeia e sem dúvida eles se perguntam o que deve ter acontecido comigo. Quando voltar do sul, pode anunciar para eles que eu morri? Não diz mais nada – nada do que ouviu hoje. Eu vou ser reconhecido para sempre se fizeres isso.
Yuan Zhan assegurou que cumpriria essa missão. O tigre suspirou novamente.
— Não tenho mais nada nesse mundo. E meu filho é ainda pequeno para ganhar a vida. Você exerce uma função muito importante. E foi sempre um modelo de integridade e de lealdade para com os amigos. Nossa amizade era única. Se puder cuidar de tempos em tempos do meu filho, para que ele não se torne um mendigo, agradeço muito, e isso pelo menos deixaria minha alma em paz.
Ao dizer isso, o tigre calou-se e começou a chorar. Yuan Zhan disse para ele, chorando também:
— Do mesmo jeito que partilhávamos as alegrias, agora partilhamos nossas penas. Seu filho agora é meu filho. Farei o possível para ser digno da responsabilidade que me confia. Não se preocupe com o futuro dele.
— Antigamente - retomou a palavra o tigre - eu escrevi alguns textos que nunca foram publicados e os rascunhos deles estão dispersos ou perdidos. Eu gostaria de ditá-los a vocêi. Poderia copiá-los? Mesmo se esses textos não forem publicados, pode ser que essas pequenas reflexões possam ser úteis aos meus descendentes.
Yuan Zhan pediu ao seu ajudante que lhe trouxesse papel e um pincel de caligrafia, para escrever o que o tigre estava lhe ditando. Ao todo, foram vinte capítulos curtos. O estilo era fluente, o sentido, profundo. Em muitas ocasiões, Yuan Zhan suspirava ao reler o que escrevia.
— Essas palavras vão dizer às pessoas da minha família o que eu tentei fazer - concluiu o tigre - e o homem que eu tentei ser. Nada me autoriza a esperar que minhas palavras terão um sentido para as futuras gerações, mas obrigado por tê-las posto no papel. E agora, segue sua missão, eu já o atrasei muito. Vai depressa, porque sua escolta já deve estar impaciente. Agora nossos caminhos se separam. Eu não vou lhe contar a dor que estou sentindo.
Dando um triste adeus, YuanZhan voltou para a estrada. Seu primeiro cuidado, ao voltar, foi fazer com que a mensagem chegasse ao filho de Li Cheng, bem como um pouco de dinheiro para os funerais de seu pai. Um mês mais tarde, o adolescente foi à capital e bateu na casa de Yuan Zhan, para pedir alguma coisa que seu pai tivesse deixado. O corregedor ficou sem saída: ele revelou tudo ao filho de seu amigo. Em seguida, ele tirou de seu salário uma quantia mensal, para que o filho de seu amigo e a viúva de Li Cheng passassem dificuldades. Mais tarde ele tornou-se vice-ministro da Guerra.