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29/08/2008

Dom Claros de Além-Mar

– «Quero fazer uma aposta,
Ou eu não sei apostar:
Claralinda há-de ser minha
Antes do galo cantar.»
– «Apostar, apostareis,
Mas não haveis de ganhar;
Que é discreta a Claralinda,
Ninguém na pode enganar.»
Não quis ali dizer nada,
Não quis ali mais falar;
Vestiu trajos de donzela
E se pôs a caminhar.
Lá estava a Claralinda
De seu balcão a mirar:
– «Que donzela tão bonita!
Quem é e o que vem buscar?»
– «É a tecedeira, senhora,
Que vem das praias do mar;
Tem a sua teia urdida,
E a falta vem na buscar.»
– «Aí tenho a falta, donzela,
Mas inda está por dobar.»
– «Senhora, que se faz tarde
E eu não posso esperar:
De noite pelos caminhos
Donzelas não hão-de andar.»
– «Para honra da donzela,
Aqui hoje há-de poisar.»
– «Tendes criados tão moços,
Tão atrevidos do olhar...»
– «Para honra da donzela
No meu quarto há-de ficar.»

A donzela, de contente,
À noite não quis cear;
Tinha sono, tanto sono,
Que se quis logo deitar.
Lá por essa noite adiante
Claralinda de gritar...
– «Cala-te, ó Claralinda,
Não te queiras difamar,
Que eu sou de nobre gente
E contigo hei-de casar:
Fia-te nesta palavra
De Dom Claros de Além-mar.»

Passados são tantos dias,
Tão compridos de esperar:
Não voltou a tecedeira,
Mas a teia ia a dobar
Aos sete para oito meses
O pai à mesa a jantar:
– «Claralinda, Claralinda,
Que feio é o teu trajar!»
– «Não diga tal, senhor pai,
Ninguém lhe oiça tal falar:
Não sou eu, é da vasquinha
Que é mal feita e dá mau ar.»
Mandou chamar alfaiates
Para se desenganar:
Disseram uns para os outros:
– «Não tem falta a saia tal.»

Não há ali mais que dizer,
Não há mais que perguntar:
– «Prepara-te, ó Claralinda,
Que amanhã vais a queimar.»
– «Não se me dá que me matem,
Que me levem a queimar,
Dá-se-me deste meu ventre
Que é de sangue real!...
Haverá por aí um pajem
Que o meu pão queira ganhar,
E que me leve esta carta
A Dom Claros de Além-mar?»
Aparece um pajenzito
Discreto no seu falar:
– «Aqui está um mensageiro
Que o recado quer levar.»
– «Se o meu pão queres comer,
A toda a pressa hás-de andar,
E entregarás esta carta
A Dom Claros de Além-mar.»

– «Que quereis, ó pajenzito,
Que vindes aqui buscar?»
– «Trago uma carta, senhor,
Novas de muito pesar;
Novas lhe trago, más. Novas
Da sua amiga leal:
Hoje se lhe ajunta a lenha,
Amanhã vai a queimar.»
Ele pôs-se a ler a carta,
Não a podia acabar;
As lágrimas eram tantas
Que o faziam cegar:
– «Oh lá, oh lá, escudeiros,
Os cavalos a ferrar;
Jornada de quatro dias
Esta noite se há-de andar.»

Chega a um convento de frades,
Estava o sino a dobrar:
– «Por quem dobra o sino, padre,
Por quem está a tocar?»
– «É a infanta Claralinda
Que se está a agonizar:
Ontem juntaram-lhe a lenha,
Hoje a levam a queimar.»
Era quase manhã clara,
Mandou seus pajens deitar,
Vestiu-se em trajos de frade,
Foi ao caminho esperar:
– «Parem lá os da justiça,
Justiça de mau pesar,
Que a menina que aí levam
Inda vai por confessar.»

Deixaram-no ao bom do frade
Para a infanta confessar.
Mal se ele viu só com ela,
De amores lhe foi falar:
– «Venha cá, minha menina,
Que a quero confessar;
No primeiro mandamento
Um beijinho me há-de dar.»
– «Não permita Deus do céu
Nem os santos do altar!
Onde Claros pôs a boca
Não me há-de um frade beijar.»
– «Venha cá, minha menina,
Que a quero confessar;
No segundo mandamento,
Um abraço me há-de dar.»

– «Vai-te na má hora, frade,
Que a mim não hás-de chegar;
Que a mim nunca chegou homem,
Se não – inda mal pesar!
Senão só esse Dom Claros,
Dom Claros o de Além-mar,
Que, por meus grandes pecados,
Por ele vou a queimar!»

Dom Claros que tal ouviu,
Não pôde o riso ocultar.
– «Por esse riso que dais,
Sois Dom Claros de Além-mar...»
– «Cala-te, ó Claralinda,
Que te venho libertar;
Já está tecida a teia,
Vamo-la agora a curar.»

Tomou-a logo nos braços
Puseram-se a caminhar:
Estava perto o convento,
Viram-nos os pajens chegar.
Chegavam, não chegariam...
A justiça de bradar.
– «Nas ancas de meu cavalo,
Menina, haveis de montar.
Assim foi livre a. infanta
Por Dom Claros de Além-mar.»


Romanceiro, Almeida Garrett