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23/05/2008

Silvaninha

Passeava-se a Silvana
Pelo corredor acima;
Viola de oiro levava,
Oh! Que tão bem a tangia!
Melhor romance fazia.
A cada passo que dava,
Seu padre a acometia:
– «Atreves-te tu, Silvana,
Uma noite a seres minha?»

– «Fora uma, fora duas,
Fora, meu pai, cada dia;
Mas as penas do inferno
Quem por mim as penaria?»
– «Pená-las-ei eu, Silvana,
Que as peno cada dia.»

Foi-se dali a Silvana,
Mui agastada que ia;
Foi-se encontrar com sua madre
Lá no adro da ermida;
– «Que tens tu, minha Silvana,
Que tens tu, ó filha minha?»

– «Oh! Que tal pai não tivera,
Quem não fora sua filha!
Que me acomete de amores,
Ó minha mãe, cada dia.»

– «Vai filha, vai para casa,
Veste uma alva camisa,
Que o cabeção seja de oiro,
As mangas de prata fina:
Deitar-te-ás no meu leito,
E no teu me deitaria...
E há-de valer-nos a Virgem,
A Virgem Santa Maria.»

Lá junto da meia-noite
Seu padre que a acometia...
– «Se eu soubera, Silvana,
Que estavas tão corrompida,
Oh! as penas do inferno
Por ti as não penaria...»

– «Esta não é a Silvana,
É a mãe que a paria;
Também pariu Dom Alardos,
Senhor de cavalaria,
Também pariu a Dom Pedro,
Príncipe da infantaria,
Também pariu a Silvana
Que seu pai acometia.»
– «Oh! mal haja que haja a filha
Que seu padre descobria!»
– «Oh! mal haja que haja o padre
Que sua filha cometia!»

Manda-a meter numa torre
Que nem sol nem lua via:
Dão-lhe a comida por onça
E a água por medida;
Ao cabo de sete anos
Veis a torre que se abria...

Assomou-se a Silvana
A uma ventana mui alta,
Foi encontrar com sua madre
Lavrando numa almofada;

– «Estejais, embora, madre,
Ó madre já da minha alma:
Peço-vos por Deus do céu
Que me deis um jarro de água;
Que se aparta a vida,
Que se me arranca a alma.»

– «Dera-ta eu, filha minha,
Se a tivera salgada,
Que há sete para oito anos
Que por ti sou mal casada.
Se teu padre tem jurado
Pela cruz de sua espada,
Quem primeiro te desse água
Tinha a cabeça cortada».

Assomou-se a Silvana
A outra ventana mais alta,
Foi-se encontrar c´os irmãos
Que estavam jogando as canas:
– «Estejais, embora, irmãos
Meus irmãos já da minha alma:
Peço-vos por Deus do Céu
Que me deis um jarro de água,
Que se me aparta a vida,
Que se me arranca a alma!»

– «Dera-ta eu, irmã minha,
Se a tivesse empeçonhada:
Que nosso pai tem jurado
Pela cruz da sua espada
Quem primeiro te desse água
Tinha a cabeça cortada.»

Assomou-se a Silvana
A outra ventana mais alta,
Foi-se encontrar com seu padre
A jogar a emboscada:

– «Estejais embora, padre,
Padre meu já da minha alma:
Peço-vos por Deus do céu
Que me deis um jarro d’água,
Que se me aparta a vida,
Que se me aparta alma...
E de hoje por diante
Serei vossa namorada.

– «Alevantem-se, meus pagens,
Criados da minha casa,
Uns venham com jarros de oiro,
Outros com jarros de prata;
O primeiro que chegar
Tem a comenda ganhada
O segundo que chegar
Tem a cabeça cortada»
Os criados que chegavam,
Silvaninha que finava
Nos braços da Virgem Santa,
Dos anjos amortalhada!

– «Vai-te embora, Silvaninha,
Silvaninha da minha alma:
Tua alma vai para o céu,
A minha fica culpada.»


Romanceiro, Almeida Garrett





22/05/2008

O unicórnio






Os caçadores falavam do unicórnio como uma misteriosa criatura.
- Será um animal ou um espírito? - perguntavam-se a si mesmos.
Na verdade, o estranho cavalinho com um chifre no meio da testa aparecia ora num lugar, ora em outro, porém jamais alguém conseguira apanhá-lo de surpresa.
- Feroz e estranho - disse um caçador - talvez seja um enviado do inferno, que está aqui para nos espionar.
- Não, é bonito demais para ser um mau espírito. Deve ser um anjo, retorquiu o outro.
Uma jovem, sentada ali perto, debaixo de uma árvore, fiando lã, ouviu em silêncio e sorriu. Conhecia bem o unicórnio, sabia tudo sobre ele. Ele era seu amigo.
E de fato, quando os homens foram embora, o animal surgiu atrás de um arbusto e correu para junto da moça. Deitou-se a seu lado, apoiou o focinho em seu colo e olhou-a com expressão de amor.
Após o primeiro encontro, tornou-se tão manso quanto um animal doméstico, estendendo o focinho para dar um beijo.
Porém esse estranho amor foi sua ruína.
Os caçadores perceberam o que estava acontecendo e, um dia, sem que a moça soubesse, ficaram de tocaia e apanharam o inocente unicórnio.




18/05/2008

Ala Eddim Abu-Chamat


Conta-se, ó afortunado rei, que vivia certa vez no Cairo um homem venerável que ocupava o cargo de síndico dos comerciantes. O mercado inteiro respeitava-o por sua honestidade, distinção, linguagem moderada e por suas riquezas e o grande número de seus escravos. Chamava-se Chams Eddim. Certa sexta-feira foi ao hammam, depois ao barbeiro e, após pedir a proteção de Alá contra o orgulho, olhou no espelho. Com tristeza, constatou que os fios brancos de sua barba eram mais numerosos que os fios pretos. "Uma barba branca," disse para si mesmo, "é um sinal de velhice, e a velhice é um pré-aviso da morte. Pobre Chams Eddim! Estás no limiar do túmulo e não tens filho algum para suceder-te. Serás apagado como uma vela, e ninguém se lembrará de ti." Quando chegou em casa, a mulher recebeu-o agradavelmente, desejando-lhe uma noite feliz. Mas ele cortou-lhe a palavra com rispidez: "Que conversa é essa? Existe ainda felicidade para mim?" "Que te aconteceu, homem?" retrucou a
mulher. "Qual é a causa desse abatimento?" - A causa és tu mesma. Escuta, mulher, e tenta imaginar
minha amargura quando chego ao mercado e vejo cada um de meus companheiros rodeado por dois, três ou quatro filhos, brilhantes promessas para o futuro, enquanto eu, somente eu, fico sozinho sem filhos. Às vezes, prefiro a morte a esta vida. E tu és a única agente de nossa esterilidade. Aproveitaste com
perfídia nossa primeira noite para fazer-me jurar que nunca tomaria uma segunda mulher. Agora, juro por Alá que cortaria meu zib antes de to entregar, e nem beijos receberás mais de mim. Copular contigo é como copular com uma pedra. A mulher reagiu com raiva: "Perfuma a boca antes de falar de mim. Se achas que a esterilidade está em mim, abre os olhos. A esterilidade está em teus testículos frios. Secretam um líquido claro demais e sem germes de vida. Compra algo para esquenta-los e engrossar teu esperma - e verás se sou fértil ou não. Em qualquer farmácia, encontrarás o produto adequado." O bom homem pensou nesse produto a noite toda e, cedo pela manhã, foi à primeira farmácia e disse ao droguista: "Quero uma onça daquela mistura que esquenta os testículos do homem e engrossa-lhe o esperma."
O droguista achou que o síndico ficara maluco e, para distrair-se, disse-lhe: "Por Alá, eu tinha um montão dela ontem mas toda a minha provisão se foi. É melhor procurar em outra farmácia." O síndico foi a uma segunda e terceira e quarta farmácias e, finalmente, percorreu todo o mercado. Cada um aconselhava-o a procurar outro estabelecimento e todos riam-se dele pelas costas. Decepcionado, Chams Eddim sentou-se à porta de sua loja com ar infeliz. Viu-o nesse estado um sujeito chamado Samsam que fumava haxixe e praticava a magia. Perguntou a Chams Eddim qual era a causa de sua tristeza. Chams Eddim contou-lhe.
Samsam foi para casa e voltou logo com uma pasta preparada por ele mesmo, dizendo: "Eis uma pasta soberana que endurece os testículos e engrossa o fluido vital. Usa-a duas horas antes de copular; e se não furares as próprias paredes e engravidares tua mulher, poderás cortar-me a cabeça."
Chams Eddim seguiu as instruções de Samsam e, quando montou em sua mulher, ambos ficaram surpresos com o empenho de seu zib. Nove meses depois, nascia-lhe um filho tão desenvolvido que parecia ter já um ano. A parteira declarou que nunca vira menino tão bonito e tão forte. Chamaram-no Ala Eddim Abu-Chamat ou, simplesmente, Abu-Chamat. Durante quatro anos, deram-lhe o leite de duas amas-de-leite e de sua própria mãe, de forma que se tornou igual a um jovem leão, enquanto permanecia tão lindo que todas as meninas da vizinhança o idolatravam. Mas ele nunca permitiu a nenhuma delas beijá-lo ou aproximar-se dele. Seus pais, receando o mau olhado, isolaram-no num sótão onde cresceu ao abrigo dos curiosos e dos indiscretos. Providenciaram instrutores que lhe ensinaram as ciências e as artes de que precisaria. Viveu assim enclausurado até a idade de quinze anos.
Um dia, Abu-Chamat perguntou à mãe o que seu pai fazia. Esta contou-lhe que seu pai era o síndico de todos os mercadores da cidade, um homem ao mesmo tempo importante e rico. -Amanhã, quero ir ao mercado com ele, declarou o menino. Não agüento mais viver isolado do resto da humanidade. Quando Chams Eddim voltou para casa, a mulher repetiu-lhe as palavras do filho e disse-lhe que ela também pensava que já era tempo de levar o filho ao mercado e revelar-lhe o mundo. Retrucou o marido: "Será que pensas que o mau olhado é mera superstição? Esqueces que a metade dos cemitérios é povoada com vítimas do mau olhado?" - Ó pai de Abu-Chamat, replicou a mulher, todo homem carrega seu destino em volta de seu pescoço e não pode escaparlhe. O que está escrito está escrito, e os filhos devem seguir os pais na vida e na morte. o dia seguinte, Chams Eddim montou sua mula branca e levou o filho atrás dele. Abu-Chamat era tão belo e atraente que teria seduzido os próprios anjos. Quando chegaram ao mercado, os comerciantes maravilharam-se e começaram a sussurrar um ao outro: "Por Alá, vede que garoto gostoso Chams Eddim arrumou. É mais belo que a lua." Outros diziam: "Quem é esse delicioso menino?
Nunca o vimos antes." Todos pensaram que o venerável síndico tinha caído no vício da infância e mandaram dizer-lhe: "Não queremos por síndico um velho lascivo que se esfrega contra jovens garotos em público." O homem, cheio de indignação, revelou-lhes que AbuChamat era seu próprio filho e contou-lhes por que o tinha escondido até então. Apresentou provas, e todos passaram a felicitá-lo por ter um filho tão belo. Para celebrar o acontecimento e torná-lo ainda mais público, o síndico ofereceu um grandioso banquete a todos os seus amigos no melhor bosque da cidade. Ora, entre os convivas,
havia um certo mercador, talvez o melhor cliente do síndico, que era um veterano e inveterado pederasta e não poupava os lindos garotos da cidade, cujas boas graças sabia comprar com dinheiro e presentes. Seu nome era Mahmud, mas chamavam-no Mahmud Bilateral. Quando Mahmud Bilateral viu Abu-Chamat, seus órgãos entraram em comoção. E decidiu que o melhor meio de poder aproveitar-se do garoto seria viajar com ele em terras exóticas. Aproximou-se, pois, habilmente, dos companheiros de AbuChamat e prometeu-lhes vestes novas se conseguissem convencer Abu-Chamat a viajar com ele pelo mundo afora.Os garotos aproveitaram o banquete, onde uma mesa especial era reservada aos menores, para plantar dúvidas e desejos na mente de Abu-Chamat. Disse-lhe um deles: "Estávamos falando das maravilhas das terras longínquas: Damasco, Alepo, Bagdá. Teu pai é tão rico que sem dúvida já te fez visitar todas essas cidades. Fala-nos um pouco delas.” - Não sabes que fui criado num sótão e somente ontem saí para visitar a loja de meu pai? Não se pode ver muita coisa num sótão.
- Pobre Abu-Chamat, lamentou um dos garotos, foste privado das alegrias mais vibrantes da vida que são viajar e conhecer o mundo. - Talvez tenhais razão, replicou Abu-Chamat; mas a vida calma do lar é também uma delícia. - Pobre Abu-Chamat, disse outro garoto. Ele é como um peixe que não pode viver fora da água. - Ele é como uma mulher, disse um terceiro. Não pode dar um passo por si só. Ó Abu-Chamat, não tens vergonha de ser tratado como uma moça? Humilhado, provocado, o garoto correu para casa e anunciou à mãe que queria viajar imediatamente, senão se mataria. A mãe chorou, mas vendo-o decidido, fez sair do depósito todas as mercadorias que lhe pertenciam, mandou preparar camelos e
cameleiros e, quando o marido chegou, alarmado por não ter mais visto o olho, a mulher revelou-lhe as inéditas exigências de Abu-Chamat. O próprio Abu-Chamat acrescentou: "Pai, se não me deixares partir, cobrir-me-ei com trapos de dervixe e sairei a errar, pés nus, pelo mundo." O pai cedeu, ofereceu-lhe mais mercadorias e camelos. E o filho partiu. Quando Mahmud Bilateral soube da viagem de Abu-Chamat,
preparou sua própria caravana e foi atrás dele. Pararam no mesmo oásis. Mahmud Bilateral convidou Abu-Chamat para sua tenda e ofereceu-lhe um lauto jantar. Mas, quando tentou aproximar-se dele, beijá-lo e acariciá-lo, Abu-Chamat rejeitou-o. E as duas caravanas se separaram, seguindo ambas, contudo, para Bagdá. Na véspera de entrar em Bagdá, a caravana de Abu-Chamat foi assaltada, e os camelos roubados. Abu-Chamat escapou sozinho e quis refugiar-se numa mesquita quando cruzou com dois homens que lhe perguntaram: "És um estrangeiro nesta cidade?" Respondeu: "Venho do Cairo, e meu pai é o síndico dos mercadores de lá." - Agradece a Alá ter-te colocado em nosso caminho. Precisamos de um favor teu que pagaremos com 5 mil dinares, mercadorias no valor de mil dinares e um camelo que também vale mil dinares.
- Qual é o favor?”
- Deves saber, meu filho, disse o mais velho, que a lei determina que, quando um muçulmano se
Divorcia da mulher pela terceira vez ou diz-lhe três Vezes "Estás divorciada," não poderá casar-se com ela novamente até que outro homem a tome por esposa legal e passe uma noite com ela, divorciando-se em seguida. Ora, uns dias atrás, este mancebo yue está comigo perdeu a calma e gritou à mulher, que é minha filha: "Sai de minha casa, repudio-te uma, duas, três vezes." Minha filha cobriu o rosto com o véu, já que seu marido tornara-se um estranho para ela, recebeu de volta seu dote e regressou para minha casa. Agora, seu marido está aflito e deseja-a de novo. Ofereço-te o papel de marido interino. És um estrangeiro; portanto, ninguém precisa saber deste assunto, exceto nós quatro. - Aceito, disse Abu Chamat, desejando no seu coração que a mulher fosse bonita. Então, interveio o marido. "Novo amigo," disse a AbuChamat, "agradeço-te a cooperação. Mas receio que a mulher te agrade e não queiras mais divorciar-te dela. Deves comprometer-te a me indenizar com 10 mil dinares se tal acontecer." - Aceito, disse Abu-Chamat. E os três foram ao cádi e formalizaram todos esses compromissos. Depois, o pai da moça voltou para casa com AbuChamat, a quem pediu esperar no vestíbulo até que fosse avisar a filha e preparar os aposentos. Ora, o primeiro marido era muito ciumento. Querendo impedir que Abu-Chamat trepasse em sua mulher, procurou uma velha megera e expôs-lhe o caso, prometendo-lhe mil dinares se conseguisse impedir os dois jovens de ter relações íntimas. - É fácil, disse a bruxa. E foi à casa da mulher divorciada e perguntou a Abu-Chamat que esperava no vestíbulo: "Podes indicar-me onde encontrar a moça recém-divorciada? Venho todos os dias esfregar-lhe o corpo com pomadas especiais, embora ache difícil curar da lepra essa pobre infeliz." -Alá me proteja, exclamou Abu-Chamat. Ela é leprosa? Eu sou o interino! -Alá te conserve bonito e saudável como és, meu filho, disse a mulher. É melhor para ti não te aproximares de uma pessoa assim doente. A meretriz deixou Abu-Chamat num estado de extrema confusão e foi à mulher e disse-lhe o mesmo acerca de Abu-Chamat, aconselhando-a a não arriscar a saúde e talvez a vida deitando-se com ele. Abu-Chamat esperou em vão pela aparição de sua nova esposa. Para passar o tempo, começou a cantar versos líricos numa voz mais melodiosa que a de Davi. A jovem mulher ouviu a voz e disse consigo mesma: "Que será que aquela bruxa depravada pretendia? Um leproso não pode ter uma voz tão serena. Por Alá, chamá-lo-ei e verei por mim mesma se a velha intrometida disse a verdade ou mentiu." Apanhou um alaúde indiano e começou a cantar numa voz que atrairia os pássaros do céu: Amo um gamo com olhos lânguidos. Os ramos da floresta invejam-lhe o corpo esbelto. Eu canto seus encantos. Mas outros gozam sua intimidade. Deus distribui suas dádivas a quem quer. Ao ouvi-la, Abu-Chamat calou-se e pensou: "Por Alá, aquela velha intrigante mentiu por algum motivo. Uma leprosa não tem esta voz límpida." E aproveitando a última nota da canção, respondeu com ritmos vivos que fariam os rochedos dançar: Saúdo aquela cujo corpo supera o das gazelas e cujas faces são as rosas mais lindas. À noite, olhava para mim e olhava para ela. E cada um de nós via a lua, sem que houvesse lua no céu. A moça sentiu-se invadida por emoções tão fortes que levantou a cortina que a separava do cantor e viu um jovem, belo como a lua em meio às nuvens. Convidou-o a entrar com um movimento dos olhos e do corpo tal que devolveria o vigor ao mais decrépito dos velhos. Ambos tiveram a mesma idéia: tirar a roupa para desmentir as calúnias da bruxa. Abu-Chamat sentiu a herança dos pais mover-se no seu corpo. Palpitando de desejo, a moça disse-lhe: "Prova o que és ó Zacarias!" Incentivado por apelo tão explícito, Abu-Chamat tomou a mulher pelas coxas, apontou sua vara na direção do pórtico da vitória e atravessou o corredor e achou-se tão à vontade na sala interior como se o arquiteto os tivesse feito um para o outro. E recomeçou, enumerando segunda feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira e só parou na sexta-feira, que é dia de descanso para os muçulmanos. Ternamente abraçados, dormiram até o levantar do sol. No dia seguinte, descobriram que não queriam mais separar-se um do outro e ficaram procurando ardis para burlar o pagamento dos 10 mil dinares de multa, pois, dos 10 mil dinares, Abu-Chamat só possuía um dirhem! Zubaida - tal era o nome da mulher - disse-lhe: "O juiz encarregado de teu caso é um famoso pederasta. Sem dúvida, já te desejou quando foste assinar os compromissos. "Hoje, tenta-o com alguns movimentos discretos dos quadris, e ele te concederá um prazo para o pagamento da multa. Depois, Alá ajudará." As expectativas de Zubaida concretizaram-se plenamente. Em vez de conceder os três dias que Abu-Chamat pediu com timidez, o juiz concedeu-lhe um prazo de dez dias. Zubaida recebeu a notícia com transportes de alegria e deu a Abu-Chamat cem dinares para fazer as compras necessárias a uma festa que celebrariam sozinhos e que duraria a noite toda. Comeram, beberam e estavam dançando e cantando quando ouviram bater à porta. Naquela noite, o califa Harun Ar-Rachid sentido-se deprimido, chamara seu vizir Jafar, seu porta-espada Masrur, seu poeta favorito Abu Nauas, e convidara-os a irem passear pelas ruas da cidade disfarçados em dervixes, e ver o que descobririam. Passando perto da casa do Abu-Chamat e Zubaida, ouviram cantos bonitos e bateram à porta. Abu-Chamat recebeu-os com um sorriso e ofereceu-lhes hospitalidade. E ao pedido de um dos dervixes (o próprio califa), Zubaida cantou atrás de uma cortina canções que emocionariam as pedras. O califa perguntou a Abu-Chamat quem era ele, e Abu-Chamat contou-lhe a sua história toda. O califa sentiu-se atraído por Abu-Chamat e disse-lhe: "Não te preocupes com os 10 mil dinares. Dirijo um convento de dervixes nesta cidade. Somos quarenta, e não sentiríamos falta de 10 mil dinares. Tu os receberás dentro do prazo." Os dervixes passaram a noite deliciando-se com as canções de Zubaida e, antes de se retirarem, o seu chefe enfiou cem dinares de ouro por baixo de uma almofada. Na manhã seguinte, quando Abu-Chamat abriu a porta para sair, deparou com cinqüenta mulas carregadas de caixas cheias de fazendas preciosas para o comércio e com uma qüinquagésima primeira mula montada por um jovem escravo abissínio belo como um sonho, que segurava uma carta na mão. Assim que viu Abu-Chamat, saltou à terra e entregou-lhe a carta, dizendo: "Ó Abu-Chamat, fui enviado do Cairo por teu pai, meu amo Chams Eddim, para remeter-te estas mercadorias, cujo valor é superior a 50 mil dinares, e esta jóia rara como presente para tua mulher Zubaida." Abu-Chamat abriu a carta e leu: "De Chams Eddim para seu filho Ala Eddim Abu-Chamat, com os melhores votos de felicidade."Querido filho, soube do desastre que te atingiu na entrada de Bagdá. E ficamos, tua mãe e eu, surpresos ao saber que
atuaste como intermediário num caso de divórcio. Pensamos, entretanto, que fizeste bem em ficar com a mulher, já que te agrada. "As mercadorias que te envio com o pequeno Salim, o abissínio, valem muito mais que os 10 mil dinares que deves ao marido anterior."
Tua mãe e eu gozamos de saúde e esperamos rever-te breve. Possas ser sempre feliz." Abu-Chamat ficou tão satisfeito que não parou para pensar na verossimilhança dessas afirmações, e no tempo necessário para que as notícias chegassem ao Cairo e as mercadorias viajassem do Cairo a Bagdá. Correu a informar a mulher. Logo em seguida, chegou o pai de Zubaida com o primeiro marido. "Rogo-te ter pena de meu genro", disse o pai de Zubaida a Abu-Chamat," pois ele ama sua mulher e não pode viver sem ela. Alá enviou-te riquezas. Poderás assim comprar as mais belas escravas do mercado ou casar-te com a filha de um emir." - Alá enviou-me riquezas para que possa compensar meu antecessor, corrigiu Abu-Chamat. Cedo-lhe as cinqüenta mulas com suas mercadorias e com Salim, o belo escravo abissínio. Contudo, se Zubaida deseja voltar para ele, dar-lhe-ei a sua liberdade. Consultada pelo pai, Zubaida respondeu: "Por Alá, ele nunca apreciou as flores de meu jardim. Nem pôde aproveitá-las. Sempre parava no meio do caminho. Prefiro ficar com o jovem que soube percorrer esse jardim em todas as direções." o ouvir essas palavras, o primeiro marido teve uma crise. Seu fígado rompeu-se de repente, e ele morreu na hora.
Abu-Chamat viveu na felicidade com sua mulher. Todas as noites copulavam e promoviam concertos. No décimo primeiro dia do casamento, Abu-Chamat se lembrou da promessa dos dervixes, e disse à mulher: "Chefe dos dervixes ou Chefe dos gabarolas? Se estivesse esperando por sua ajuda, apodreceria na cadeia. Se o encontrar de novo, dir-lhe-ei o que penso dele." Naquela mesma noite, iluminaram a casa e iam começar o concerto quando bateram à porta. Abu-Chamat foi abrir e encontrou os quatro dervixes. Riu-lhes na sua face e disse: ‘Sede bem-vindos, ó mentirosos. Alá me livrou de qualquer necessidade que me faria recorrer a vossa ajuda. Aliás, mesmo mentirosos, sois encantadores." No decorrer da noitada, um dos dervixes, o poeta Abu-Nauas, sussurrou discretamente ao ouvido do anfitrião: "Caro amigo posso dirigir-te uma pergunta? Como podes acreditar que as cinqüenta mulas eram um presente de teu pai? Quanto tempo leva uma notícia para ir de Bagdá ao Cairo e para as mulas virem do Cairo a Bagdá?" - Por Alá, exclamou Abu-Chamat, minha alegria foi tão grande que não parei para pensar. Dize-me, ó dervixe, quem escreveu a carta e mandou os presentes? - Simpático Abu-Chamat, se fosses tão esperto quanto és bonito, terias reconhecido há muito tempo, por baixo dessas roupas, o próprio califa arun Ar-Rachid, Jafar Al-Barmaki,seu vizir, Masrur, seu porta-espada, e este simples poeta,teu escravo Abu-Nauas. Abu-Chamat inclinou-se diante do califa, agradeceu-lhe e solicitou seu perdão. O califa sorriu, acariciou-lhe levemente as faces e disse-lhe: "Esperarei tua visita amanhã no palácio." Quando Abu-Chamat se apresentou ao califa no dia seguinte, foi nomeado representante dos mercadores de Bagdá, e o califa nunca mais passou um dia sem sua companhia. Pouco tempo depois, designou-o superintendente do palácio com honorários de milionário, e ofereceu-lhe ir ao mercado com Jafar escolher uma linda virgem por 10 mil dinares, que seria sua segunda esposa. Abu-Chamat escolheu uma jovem chamada Yasmina e amou a à primeira vista e apresentou-a a Zubaida, que a amou também. E Abu-Chamat viveu feliz entre suas duas mulheres,consagrando, alternadamente, uma noite a cada uma delas.




14/05/2008

Branca de Neve e os 7 Anões



Há muito, muito tempo mesmo, no coração do inverno, enquanto flocos de neve caíam do céu como fina plumagem, uma rainha, nobre e bela, estava ao pé de uma janela aberta, cuja moldura era de ébano.
Bordava e, de quando em quando, olhava os flocos caindo maciamente; picou o dedo com a agulha e três gotas de sangue purpurino caíram na neve, produzindo um efeito tão lindo, o branco manchado de vermelho e realçado pela negra moldura da janela, que a rainha suspirou. e disse consigo mesma:
“Quem me dera ter uma filha tão alva como a neve, carminada como o sangue e cujo rosto fosse emoldurado de preto como o ébano!”
Algum tempo depois, teve uma filhinha cuja tez era tão alva como a neve, carminada como o sangue e os cabelos negros como o ébano. Chamaram à menina de Branca de Neve; mas, ao nascer a criança, a rainha faleceu.
Decorrido o ano de luto, o rei casou-se em segundas núpcias, com uma princesa de grande beleza, mas extremamente orgulhosa e despótica; ela não podia suportar a ideia de que alguém a sobrepujasse em beleza. Possuía um espelho mágico, no qual se mirava e admirava frequentemente.
E então, dizia:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
O espelho respondia: - É Vossa Realeza a mulher mais bela desta redondeza.
Ela, então, sentia-se feliz, porque sabia que o espelho só podia dizer a pura verdade. No entanto, Branca de Neve crescia e aumentava em beleza e graça; aos sete anos de idade era tão linda como a luz do dia e muito mais que a rainha.
Um dia a rainha, sua madrasta, consultou como de costume o espelho.
- Espelhinho, meu espelhinho, responde-mo com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
O espelho respondeu:
- Real senhora, sois aqui a mais bela, Porém Branca de Neve é de vós ainda mais bela!
A rainha estremeceu e ficou verde de ciúmes. E daí, então, cada vez que via Branca de Neve, por todos adorada pela sua gentileza,. seu coração tinha verdadeiros sobressaltos de raiva.
- Sua inveja e seus ciúmes desenvolviam-se qual erva daninha, não lhe dando mais sossego, nem de dia, nem de noite.
Enfim, já não podendo mais, mandou chamar um caçador e disse-lhe:
- Leva essa menina para a floresta, não quero mais tornar a vê-la; leva-a como puderes para a floresta, onde tens de matá-la; traze-me, porém, o coração e o fígado como prova de sua morte.
O caçador obedeceu. Levou a menina para a floresta, sob pretexto de lhe mostrar os veados e corças que lá haviam. Mas, quando desembainhou o facão para enterrá-lo no coraçãozinho puro e inocente, ela desatou a chorar, implorando:
- Ah, querido caçador, deixa-me viver! Prometo ficar na floresta, e nunca mais voltar ao castelo; assim, quem te mandou matar-me, nunca saberá que me poupaste a vida.
Era tão linda e meiga que o caçador, que não era mau homem, apiedou-se dela e disse: Pois bem, fica na floresta, mas livra-te de sair Ia, porque a morte seria certa. E, em seu íntimo, ia pensando: “Nada arrisco, pois os animais ferozes vão devorá-la em breve e a vontade da rainha será satisfeita, sem que, eu seja obrigado a suportar o peso de um feio crime”.
Justamente nesse momento passou correndo um veadinho; o caçador. matou-o, tirou-lhe o coração e o fígado e levou-os à rainha como se fossem de Branca de Neve.
O cozinheiro foi incumbido de prepará-los e cozê-los; e, no seu rancor feroz, a rainha comeu-os com alegria desumana,. certa de estar comendo o que pertencera, a Branca.,. de Neve...
Durante esse tempo a pobre menina, que ficara abandonada na floresta, vagava tremula de medo, sem saber, que fazer. Tudo a assustava, o ruído da brisa, uma folha que caía, enfim, tudo produzia nela um terrível pavor.
Ouvindo o uivar dos lobos, pôs-se a correr cheia de terror; os pezinhos delicados, feriam-se nas pedras pontiagudas e estava toda arranhada pelos espinhos.
Passou ao pé de muitos animais ferozes., mas estes não lhe fizeram mal algum.
Enfim, à noitinha, cansada e ofegante, encontrou-se diante de uma linda casinha situada no meio de uma clareira. Entrou, mas não viu ninguém.
Contudo, a casa devia ser habitada, pois notou que tudo estava muito asseado e arrumadinho, dando gosto de se ver.
Numa graciosa mesa coberta com uma fina e alva toalha, achavam-se postos. sete pratinhos, sete colherinha e sete garfinhos, sete faquinhas e sete copinhos, tudo perfeitamente em ordem.
No quarto ao lado, viu sete caminhas uma junto da outra, com seus lençóis tão alvos.
Branca de Neve, que morria de fome e sede, aventurou-se a comer um pouquinho do que estava servido em cada pratinho, mas, não querendo privar nem um só dono de seu alimento, tirou somente um bocadinho de cada. e bebeu apenas um golinho do vinho de cada um.
Depois, não aguentando cansaço, foi deitar-se numa caminha, mas a primeira era curta demais, a segunda muito estreita, experimentando-as todas até que a sétima tinha a medida justa. Então fez sua oração, encomendou-se a Deus e em breve adormeceu profundamente.
Ao anoitecer chegaram os donos da casa; eram os sete anões, que trabalhavam durante o dia na escavação de minério na montanha.
Cada qual acendeu uma lanterninha e, quando a casa se iluminou, viram que alguém entrara em sua casa, porque não estava tudo na ordem perfeita conforme haviam deixado ao sair.
Sentaram-se à mesa, e, então, disse o primeiro:
- Quem mexeu na minha cadeirinha?
O segundo: - Quem, comeu do meu pratinho?
O terceiro: - Quem tocou no meu pãozinho?
O quarto: - Quem usou o meu garfinho?
O quinto: - Quem tirou um pouco da minha verdurinha?
O sexto: - Quem cortou com a minha faquinha?
E o sétimo: - Quem bebeu do meu copinho?
Depois da refeição, foram para o quarto; notaram logo as caminhas amassadas; o primeiro reclamou:
- Quem deitou na minha caminha?
- E na minha?
- E na minha? - gritaram os outros, cada qual examinando a própria cama.
Enfim, o sétimo descobriu Branca de Neve dormindo a sono solto na sua caminha.
Correram todos com suas lanterninhas e cheios de admiração exclamaram:
- Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! que encantadora e linda menina!
Sentiam-se tão transportados de alegria, que não quiseram acordá-la e deixaram-na dormir tranquilamente.
O sétimo anão dormiu uma hora com cada um de seus companheiros; e assim passou a noite.
No dia seguinte, quando Branca de Neve acordou e levantou-se, ficou muito assustada ao ver os sete anões.
Mas eles sorriram-lhe e perguntaram com a maior amabilidade:
- Como te chamas? - Chamo-me Branca de Neve, respondeu ela. - Como vieste aqui à nossa casa?
Ela contou-lhes como sua madrasta mandara matá-la e como o caçador lhe permitira que vivesse na floresta.
Após ter corrido o dia todo chegara aí e, vendo a linda casinha, entrara para descansar um pouco.
Os anões perguntaram-lhe:
- Queres ficar connosco? Aqui não te faltará nada, só tens que cuidar da casa, fazer nossa comida, lavar e passar nossa roupa, coser, tecer nossas meias e manter tudo muito limpo e em ordem; mas; quando tiveres acabado o teu trabalho, serás a nossa rainha.
- Sim, anuiu a menina - ficarei convosco de todo o coração!



E ficou morando com eles, procurando manter tudo sempre em ordem. Pela manhã, eles partiam para as cavernas em busca- de ouro e minérios e, à noite, quando voltavam, todos jantavam juntos muito alegres.
Como a menina ficava só durante ó dia, os anões advertiram-na que se acautelasse:
- Toma cuidado com a tua madrasta; não tardará a saber onde estás, por isso, durante nossa ausência, não deixes entrar ninguém aqui.
A rainha, entretanto, certa de ter comido o fígado e o coração de Branca de Neve, vivia despreocupada, ela pensava, satisfeita, que era, novamente, a primeira e mais bela mulher do reino.
Certo dia, porém, teve a fantasia de consultar o espelho, e certa de que lhe responderia não ter mais nenhuma rival em beldade. Assim mesmo disse:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-mo com franqueza:
Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
Imaginem o seu furor quando o espelho respondeu:
- Real senhora, do país sois a mais formosa. Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive e em casa dos sete anões, é de vós mil vezes mais formosa!
A rainha ficou furiosa, pois sabia que o espelho não podia mentir. Percebeu, assim, que o caçador a enganara e que Branca de Neve continuava a viver.
Novamente devorada pelo ciúme e pela inveja, só pensava na maneira de suprimi-la encontrando algum alívio só quando julgou ter ao alcance o meio desejado.
Pensou, pensou, pensou, depois tingiu o rosto e disfarçou-se em velha vendedora de quinquilharias, de maneira perfeitamente irreconhecível.
Assim disfarçada, transpôs as sete montanhas e foi à casa dos sete anões; chegando lá, bateu à porta e gritou:
- Belas coisas para vender, belas coisas; quem quer comprar?
Branca de Neve, que estava no primeiro andar e se aborrecia por ficar sozinha todo o santo dia, abriu a janela e perguntou-lhe o que tinha para vender.
- Oh! coisas lindíssimas, - respondeu a velha – olhe este fino e elegante cinto.
A o mesmo tempo, mostrava um cinto de cetim cor de rosa, todo recamado de seda multicor. “Esta boa mulher posso deixar entrar sem perigo”, calculou Branca de Neve; então desceu, puxou o ferrolho e comprou o cinto.
Mas a velha disse-lhe: - Tu não sabes abotoá-lo! Vem, por esta vez, eu te ajudarei a fazê-lo, como se deve.
A menina postou-se confiante na frente da velha, deixando que lhe abotoasse o cinto; então a cruel inimiga, mais que depressa, apertou-o com tanta força, que a menina perdeu a respiração e caiu desacordada no chão.
- Ah, ah! - exclamou a rainha, muito contente – Já foste a mais bela! E fugiu rapidamente, voltando ao castelo.
Felizmente, os anões, nesse dia, tendo terminado o trabalho mais cedo que de costume, voltaram logo para casa.
E qual não foi seu susto ao verem a querida Branca de Neve estendida no chão, rígida como se estivesse morta! Ergueram-na e viram que o cinto apertava demais sua cinturinha. Logo o desabotoaram e ela começou a respirar levemente e, pouco a pouco, voltou a si e pôde contar o que sucedera.
Os anões disseram-lhe:
- Foste muito imprudente; aquela velha era, sem dúvida, a tua horrível madrasta. Portanto, no futuro, tenha mais cuidado, não deixes entrar mais ninguém quando não estivermos em casa.
- A pérfida rainha, logo que chegou ao castelo, correu ao espelho, esperando, enfim, ouvi-lo proclamar a sua absoluta beleza, o que para ela soava mais deliciosamente que tudo, e perguntou:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza:
Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
Como da outra vez, o espelho respondeu:
- Real senhora, do país sois a mais formosa. Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive o em casa dos sete anões... é de vós mil vezes mais formosa!
A essas palavras a rainha sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias; empalideceu de inveja e, depois, torcendo-se de raiva, compreendeu que a rival ainda estava viva. Pensou, novamente, num meio de perder a inocente, causa de seu rancor.
“Ah, desta vez hei de arranjar alguma coisa que será a tua ruína!”
E, como entendia de bruxedos, pegou num magnífico pente. cravejado de pérolas e besuntou-lhe os dentes com o veneno feito por ela própria.
Depois, disfarçando-se de outro modo, dirigiu-se para a casa dos sete anões; aí bateu à porta, gritando:
- Belas coisas para vender! coisas bonitas e baratas; quem quer - comprar? Branca de Neve abriu a janela e disse: - Podeis seguir vosso caminho boa mulher; eu não posso abrir a ninguém.
- Mas olhar, apenas, não te será proibido! - disse a velha - Olha este pente. cravejado de pérolas e digno de uma princesa. Pega nele e admira de perto, nada pagarás por isso!
Branca de Neve. deixou-se tentar pelo brilho das pérolas; depois de o ter bem examinado, quis comprá-lo e abriu a porta à velha, que lhe disse:
- Espera, vou ajudar você e a pôr o pente nos teus lindos e sedosos cabelos, para que estejas bem adornada.
A pobre menina, sem saber, deixou-a fazer; a velha enterrou-lhe o pente com violência; mal os dentes tocaram na pele, Branca de Neve caiu morta sob a acção do veneno.
A rainha maldosa resmungou satisfeita:
- Enfim bem morta, Flor de Beleza! - Agora tudo se acabou para ti! Adeus!- exclamou, a rainha, soltando uma gargalhada medonha. e apressando-se a regressar ao castelo.
Já estava anoitecendo e os anões não tardaram a chegar. Quando viram Branca de Neve estendida no chão, desacordada, logo adivinharam nisso a mão da madrasta. Procuraram o que lhe poderia ter feito e encontraram o pente envenenado. Assim que o tiraram da cabeça, a menina voltou a si e pôde contar o que sucedera. Novamente a preveniram que tomasse cuidado e não abrisse a porta, dizendo:
- Foi ainda a tua madrasta quem te pregou essa peça. Preciso que nos prometas que nunca mais. abrirás a porta, seja lá a quem for. Branca de Neve prometeu tudo o que os anões lhe pediram.
Apenas de volta ao castelo, a rainha correu a pegar no espelho e perguntou:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza:
Qual- a mulher mais bela de toda a redondeza?
Mas a resposta foi como das vezes anteriores. O espelho repetiu:
- Real senhora, do pais sois a mais formosa, Mas Branca de Neve, que por trás dos montes vive e em casa dos sete anões, é de vós mil vezes mais formosa!
Ao ouvir tais palavras, ela teve um assomo de ódio, grito a raiva malvada:
- Hás de morrer, criatura miserável, ainda que eu tenha que o pagar com minha vida!
Levou vários dias consultando todos os livros de bruxaria; finalmente fechou-se num quarto, ciosamente oculto, onde jamais entrava alma viva e aí preparou uma maçã, impregnando-a de veneno mortífero.
Por fora era mesmo tentadora, branca e vermelha, e com um perfume tão delicioso que despertava a gula de qualquer um; mas, quem provasse um pedacinho, teria morte infalível.
Tendo assim preparado a maçã, pintou o rosto e disfarçou-se em camponesa e como tal encaminhou-se, transpondo as sete montanhas e indo bater à casa dos sete anões. Branca de Neve saiu à janela e disse:
- Vai embora, boa mulher, não posso abrir a ninguém; os sete anões proibiram.
- Não preciso entrar, - respondeu a falsa camponesa - podes ver as maçãs pela janela, se as quiseres comprar. Eu venderei alhures minhas maçãs, mas quero dar-te esta de presente. Vê como ela é magnífica! Seu perfume embalsama o ar. - Prova um pedacinho, estou certa de que a acharás deliciosa!
- Não, não, - respondeu Branca de Neve - não me atrevo a aceitar.
- Receias, acaso, que esteja envenenada? - disse a mulher - Olha, vou comer a metade da maçã e tu depois poderás comer o resto para veres que deliciosa é ela.
Cortou a maçã e pôs-se a comer a parte mais tenra pois a maçã havia sido habilmente preparada, de maneira que o veneno estava todo concentrado na cor vermelha.
Branca de Neve, tranquilizada, olhava cobiçosamente para a linda maçã e, quando viu a camponesa mastigar a sua metade, não resistiu, estendeu a mão e pegou a parte envenenada. Apenas lhe deu a primeira dentada, caiu no chão, sem vida.
Então a pérfida madrasta contemplou-a com ar feroz.
Depois, - saltando e rindo com uma alegria infernal, exclamou:
- Branca como a neve, rosada como o sangue e preta como o ébano! Enfim, morta, morta, criatura atormentadora!
Desta vez nem todos os anões do mundo poderão despertar-te!
Apressou-se a voltar ao castelo; mal chegou, dirigiu-se ao espelho e perguntou:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza: Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
Desta vez o espelho respondeu:
- De toda a redondeza agora, Real senhora, sois vós a mais formosa!
Sentiu-se transportada de júbilo e seu coração tranquilizou-se, enfim, tanto quanto é possível a um coração invejoso e mau.
Os anões, regressando à noitinha; encontraram Branca de Neve estendida no chão, morta. Levantaram-na e procuraram, em vão, o que pudera causar-lhe a morte; desabotoaram-lhe o vestido, pentearam-lhe o cabelo. Lavaram-na com água e vinho, mas tudo foi inútil: a menina estava realmente morta.
Então, colocaram-na num esquife é choraram durante três dias. Depois cuidaram de enterrá-la, porém ela conservava as cores frescas e rosadas como se estivesse dormindo. Eles então disseram:
- Não, não podemos enterrá-la na terra preta.
Fabricaram um esquife de cristal para que fosse visível de todos os lados e gravaram - na tampa, com letras de ouro o seu nome e sua origem real; colocaram-na dentro e levaram-na para o cume da montanha vizinha, onde ficou exposta, e cada um por sua vez ficava ao pé dele para a guardar contra os animais ferozes.
Mas podiam dispensar-se disso; os animais, todos da floresta, até mesmo os abutres, os lobos, os ursos, os esquilos e pombinhas, vinham chorar ao pé da inocente Branca de Neve.
Muitos anos passou Branca de Neve dentro do esquife, sem apodrecer; parecia estar dormindo, pois sua tez era ainda como a desejara a mãe: branca como a Neve, rosada como o sangue e os longos cabelos pretos como ébano; não tinha o mais leve sinal de morte.
Um belo dia, um jovem príncipe, filho de um poderoso rei, tendo-se extraviado durante a caça na floresta, chegou à montanha onde Branca de Neve repousava dentro de, seu esquife de cristal. Viu-a e ficou deslumbrado com tanta beleza, leu o que estava gravado em letras de ouro e não mais a esqueceu.
Pernoitando em casa dos anões disse-lhes:
- Dai-me esse esquife; eu vos darei todos os meus tesouros para poder levá-lo ao meu castelo. Mas os anões responderam:
- Não; não cedemos a nossa querida filha nem por todo o ouro do mundo. O príncipe caiu em profunda tristeza e permaneceu extasiado na contemplação da beleza tão pura de Branca de Neve; tornou a pedir aos anões:
- Fazei-me presente dele, pois já não posso mais viver sem a ter diante de meus olhos; quero dar-lhe as honras que só se prestam ao ser mais amado neste mundo.
Ao ouvirem essas palavras, e vendo a grande tristeza do príncipe, os anões compadeceram-se dele e deram-lhe Branca de Neve, certos de que ele não deixaria de colocá-la na sala de honra do seu castelo.
O príncipe tendo encontrado seus criados, mandou que pegassem no caixão e o carregassem nos ombros.
Aconteceu, porém, que um dos criados tropeçou numa raiz de árvore e, com o solavanco, pulou da boca meio aberta o bocadinho de maça que ela mordera mas não engolira.
Então Branca de Neve reanimou-se; respirou profundamente, abriu os olhos, levantou a tampa do esquife e sentou-se: estava viva.
- Meu Deus, onde estou? - exclamou ela.
O príncipe, radiante de alegria, disse-lhe:
- Estás comigo. Agora acabaram todos os teus tormentos, bela garota; a mais preciosa que tudo quanto há no mundo; vamos ao castelo de meu pai, que é um grande e poderoso rei, e serás a minha esposa bem amada.
Como o príncipe era encantador e muito gentil, Branca de Neve aceitou-lhe a mão. O rei muito satisfeito com a escolha do filho, mandou preparar tudo para umas núpcias sumptuosas.
Para a festa, além dos anões, foi convidada também a rainha que, ignorando quem era a noiva, vestiu os seus mais ricos trajes, pensando eclipsar todas as damas e donzelas. Depois de vestida, foi contemplar-se no espelho, certa de ouvir proclamar sua beleza triunfante. Perguntou:
- Espelhinho, meu espelhinho, Responde-me com franqueza:
Qual a mulher mais bela de toda a redondeza?
Qual não foi seu espanto ao ouvi-lo responder:
- Real senhora, de todas aqui solo a mais bela agora, Mas a noiva do filho do rei, é de vós mil vezes mais formosa!
A perversa mulher soltou uma imprecação e ficou tão exasperada que não podia controlar-se e não queria mais ir à festa. Entretanto, como a inveja não lhe dava tréguas, sentiu-se arrastada a ver a jovem rainha. Quando fez a entrada no castelo, perante a corte reunida, Branca de Neve logo reconheceu sua madrasta e quase desmaiou de susto.
A horrível mulher fitava-a como uma serpente ao fascinar um passarinho. Mas sobre o braseiro já estavam prontos um par de sapatos de ferro, que haviam ficado a esquentar em ponto de brasa; os anões apoderaram-se dela e, calçando-lhe à força aqueles sapatos quentes como fogo, obrigaram-na a dançar, a dançar, a dançar, até cair morta no chão.
Em seguida, realizou-se a festa com um esplendor jamais visto sobre a terra, e todos, grandes e pequenos, ficaram profundamente alegres.






12/05/2008

Comadre Morte

Havia um homem que tinha tantos filhos, tantos que não havia ninguém na freguesia que não fosse compadre dele e vai a mulher teve mais um filho. Que havia do homem fazer? Foi por esses caminhos fora a ver se encontrava alguém que convidasse para compadre.
Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queria ser compadre dele.
– Quero; mas tu sabes quem eu sou?
– Eu sei lá; o que eu quero é alguém para padrinho do meu filho. – Pois, olha, eu cá sou Deus.
– Já me não serves; porque tu dás a riqueza a uns e a pobreza a outros.
Foi mais adiante; e encontrou uma pobre e perguntou-lhe se queria ser comadre dele.
– Quero; mas sabes tu quem eu sou?
– Não sei.
– Pois, olha, eu cá sou a Morte.
– És tu que me serves, porque tratas a todos por igual.
Fez-se o baptizado e depois disse a Morte ao homem:
– Já que tu me escolheste para comadre, quero-te fazer rico. Tu fazes de médico e vais por essas terras curar doentes; tu entras e se vires que eu estou à cabeceira é sinal que o doente não escapa e escusas de lhe dar remédio; mas se estiver aos pés é porque escapa; mas livra-te de querer curar aqueles a que eu estiver à cabeceira, porque te dou cabo da pele.
Assim foi. O homem ia às casas e se via a comadre à cabeceira dos doentes abanava as orelhas; mas se ela estava aos pés receitava o que lhe parecia. Vejam lá se ele não havia de ganhar fama e patacaria, que era uma coisa por maior! Mas vai uma vez foi a casa dum doente muito rico e a Morte estava à cabeceira; abanou as orelhas; disseram-lhe que lhe davam tantos contos de réis se o livrasse da Morte e ele disse:
– Deixa estar que eu te arranjo, e pega no doente e muda-o com a cabeça para onde estavam os pés e ele escapa.
Quando ia para casa sai-lhe a comadre ao caminho:
-Venho buscar-te por aquela traição que me fizeste.
– Pois, então, deixa-me rezar um padre-nosso antes de morrer.
– Pois reza.
Mas ele rezar; qual rezou! Não rezou nada e a Morte para não faltar à palavra foi-se sem ele.
Um dia o homem encontra a comadre que estava por morta num caminho; e ele lembrou-se do bem que ela lhe tinha feito e disse:
– Minha rica comadrinha, que estás aqui morta; deixa-me rezar-te um padre-nosso por tua alma.
Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse:
– Pois já que rezaste o padre-nosso, vem comigo.
O homem era esperto; mas a Morte ainda era mais; pois não era?


Recolha de Adolfo Coelho

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10/05/2008

Chapeuzinho vermelho

Tradução de: Tatiana Belinky


Era uma vez uma meninazinha mimosa, que todo o mundo amava assim que a via, mas mais que todos a amava a sua avó. Ela não sabia mais o que dar a essa criança. Certa vez, ela deu-lhe de presente um capuzinho de veludo vermelho, e porque este lhe ficava tão bem, e a menina não queria mais usar outra coisa, ficou se chamando Certo dia, sua mãe lhe disse:
– Vem cá, Chapeuzinho Vermelho; aqui tens um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho, leva isto para a vovó; ela está doente e fraca e se fortificará com isto. Sai antes que comece a esquentar, e quando saíres, anda direitinha e comportada e não saias do caminho, senão podes cair e quebrar o vidro e a vovó ficará sem nada. E quando chegares lá, não esqueças de dizer bom-dia, e não fiques espiando por todos os cantos.
– Vou fazer tudo como se deve, – disse Chapeuzinho Vermelho à mãe, dando-lhe a mão como promessa.
A avó, porém, morava lá fora na floresta, a meia hora da aldeia.
E quando Chapeuzinho Vermelho entrou na floresta, encontrou-se com o lobo. Mas Chapeuzinho Vermelho não sabia que fera malvada era aquela, e não teve medo dele.
– Bom dia, Chapeuzinho Vermelho, – disse ele.
– Muito obrigada, lobo.
– Para onde vai tão cedo, Chapeuzinho Vermelho?
– Para a casa da vovó.
– E o que trazes aí debaixo do avental?
– Bolo e vinho. Foi assado ontem, e a vovó fraca e doente vai saboreá-lo e se fortificar com o vinho.
– Chapeuzinho Vermelho, onde mora a tua avó?
– Mais um bom quarto de hora adiante no mato, debaixo dos três grandes carvalhos, lá fica a sua casa; em baixo ficam as moitas de avelã, decerto já sabes isso, – disse Chapeuzinho Vermelho.
O lobo pensou consigo mesmo: “Esta coisinha nova e tenra, ela é um bom bocado que será ainda mais saboroso do que a velha.
Tenho de ser muito esperto, para apanhar as duas”.
Então ele ficou andando ao lado de Chapeuzinho Vermelho e logo falou:
– Chapeuzinho Vermelho, olha só para as lindas flores que crescem aqui em volta! Por que não olhas para os lados? Acho que nem ouves o mavioso canto dos passarinhos! Andas em frente como se fosses para a escola, e no entanto é tão alegre lá no meio do mato.
Chapeuzinho Vermelho arregalou os olhos e, quando viu os raios de sol dançando de lá para cá por entre as árvores, e como tudo estava tão cheio de flores, pensou: “Se eu levar um raminho de flores frescas para a vovó, ela ficará contente; ainda é tão cedo, que chegarei lá no tempo certo”.
Então ela saiu do caminho e correu para o mato, à procura de flores. E quando apanhava uma, parecia-lhe que mais adiante havia outra mais bonita, e ela corria para colhê-la e se embrenhava cada vez mais pela floresta adentro.
O lobo, porém, foi directo para a casa da avó e bateu na porta.
– Quem está aí fora?
– É Chapeuzinho Vermelho, que te traz bolo e vinho, abre!
– Aperta a maçaneta, – disse a vovó – eu estou muito fraca e não posso me levantar.
O lobo apertou a maçaneta, a porta se abriu, e ele foi, sem dizer uma palavra, directo para a cama da vovó e engoliu-a. Depois, ele se vestiu com a roupa dela, pôs a sua touca na cabeça, deitou-se na cama e puxou o cortinado.
Chapeuzinho Vermelho, porém, correu atrás das flores, e quando juntou tantas que não podia carregar mais, lembrou-se da vovó e se pôs a caminho da sua casa. Admirou-se ao encontrar a porta aberta, e quando entrou, percebeu alguma coisa tão estranha lá dentro, que pensou: “Ai, meu Deus, sinto-me tão assustada, eu que sempre gosto tanto de visitar a vovó!” E ela gritou:
– Bom-dia!
Mas não recebeu resposta. Então ela se aproximou da cama e abriu as cortinas. Lá estava a vovó deitada, com a touca bem afundada na cabeça e um aspecto muito esquisito.
– Ai, vovó, que orelhas grandes que você tem!
– É para te ouvir melhor!
– Ai, vovó, que olhos grandes que você tem!
– É para te enxergar melhor.
– Ai, vovó, que mãos grandes que você tem!
– É para te agarrar melhor.
– Ai, vovó, que bocarra enorme que você tem!
– É para te devorar melhor.
E nem bem o lobo disse isso, deu um pulo da cama e engoliu a pobre Chapeuzinho Vermelho.
Quando o lobo satisfez a sua vontade, deitou-se de novo na cama, adormeceu e começou a roncar muito alto. O caçador passou perto da casa e pensou: “Como a velha está roncando hoje! Preciso ver se não lhe falta alguma coisa”. Então ele entrou na casa, e quando olhou para a cama, viu que o lobo dormia nela.
– É aqui que eu te encontro, velho malfeitor, – disse ele – há muito tempo que estou à tua procura.
Aí ele quis apontar a espingarda, mas lembrou-se de que o lobo podia ter devorado a vovó, e que ela ainda poderia ser salva. Por isso, ele não atirou, mas pegou uma tesoura e começou a abrir a barriga do lobo adormecido. E quando deu algumas tesouradas, viu logo o vermelho do chapeuzinho, e mais um par de tesouradas, e a menina saltou para fora e gritou:
– Ai, como eu fiquei assustada, como estava escuro lá dentro da barriga do lobo!
E aí também a velha avó saiu para fora ainda viva, mal conseguindo respirar. Mas Chapeuzinho Vermelho trouxe depressa umas grandes pedras, com as quais encheu a barriga do lobo. Quando ele acordou, quis fugir correndo, mas as pedras eram tão pesadas, que ele não pôde se levantar e caiu morto.
Então os três ficaram contentíssimos. O caçador arrancou a pele do lobo e levou-a para casa, a vovó comeu o bolo e bebeu o vinho que Chapeuzinho Vermelho trouxera, e logo melhorou, mas Chapeuzinho Vermelho pensou: “Nunca mais eu sairei do caminho sozinha, para correr dentro do mato, quando a mamãe me proibir fazer isso”.





Barba Azul



Era uma vez um homem que tinha belas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis trabalhados e carruagens douradas; mas, por desventura, esse homem tinha a barba azul: isto o fazia tão feio e tão terrível que não havia mulher nem moça que não fugisse ao vê-lo.
Uma de suas vizinhas, dama de alta linhagem, tinha duas filhas absolutamente belas. Ele pediu-lhe uma delas em casamento, deixando a escolha à vontade materna. Nenhuma das duas o queria, e cada uma o passava à outra, pois nenhuma podia decidir-se a aceitar um homem de barba azul. Aborrecia-as também a circunstância de ele já ter desposado várias mulheres sem que ninguém soubesse o que era feito delas.
Para travar relações com as moças, Barba-Azul levou-as, juntamente com a mãe e as três ou quatro melhores amigas, e algumas jovens da vizinhança, a uma das suas casas de campo, onde passaram nada menos de oito dias. E eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e merendas: ninguém dormia, levavam a noite a pregar peças uns aos outros; afinal, tudo correu às mil maravilhas, e a mais nova das meninas começou a achar que o dono da casa não tinha a barba tão azul, e que era homem muito digno. E, logo que tornaram à cidade, realizou-se o casamento.
Ao cabo de um mês, Barba-Azul disse à mulher que tinha de fazer uma viagem à província, de seis semanas, no mínimo, para um negócio de importância; que lhe pedia se divertisse à vontade durante a ausência dele - mandasse buscar suas boas amigas, levasse-as ao campo, se quisesse, comesse do bom e do melhor.
- Aqui estão - disse-lhe - as chaves dos dois grandes guarda-móveis; aqui as da baixela de ouro e de prata que só se usa nos grandes dias; aqui as dos meus cofres, onde está o meu ouro e a minha prata, as dos cofres de minhas jóias e aqui a chave de todas as dependências da casa. Esta chavezinha é a chave do gabinete que fica no extremo da grande galeria do porão: pode abrir tudo, pode ir aonde quiser, mas neste pequeno gabinete eu lhe proíbo de entrar, e o proíbo de tal maneira que, se acontecer abri-lo, não há nada que você não possa esperar da minha cólera.

Ela prometeu cumprir à risca tudo quanto acabava de ser ordenado: e ele, depois de beijá-la, toma sua carruagem e parte.
As vizinhas e as boas amigas não esperaram, para ir à residência da jovem esposa, que as mandassem buscar, tão sôfregas estavam de ver-lhe todas as riquezas da casa, não havendo ousado ir lá enquanto o marido se achava por causa de sua barba azul, que lhes fazia medo. E ei-las, sem perda de tempo, a percorrer os quartos, gabinetes, vestiários, cada um mais belo que os outros. Subiram depois aos guarda-móveis, onde não se cansavam de admirar o número e a beleza das tapeçarias, dos leitos, dos sofás, dos guarda-roupas, dos veladores, das mesas e dos espelhos, nos quais a gente se via da cabeça aos pés, e cujos ornatos, uns de vidro, outros de prata, ou de prata dourada, eram os mais belos e magníficos que já se poderiam ter visto. Não cessavam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, a quem, no entanto, não alegravam todas essas riquezas, ansiosa que estava de abrir o gabinete do porão.
Sentiu-se tão premida pela curiosidade que, sem refletir que era uma indelicadeza deixar sozinhas as visitas, desceu até lá por uma escadinha oculta, e com tamanha precipitação que por duas ou três vezes pensou em quebrar o pescoço. Chegando à porta do gabinete, aí se deteve algum tempo, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por haver sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a pôde vencer: tomou da chavezinha e abriu, trêmula, a porta do gabinete.
A princípio não viu coisa alguma, porque as janelas se achavam fechadas; momentos depois começou a notar que o assoalho estava todo coberto de sangue coalhado, no qual se espelhavam os corpos de várias mulheres mortas, presas ao longo das paredes (eram todas mulheres que Barba-Azul desposara e que havia estrangulado). Cuidou morrer de susto, e a chave do gabinete que acabava de retirar da fechadura, caiu-lhe da mão. Após haver recobrado um pouco o ânimo, apanhou a chave, fechou a porta e subiu ao quarto para refazer-se; não o conseguia, porém, devido à sua grande perturbação.
Tendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não desaparecia; lavou-a, esfregou-a com sabão e pedra-pomes; debalde: o sangue ficava sempre, pois a chave era fada, e não havia meio de limpá-la inteiramente: quando se tirava o sangue de um lado, ele voltava do outro.
Barba-Azul regressou de sua viagem logo nessa noite, e disse haver recebido, no caminho, notícias de que o negócio que o levara a partir acabara de realizar-se com vantagem para ele. A mulher fez quanto pôde para se mostrar encantada com esse breve retorno.
No dia seguinte ele pediu-lhe as chaves, e ela as entregou, porém a mão tremia tanto que Barba-Azul adivinhou sem esforço todo o ocorrido.
- Por que é - perguntou-lhe - que a chave do gabinete não está junto com as outras?
- Devo tê-las deixado lá em cima, sobre a minha mesa.
- Quero a chave aqui, já!
Depois de várias delongas, a mulher teve que levá-la. Barba-Azul examinou-a e disse:
- Por que há sangue nesta chave?
- Não sei nada disso - respondeu a pobre criatura, mais pálida que a morte.
- Você não sabe nada - continuou ele - mas eu sei muito bem; você quis entrar no meu gabinete! Está certo, senhora, lá entrará e irá ter o seu lugar ao lado das que lá encontrou.
Ela se atirou aos pés do marido, chorando e pedindo-lhe perdão, com todos os sinais de um arrependimento sincero de não haver sido obediente. Bela e aflita como estava, seria capaz de enternecer um rochedo; mas Barba-Azul tinha o coração mais duro que um rochedo:
- Tem de morrer, senhora, e imediatamente.
- Visto que tenho que morrer - respondeu ela, fitando-o com os olhos banhados de lágrimas - dê-me um pouco de tempo para rezar a Deus.
- Dou-lhe meio quarto de hora - replicou Barba-Azul - e nem um momento a mais.
Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe:
- Minha irmã, sobe ao alto da torre, eu te suplico, para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que me viriam ver hoje, e, se os vires, faze-lhes sinal para que se apressem.
A irmã subiu ao alto da torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando:
- Ana, minha irmã, não vês ninguém?
E a irmã respondia:
- Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja. Entrementes, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força:
- Desce depressa, ou eu subirei aí.
- Mais um momento, por favor -, respondia-lhe a mulher. E logo, baixinho:
- Ana, minha irmã, não vês ninguém?
E a irmã Ana respondia:
- Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja.
- Desce depressa - bradava Barba-Azul -, ou eu subirei aí.
- Já vou - respondeu a mulher. E depois:
- Ana, minha irmã, não vês ninguém?
- Só vejo - respondeu a irmã Ana - uma grossa poeira que vem desta banda.
- São meus irmãos?
- Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros.
- Não queres descer? - bradava Barba Azul.
- Mais um momento - respondia a mulher.
E depois:
- Ana, minha irmã, não vês ninguém?
- Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão muito longe… Louvado seja Deus! - exclamou um instante depois. - São meus irmãos; estou lhes fazendo sinal, tanto quanto me é possível, para que se apressem.
Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se aos pés dele, desgrenhada e em prantos.
- Isto não adianta nada - disse Barba Azul. - Tens de morrer.
Em seguida, segurando-a com uma das mãos pelos cabelos e erguendo-a com a outra o cutelo no ar, ia cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher.
- Não, não - disse ele -, e encomenda bem tua alma a Deus. E ia erguendo o braço… Neste momento bateram à porta com tanta força que Barba Azul se deteve instantaneamente. Abriram e logo se viu entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram direto a Barba Azul.
Ele reconheceu que eram os irmãos da esposa, um deles dragão e o outro mosqueteiro, e fugiu sem demora para salvar-se; mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa. Atravessaram-no a fio de espada, e o deixaram morto. A pobre dama estava quase tão morta quanto o marido, nem lhe restavam forças para beijar os irmãos.
Verificou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão por que sua mulher se tornou dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento de sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que a amava desde muito tempo; outra parte na compra do posto de capitão para seus dois irmãos, e o resto no casamento dela própria com um homem muito distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba Azul.





09/05/2008

Frei João Sem Cuidados


O rei ouvia sempre falar em Frei João Sem Cuidados como um homem que não se afligia com coisa nenhuma deste mundo.
- Deixa estar, que eu é que te hei-de meter em trabalhos!
Mandou-o chamar à sua presença e disse-lhe:
- Vou dar-te uma adivinha e, se dentro de três dias não me souberes responder, mando-te matar. Quero que me digas quanto pesa a Lua, quanta água tem o mar, e o que é que eu penso?
Frei João Sem Cuidados saíu do palácio bastante atrapalhado, pensando na resposta que havia de dar àquelas perguntas. O seu moleiro encontrou-o no caminho e lá estranhou de ver Frei João Sem Cuidados de cabeça baixa e macambúzio.
- Olá, senhor Frei João Sem Cuidados, então que é isso que o vejo tão triste?
- É que o rei disse-me que me mandava matar se dentro de três dias eu não lhe respondesse a estas perguntas:Quanto pesa a Lua? Quanta água tem o mar? O que ele pensa? O moleiro pôs-se a rir e disse-lhe que não tivesse cuidados, que lhe emprestasse o hábito de frade, que ele iria disfarçado e havia de dar boas respostas ao rei.
Passados os três dias o moleiro, vestido de frade, foi pedir audiência ao rei. O rei perguntou-lhe: - Então quanto pesa a Lua?
- Saberá Vossa Majestade que não pode pesar mais do que um arrátel, porque todos dizem que ela tem quatro quartos.
- É verdade... E agora: quanta água tem o mar?
Respondeu o moleiro:
- Isso é muito fácil de saber. Mas como Vossa Majestade só quis saber da água do mar, é preciso primeiro que mande tapar todos os rios, porque sem isso nada feito.
O rei achou bem respondido. Mas zangado por ver que Frei João Sem Cuidados se escapava das dificuldades, tornou:
- Agora, se não souberes o que penso, mando-te matar!
O moleiro respondeu:
- Ora Vossa Majestade pensa que está a falar com o Frei João Sem Cuidados, e está mas é a falar com o seu moleiro!
Deixou cair o hábito de frade, e o rei ficou pasmado com a sua esperteza.


Recolha de Teófilo Braga

07/05/2008

Kamar Az-Zaman e a Princesa Budur


Conta-se que havia na Pérsia, em tempos idos, um rei chamado Chahriman, dono de exércitos e riquezas e poder, que tinha um filho tão lindo que o chamou Kamar Az-Zaman, Lua do Tempo. Um dia, o pai disse-lhe: "Meu filho, desejaria ver-te casado e provido de descendentes que continuarão nossa linhagem." Kamar Az-Zaman mudou de cor e respondeu: "Pai, não sinto inclinação para o casamento, e meu coração não se regozija na companhia das mulheres. Li nos livros dos sábios tantas crônicas sobre a perfídia desse sexo que prefiro morrer a viver com uma mulher." Aconselhado pelo vizir, o rei deixou passar um ano antes de voltar ao assunto. Mas quando a ele voltou, achou o filho tão oposto ao casamento quanto antes. "Como estão iludidos os pais quando desejam filhos," lamentou o rei. "Pois um filho é uma decepção e uma mágoa encarnadas." Ora, vivia na mesma época um rei da China chamado Ghayur que tinha uma filha mais esplêndida que a aurora e que ele chamou Budur, Luas - diversas luas reunidas numa só. Amava-a tanto que mandara construir para ela sete palácios, cada qual diferente dos outros: o primeiro era de cristal; o segundo, de mármore; o terceiro, de ferro chinês; o quarto, de pedras preciosas; o quinto, de prata; o sexto, de ouro; e o sétimo, de jóias. Disse um admirador: "Vi a jovem passeando em seus palácios; será surpreendente que tenha perdido a razão?" Todos os reis procuraram essa beleza incomparável para seus filhos; mas cada vez que o pai Ihe falava em casamento, Budur respondia: "Sou a rainha e a dona de mim mesma. Como pode meu corpo, que mal agüenta o toque da seda, tolerar o contacto rude de um homem`?" Quando seu pai insistia, ela ameaçava matar-se. Para castigar a desobediência do filho, o rei Chahriman o tinha condenado a viver numa torre antiga abandonada, atrás da qual havia um poço onde se refugiara uma jovem Afrita da descendência de Ibliss, chamada Maimuna. Era a filha de Dimiryat, rei dos gênios subterrâneos. Uma noite, Maimuna avistou luzes na torre inabitada e, curiosa, quis ver o que lá acontecia. Voou e entrou nos aposentos iluminados e viu Kamar Az Zaman deitado seminu na cama. As palavras não conseguem descrever sua surpresa e alegria. Ela nunca havia visto beleza igual. Ficou uma hora a contemplá-lo, depois depositou beijos delicados em seus lábios, olhos, faces e saiu descontrolada. Cruzou na saída com o Afrit Dachnack, que chegava da China onde ficara deslumbrado com a beleza da princesa Budur. Contou sua aventura a Maimuna. Maimuna recebeu suas confidências com escárnio: "Tuas observações acerca dessa jovem desgostam-me. Como ousas compará-la ao jovem que eu amo? Ele é tão lindo que, se o visses apenas em sonho, cairias como um epilético e roncarias como um camelo." Para pôr fim à discussão, os dois gênios decidiram visitar os dois jovens e comparar-Ihes a beleza. Apostaram mil dinares no vencedor. Maimuna levou então o Afrit até o aposento de Kamar Az-Zaman, e ele disse: "Maimuna, compreendo teu entusiasmo. Nunca vi, com efeito, tantas perfeições reunidas num só jovem; contudo, digo-te que o molde em que o fabricaram foi usado para produzir uma cópia feminina, que é a princesa Budur, filha de Ghayur." Maimuna ficou furiosa e disse ao Afrit: "Voa rápido e traze a tal maravilha para cá, a fim de que possamos colocar os dois jovens lado a lado e compará-los." Dachnack apanhou seu chifre e sumiu no espaço como uma flecha. Uma hora depois, estava de volta carregando a princesa adormecida, vestida com uma simples camisola. E os dois feiticeiros levaram-na e estenderam-na ao lado do príncipe Kamar Az-Zaman. Maimuna teve que admitir que os dois eram iguais - menos nas partes que fizeram deles homem e mulher. Assim mesmo, cada Afrit afirmava ter ganho a aposta e, para resolver sua divergência, decidiram recorrer a um árbitro. Imediatamente apareceu um Afrit de horrível feiúra. Tinha seis chifres e três caudas; um de seus braços media dez metros de comprimento; o outro, apenas dois. E seu zib era quarenta vezes maior que o zib de um elefante. Seu nome era Fakrach Ibn Atrach, da linha de Abu-Hanfach. Convidado a indicar o mais belo dos dois, o gênio contemplou-os longamente e, constrangido, reconheceu: "Por Alá são iguais em beleza. A única diferença entre eles refere-se ao sexo. Se assim mesmo insistirem em descobrir alguma superioridade num deles, acordemo-los, enquanto permanecemos invisíveis, e aquele dos dois que manifestar maior paixão pelo outro terá reconhecido que os encantos do outro são mais poderosos." Os três concordaram e Dachnack, transformando-se numa pulga, mordeu Kamar Az-Zaman no pescoço. Kamar Az Zaman, meio-acordado após a irritação de seu pescoço, deixou a mão cair, e ela pousou na perna nua de Budur. O jovem abriu os olhos, mas eles voltaram logo a fechar-se, ofuscados que foram pela visão da beleza. Encantado, levantou a cabeça e contemplou longamente a desconhecida que dormia a seu lado. Depois, virou-se e exclamou: "Que traseiro glorioso E começou a acariciar-lhe o ventre, os seios, as pernas, as nádegas.
Devemos acrescentar que fora Dachnack quem provocara um sono profundo em Budur para permitir ao jovem manipulá-la à vontade. Kamar Az-Zaman aplicou seus lábios nos de Budur e procurou acordá-la, mas em vão. Concluiu: "Não posso esperar. Devo penetrar nela enquanto dorme." Mas pensou de repente que provavelmente o pai mandara colocar a jovem lá para provocá-lo, e que ele estava observando-o de algum esconderijo. Se tocasse nela, o pai o censuraria por não querer mulher para assegurar a sua posteridade, enquanto a queria para o divertimento e o vício. Virou, pois, as costas e voltou a dormir. Budur acordou finalmente e, já apaixonada por Kamar Az Zaman, pediu-lhe: "Por favor, abre os olhos, ó mestre da beleza. Só tu conseguiste acender um fogo em mim. Oh, por que não acordas? Acorda, senão vou morrer." E começou a acariciá-lo. De repente, sua mão tocou em algo que ela não conhecia. E a coisa começou a crescer em sua mão e a provocar nela novas sensações. Comparando seus dois corpos, compreendeu o papel daquele órgão e introduziu-o onde cabia. Os três Afarit acompanhavam tudo isso sem perder um gesto. Deixaram a operação chegar ao fim, depois aproximaram-se da cama, levantaram a moça sobre as espáduas, voaram com ela e a depositaram em sua cama no palácio de seu pai na China. E foram embora em direcções diferentes. Pela manhã, Kamar Az-Zaman acordou, a mente cheia das imagens da noite. Não encontrando a moça, teve a certeza de que se tratava de uma manobra do pai para levá-lo a casar-se. Chamou seu escravo e perguntou-lhe: "Aonde levaste a jovem, ó Sauab?" "Que jovem, meu senhor?" perguntou o escravo. "Hoje, não agüento tuas mentiras, velhaco abominável" retrucou Kamar Az-Zaman. Apanhou o escravo, estendeu-o no chão e pôs-se a bater nele, dizendo: "Vou bater em ti até que confesses onde está a jovem ou até que morras." Uma vez coberto de sangue e tendo um braço quebrado, o escravo gritou: Por favor, para de bater em mim, e confessarei tudo." Assim que o príncipe parou de bater nele, o escravo pediu licença para ir lavar o sangue e aproveitou para correr ao palácio e dizer ao rei, chorando, que Kamar Az-Zaman tinha enlouquecido. E descreveu ao rei e ao vizir as alucinações que presenciara.O rei, após insultar o vizir, responsabilizando-o por tudo, mandou-o verificar o que se passava. Kamar Az-Zaman, considerando o vizir de conluio com seu pai, naquela farsa, exigiu dele que lhe trouxesse a moça. Como o vizir negava tudo, o príncipe bateu nele também e lhe arrancou fios da barba. E o ministro voltou à presença do rei num estado lamentável, repetindo que Kamar Az-Zaman tinha enlouquecido. Insultando o novamente, o rei correu à torre para ver o filho. Achou-o tranqüilo, lendo o Alcorão. "Meu filho, disse o rei, por incrível que pareça, esse nojento escravo e esse vizir maluco alegam que enlouqueceste, pois os acusas de ter levado uma mulher que dormiu contigo aqui à noite." - Pai, respondeu o filho, não agüento mais essa farsa. Tenho provas do que digo. Primeiro, este anel que ela me deu em troca do meu. Depois, quando acordei, tinha sangue embaixo do umbigo, o sangue da virgem que se entregara a mim. A água com que lavei o sangue está ainda no banheiro. Fiquei tão apaixonado por ela que, se não conseguir encontrá-la e casar-me com ela, ó pai, ficarei doente até morrer. O rei examinou a água e convenceu-se da veracidade das palavras ao filho, mas não conseguia penetrar o mistério e muito menos adivinhar quem era a moça e onde procurar por ela. E o filho foi definhando. Na China, a noite estava acabando quando os três Afarit devolveram a dama Budur a seu leito. Ao acordar pela manhã, sorriu e com os olhos ainda fechados estendeu os braços para apertar seu amante, mas só abraçou o ar. Não encontrando ninguém na cama, emitiu um grito tão agudo que sua governanta e suas nove escravas acorreram para junto dela. "O que aconteceu, minha ama?" perguntou a governanta. - Perguntas como se não soubesses, astuciosa bruxa. Dize-me logo onde está o jovem mais belo que a lua que passou a noite comigo e a quem entreguei meu corpo, meu coração e minha virgindade. Essa declaração causou tamanho escândalo que toda a corte foi perturbada. O rei acorreu aos aposentos da filha e disse-lhe: "Minha querida, que alucinações tomaram conta de ti? Por que essa conduta indecorosa?" Por resposta, Budur rasgou a camisa, do pescoço até os pés, bateu nas faces e afundou num mar de lágrimas. O rei chamou então todos os sábios, astrólogos, doutores e alquimistas do reino e disse-lhes: "Minha filha Budur está em tal e tal estado. Quem conseguir curá-la a terá por esposa e herdará o trono depois de mim. Mas se aproximar dela sem a curar, terá a cabeça cortada." Ora, a princesa Budur tinha um irmão de leite, Marjan, que havia estudado a magia e a feitiçaria em livros hindus e egípcios. Visitou-a em segredo, munido de um astrolábio, de livros mágicos e de uma lâmpada, e entendeu que Budur estava apaixonada por um jovem desconhecido, e não tinha nada mais. O único problema era descobrir o jovem. Marjan, que amava a irmã, decidiu tudo abandonar e percorrer os países na esperança de localizar, por um acaso feliz, o homem que lhe devolveria a alegria de viver. Para ajudá-lo nas buscas, Budur entregou-lhe o anel de Kamar Az-Zaman que lhe ficara no dedo. Marjan viajou de cidade em cidade e de ilha em ilha, ouvindo em toda parte notícias e rumores sobre a estranha alienação mental da princesa Budur. Seis meses depois, chegou à terra de Kholidan e lá começou a ouvir a história de Kamar Az-Zaman, vítima de alucinações que pareceram a Marjan similares às da princesa Budur. Um dia, encontrou-se com o vizir do rei Chahriman, o qual, conversando com ele, ficou impressionado com seus conhecimentos em todos os campos, notadamente na medicina, e pensou: "Este moço será sem dúvida capaz de curar o filho de meu soberano." E convidou-o a visitar o palácio real. Na primeira entrevista que teve com Kamar Az-Zaman, Marjan convenceu-se de que ele era o jovem que sua irmã de leite procurava e que ela era a jovem que o príncipe procurava. Mostrou a Kamar Az-Zaman o anel de Budur. No mesmo instante, o príncipe curou-se completamente, e as cores da juventude voltaram-lhe às faces. Sem pedir licença ao rei, os dois jovens iniciaram imediatamente a viagem rumo à terra da princesa Budur. Quando lá chegaram, havia já quarenta cabeças penduradas na praça pública - as cabeças daqueles que haviam tentado curar a princesa sem o conseguir. Na entrada do palácio da princesa, os eunucos encarregados da segurança olharam com pena para esse novo pretendente, tão belo e que breve iria ter a cabeça cortada. Mas ele apanhou um papel e escreveu: "De Kamar Az-Zaman, filho do sultão Chahriman, para a princesa Budur, filha do rei Ghayur. Se tivesse que descrever toda a paixão de meu coração, não haveria bastante tinta no mundo. Contudo, se a tinta faltar, meu sangue escreverá o resto. Com esta mensagem, envio-te teu anel como prova indiscutível de que sou o jovem cujo coração transformaste em incêndio e em tempestade e que chora e clama por ti. Kamar Az-Zaman" O príncipe colocou o bilhete e o anel num envelope, selou-o e entregou-o ao eunuco. O escravo transmitiu-o a sua ama, dizendo: "Há um jovem astrólogo atrás da cortina, tão audacioso que alega ser capaz de curar as pessoas sem as ver. Enviou-te este papel." Mal a princesa abriu o envelope e reconheceu seu anel, gritou de alegria e, empurrando o eunuco, correu até o amante e lançou-se nos seus braços. Beijaram-se como dois pombos que havia sido separados pela maldade do destino O eunuco correu a informar o rei: ‘ aquele jovem astrólogo é mais sábio que todos eles. Curou a princesa Budur antes mesmo de a ter visto." O rei foi ao aposento da filha e, vendo que estava de fato curada, beijou-a entre os olhos, abraçou Kamar Az-Zaman e perguntou-lhe de onde vinha. "Venho de Kholidan. Sou o filho do rei Chahriman." E contou toda a
história. - Por Alá, comentou o rei, essa história é tão maravilhosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, ensinaria a prudência, a reflexão, mas também a audácia e a esperança. Mandou vir o cádi e as testemunhas e fez redigir o contrato de casamento entre Budur e Kamar Az-Zaman. A cidade foi decorada e iluminada durante sete dias e sete noites. O povo comeu, bebeu e se regozijou. E os dois enamorados amaram-se à vontade no meio dos festejos, agradecendo Àquele que os tinha feito um pelo outro. Numa noite, Kamar Az-Zaman viu seu pai num sonho, dizendo-lhe: "É assim que me abandonas, ó Kamar Az-Zaman? Vê , estou morrendo de saudade." Quando acordou, disse à princesa Budur: `Amanhã devemos tomar o caminho de meu reino onde meu pai está doente. Apareceu-me em sonho, e está esperando por mim, chorando." - Ouço e obedeço, disse Budur com meiguice. E logo foi procurar o rei. "Pai, disse-lhe, solicito tua compreensão para que acompanhe meu marido à terra de seus pais." - Não tenho objeção, respondeu o rei, desde que nos venhais visitar de ano em ano. A princesa beijou a mão do pai, agradeceu-lhe a bondade e chamou Kamar Az-Zaman, que fez o mesmo. Depois, viajaram até o reino de Chahriman onde foram recebidos com grandes festejos e regozijos. Cada ano, Budur, acompanhada do marido, ia visitar os pais. E todos viveram em perfeita harmonia até seu ultimo dia.


Talvez...




Um homem possuía um belo cavalo. Certo dia, o cavalo desapareceu e seus vizinhos sabendo da notícia, exclamaram:
- Que azar!
Mas o homem simplesmente respondeu:
- Talvez...
Passado algum tempo, o cavalo reapareceu, trazendo consigo três ou quatro cavalos selvagens tão ou ainda mais belos e formosos do que ele. Os vizinhos, tomando conhecimento do fato, disseram:
- Que sorte!
Mas o fazendeiro simplesmente respondeu:
- Talvez...
O filho mais moço do fazendeiro então resolveu domar um dos cavalos mas o cavalo era selvagem e em um movimento brusco arremessou o rapaz ao solo e este ao cair quebrou a perna. E os vizinhos imediatamente se dirigiram ao pai mencionando: - Que azar!
Mas o fazendeiro simplesmente respondeu:
- Talvez...
Estourou uma guerra naquela região e muitos pais sofreram pois quase todos os jovens, querendo ou não, foram injustamente enviados para a guerra, menos um, que foi dispensado por que estava com a perna quebrada: O filho do fazendeiro!




O Açor e o Príncipe - Lenda dos Três Milagres

O mito da Senhora dos Milagres nasceu na Aldeia Rica, em Celorico da Beira.

Em tempos que já lá vão, houve um rei espanhol que, desesperado por não ter filhos, invocou a bênção de uma Nossa Senhora dos Milagres, do sítio de Aldeia Rica, em Celorico da Beira, famosa por ter salvo um pastor e a sua vaca de morrerem afogados. O filho nascido deste milagre tornou-se inválido e em vão foram consultados sábios e físicos. A rainha resolveu pedir à Santa um segundo milagre e juntamente com o rei e o príncipe partiram em romagem à Virgem. Já perto de Aldeia Rica, o pequeno príncipe morreu e o rei desesperado culpou a rainha da iniciativa da viagem e decidiu enterrar o filho ali mesmo. A rainha não o consentiu e, apoiada na sua fé, quis levar o corpo do principezinho até junto da Virgem dos Milagres, depondo-o aos pés da imagem e ali ficando a rezar. O rei descrente resolveu ir caçar e quando lhe disseram que um dos caçadores tinha soltado um dos seus açores reais por achar que as aves tinham sido criadas por Deus para voarem e não para estarem presas. Quando soube o rei condenou-o à morte, ordenando que começassem por lhe cortar a mão que tinha soltado o açor. Quando o carrasco já tinha levantado o machado, o açor veio pousar na mão que ia ser cortada. O caçador gritou "Milagre!" e ao mesmo tempo chegou a rainha com o seu filho vivo, gritando ela também pelo milagre de Nossa Senhora. O rei libertou o caçador e todos os açores do reino e resolveu construir a igreja de Santa Maria dos Açores, que ainda hoje encerra três lindos painéis que representam "O Aparecimento da Virgem ao Rústico da Vaca", "O Açor Pousado na Mão do Caçador" e "O Filho do Rei, Já Ressuscitado".



O lobo pleiteando contra o raposo perante o macaco


Queixou-se uma vez o lobo
De que se via roubado,
E um mau vizinho raposo
Foi deste roubo acusado.

Perante o mono foi logo
O réu pelo autor levado,
E ali se expôs a querela
Sem escrivão, nem letrado.

"À porta da minha fuma.
Dizia o lobo enraivado.
Pegadas deste gatuno
Tenho na terra observado."

Dizia o réu em defesa:
"Tu, que és ladrão refinado!
O que, se vives de roubos.
Podia eu ter-te furtado?

— Furtaste! — Mentes! — Não minto!
Questões, gritos, muito enfado.
Já do severo juiz
Tinham a testa azoado.

Nunca Têmis vira um pleito
Tão dúbio, tão intrincado!
Nem que pelos litigantes
Fosse tão bem manejado.

Mas da malícia dos dois
Instruído o magistrado,
Lhes disse: "Há tempo que estou
De quem vós sois informado:

Portanto, em custas em dobro
Seja um e outro multado,
E tanto o réu como o autor,
Por três anos degredado".

Dando por paus e por pedras
O mono tinha assentado,
Que sempre acerta o juiz,
Quando condena um malvado.

Curvo Semedo (Trad.)

06/05/2008

As Cegonhas

UMA cegonha construíra seu ninho no telhado da última casa de um povoado. A mamãe cegonha estava sentada no ninho com seus filhotes, que assomavam seus biquinhos negros, pois ainda não haviam adquirido sua cor vermelha.
Papai-cegonha estava a pouca distância, na beira do telhado, em pé e entorpecido, com um pé recolhido em baixo do corpo, fazendo de sentinela. Parecia esculpido em madeira, devido à sua imobilidade.
– Minha esposa deve ficar satisfeita ao ver uma sentinela guardando seu ninho – pensava. – Ninguém sabe que sou seu marido e talvez todos pensem que recebi ordens para montar guarda aqui. Isso é muito importante.
E continuou de pé num só pé, porque as cegonhas são verdadeiras equilibristas.
Um grupo de garotos brincava na rua; e, ao ver a cegonha, um dos mais atrevidos, seguido pelos outros que lhe faziam coro, entoou uma cantiga a respeito das cegonhas, cantando – a meio de improviso:

Vela por teu ninho, pai-cegonha,
Onde te esperam três pequeninos.
O primeiro morrerá de uma estocada,
O segundo queimado
E o terceiro enforcado.

– Que dizem esses garotos? – perguntaram os filhotes. – Dizem que morreremos queimados ou enforcados?
– Não façam caso – respondeu a mamãe-cegonha. – Não os ouçam, pois ninguém lhes fará nenhum mal.
Mas os meninos continuavam cantando e apontando para as cegonhas; somente um, chamado Pedro, disse que era vergonhoso divertir-se à custa daquelas pobres aves e não quis imitar os companheiros.
Mamãe-cegonha consolou seus pequeninos, dizendo-lhes:
– Não se preocupem com isso. Vejam seu pai como está firme em cima de um só pé.
– Temos muito medo – replicaram os filhotes, escondendo as cabecinhas dentro do ninho.
No dia seguinte, quando os meninos voltaram a brincar, viram novamente as cegonhas e repetiram a canção.
– E. verdade que morreremos queimados ou enforcados? – perguntaram de novo os filhotes.
– De forma alguma! – replicou a mãe. – Vocês aprenderão a voar. Eu os ensinarei. Logo iremos para os campos em busca de rãs. Elas vivem na água e quando nos vêem, fazem muitos cumprimentos e começam a coaxar. Mas nós as engoliremos. Esse é um verdadeiro banquete, de que vocês vão gostar muito.
– E depois? – perguntaram os filhotes.
– Mais tarde todas as cegonhas do país se reúnem para as manobras do outono e então vocês terão que voar da melhor maneira possível, pois quem não puder voar se verá atravessada pelo bico do chefe. Assim sendo, vocês terão que ter muito cuidado para aprender o máximo que puderem, quando começarem os exercícios.
– De qualquer forma é bem possível que acabemos do jeito que dizem os garotos. Veja, eles voltam a cantar a mesma coisa.
– Ouçam a mim e não a eles – replicou secamente a mãe-cegonha. – Depois das grandes manobras, voaremos para os países cálidos, que ficam muito longe, para além dos bosques e das montanhas. Iremos para o Egipto, onde existem casas de três cantos, cujas pontas chegam até as nuvens; chamam-se Pirâmides e são muito mais antigas do que qualquer cegonha pode imaginar. Ali existe um rio que inunda as suas margens e toda a terra se cobre de lodo. E então podemos andar por ali comodamente, sem deixar de comer rãs.
– Oh! – exclamaram os filhotes.
– Sim, é esplêndido. Durante o dia inteiro não se faz mais do que comer. E enquanto nós estamos bem ali, neste país não há uma só folha nas arvores; e faz tanto frio que as nuvens se gelam em pedacinhos que caem ao solo.
Queria descrever a neve, mas não sabia fazê-lo melhor.
– E as crianças más não se gelam em pedacinhos? – perguntaram os filhotes.
– Não, mas lhes acontece algo parecido e têm de passar muitos dias presas em suas casas escuras; vocês, em troca, voarão para países distantes, recebendo o calor do sol entre as flores.
Passou-se algum tempo e os filhotes se desenvolveram bastante para ficarem em pé no ninho e olharem à sua volta. Papai-cegonha voava todos os dias de ida e volta ao ninho com rãs e serpentes, além de outros bons bocados que conseguia arranjar.
E era muito divertido observar as manobras que fazia para divertir seus filhos; virava a cabeça completamente em direcção à cauda e batia o bico como se fosse um chocalho. E lhes contava tudo que lhe acontecera nos pântanos.
– Bem, já é hora de que aprendam a voar – disse um dia sua mãe.
E os pequenos tiveram de ficar em pé, na beira do telhado. Quanto lhes custou conservar o equilíbrio batendo as asas e como estiveram a ponto de cair!
– Agora olhem para mim – disse a mãe. – Vejam como têm de sustentar a cabeça. E os pés se movem assim. Um, dois, um, dois. Desta forma poderão percorrer o mundo inteiro.
Logo voaram durante algum tempo e os pequenos deram uns saltos horríveis e caíram, porque seus corpos eram muito pesados.
– Não quero voar – disse um dos filhotes voltando para o ninho. – Não faço questão de ir para os países mais quentes.
– Quer gelar aqui, ao chegar o inverno? Prefere que venham os meninos e o queimem ou enforquem? Não me custará nada chamá-los. .
– Não, não! – respondeu assustada a pequena cegonha. E imediatamente voltou para a beira do telhado, onde já estavam os irmãos.
No terceiro dia todos voavam muito bem. Tentaram voar por mais tempo, porém, quando se esqueceram de bater com as asas, aconteceu a queda irremediável.
Os meninos que as observavam entoaram novamente a sua canção.
– Querem que desçamos voando e lhes arranquemos os olhos? – perguntaram as pequenas cegonhas.
– Não, deixem-nos em paz – disse a mãe. Prestem atenção ao que faço, pois isso é muito mais importante. Um, dois, três. Agora vamos voar para a direita; um, dois, três; agora para a esquerda e em volta da chaminé. Já foi bastante bem. Este último voo foi tão bom, que, como prémio, eu consentirei que me acompanhem ao pântano amanhã. Várias cegonhas distintas vão até lá com seus filhos, de modo que vocês devem esforçar-se para que os meus sejam os melhores de todos – Não se esqueçam de levantar as cabeças. Isso é muito elegante e confere um ar de extrema importância.
– Mas não nos vingaremos desses meninos maus? – perguntaram as pequenas cegonhas.
– Deixem que gritem o quanto quiserem; vocês voarão para a terra das pirâmides, enquanto que eles ficarão aqui gelando. Nessa ocasião não haverá por aqui nem uma folha verde nem uma maçã doce.
– Pois nós queremos vingar-nos – disseram as pequenas cegonhas.
Logo depois recomeçaram com os exercícios de voo.
Dentre todos os meninos da rua, nenhum caçoava das cegonhas com maior insistência do que o primeiro a cantar aquela canção burlesca. Era um garoto pequeno, que devia contar uns seis anos. É claro que as cegonhas lhe davam pelo menos cem anos, pois ele era muito mais corpulento do que seu pai ou sua mãe e elas não tinham a mínima ideia da corpulência que podem alcançar as pessoas maiores.
Reservavam pois a sua vingança para o menino que fora o primeiro a entoar aquela canção e que não deixava de repeti-la a todo instante. As jovens cegonhas estavam muito irritadas com ele e juraram vingar-se, o que só fariam no dia anterior à sua ida daquele povoado.
– Primeiro vamos ver como se comportam nas manobras. Se cometerem algum engano e o general se vir obrigado a atravessar-lhes o peito com o seu bico, os meninos da rua terão acertado na sua profecia. Veremos como se comportam.
– Você verá – responderam optimistas os filhotes.
E não pouparam esforços. Todos os dias praticavam, até que foram capazes de voar como seus próprios pais o faziam. Era um prazer observá-los.
Chegou o outono. Todas as cegonhas começaram a reunir-se, antes de empreenderem a viagem aos países quentes, nos quais passariam o inverno.
Aquelas sim é que foram verdadeiras manobras – Tiveram que voar sobre os bosques, cidades e povoados, para experimentarem as asas, pois iriam realizar uma longa viagem. As jovens cegonhas se comportaram tão bem, que receberam uma quantidade enorme de rãs e serpentes como recompensa. Receberam também óptima colocação e logo foram comer tranquilamente coisas que fizeram, pois seu apetite era enorme.
– Agora nos vingaremos – disseram.
– Sem dúvida – replicou sua mãe. – Agora vocês vão tomar conhecimento do meu plano e acho que gostarão dele. Sei onde fica o reservatório em que se encontram os pequenos humanos e onde ficam até que as cegonhas vão buscá-los para levá-los para a casa de seus pais. As lindas criaturinhas estão dormindo, sonhando coisas muito agradáveis que nunca mais voltarão a sonhar. Todos os pais desejam filhos e todas as crianças almejam ter um irmãozinho ou uma irmãzinha, destinados aos meninos que nunca cantaram essa canção contra nós ou que não tenham caçoado das cegonhas. Todavia, os que a cantaram, jamais receberão um irmão ou uma irmãzinha.
– E que faremos com esse menino mau que cantou a canção? – gritaram as pequenas cegonhas. – Que faremos com esse garoto? Porque devemos fazer algo para vingar-nos como desejamos.
– No reservatório há um menino morto. Morreu sonhando, sem se dar conta. Vamos buscá-lo e levá-lo para a casa desse menino, que chorará muito ao ver que lhe levamos uma criança morta. Em troca, vocês não se esquecerão do menino bom que diz: “É uma vergonha caçoar assim das cegonhas”. Para ele levaremos um irmão e uma irmã; e como ele se chama Pedro, você também – acrescentou, dirigindo-se a uma das cegonhas se chamará assim como o menino.
E foi tal como disse. E é por isso também, que, em nossos dias, todas as cegonhas levam o nome de Pedro.


Hans Christian Andersen




03/05/2008

Dom Aleixo

Nós éramos três irmãs,
Todas três de um igualhar;
Uma ensinava à outra
A coser e a bordar.
A mais pequena de todas
Se foi, por noite, a folgar
Com duas tochas acesas
À porta do laranjal.
Vestiu vestido de pajem
Que lhe ficava a matar,
Seu punhal de oiro na cinta,
Seu borzeguim de alamar.
Foi-se pela rua a baixo,
Tornou acima a voltar:
– «Das três irmãs que aqui moram,
A qual hei-de eu namorar?»
Nós de dentro do balcão,
A rirmos do seu brincar.
As tochas tinha apagado,
Vinha saindo o luar,
Passando junto da porta,
Que os olhos foi a baixar,
Viu estar um ermitão
Assentado no poial.
– «Que fazeis aqui, meu padre,
Que fazeis neste lugar?»
O ermitão, sem responder,
Começou-se a levantar...
Tão alto em demasia,
Alto, alto de pasmar
– «Se tu és coisa má,
Eu te quero esconjurar,
Ou se és alma que anda em penas
Te farei encomendar.»
– «Eu não sou a coisa má
Que tenhas de esconjurar;
Também não sou alma em penas
Para tu me encomendar:
Sou a alma de Dom Aleixo,
Que aviso te venho dar:
Sete te estão esperando
Na esquina, àquele portal,
E juram por Deus sagrado
Que a vida te hão-de tirar.»

– «Pois eu por esse lhe juro,
E pela virgem Maria
Que outros sete que eles foram,
Eu atrás não tornaria.
Oh lá, oh lá, cavaleiros,
Não levem de covardia,
Puxem por suas espadas,
Que eu puxarei pela minha.
O que não trouxer espada,
Eu esta lhe emprestaria,
Que eu cá com meu punhal de oiro
Defenderei minha vida».

Palavras não eram ditas,
O ermitão se descobria;
Foi a tomá-la nos braços
Com sobeja demasia...
Ela com seu punhal de oiro,
Que na cintura trazia,
Tal golpe lhe deu nos peitos,
Que ali por morto caía.
– «Quem te matou, D. Aleixo,
Quem te matou, minha vida?»
– «Mataste-me tu, senhora,
Que outro ninguém não podia.»
Ergue-te, Dona Maria,
Bem calçada e mal vestida,
Agora, por mais que chores
Tua alma fica perdida.

Romanceiro, Almeida Garrett