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10/05/2009

A urna das lágrimas



Era uma vez uma viúva, que tinha uma filhinha muito linda, a quem adorava sobre todas as coisas. Não se separava dela um só momento; mas um dia a pobre pequerrucha começou a sofrer, adoeceu e morreu. A desditosa mãe, que tinha passado as noites e os dias, sem repousar um momento, à cabeceira da filha, julgou endoidecer de mágoa e de saudades. Não comia, não fazia senão chorar e lamentar-se. Uma noite em que estava acabrunhada, chorando no mesmo sítio em que a filha tinha morrido, abriu-se de repente a porta do quarto e viu-a aparecer a ela, a sua querida filha, sorrindo com uma expressão angélica e trazendo nas mãos uma urna, que vinha cheia até às bordas.
— «Oh! minha querida mãe, disse-lhe ela, não chores mais. Olha, o anjo das lágrimas recolheu as tuas nesta urna. Se chorares mais, transbordará, e as tuas lágrimas correrão sobre mim, inquietando-me no túmulo e perturbando a minha felicidade no paraíso.
A pequenina desapareceu, e a mãe não tornou a chorar para a não afligir.


Guerra Junqueiro, Contos para a Infância


Boa Sentença



Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro dum alforge uma quantia em oiro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil réis de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em casa um honrado camponês levando o alforge. O nosso homem contou o dinheiro, e disse:
— Deviam ser oitocentos mil réis, que foi a quantia que eu perdi; no alforge encontro apenas setecentos; vejo, meu amigo, que recebeste adiantados os cem mil réis de alvíssaras: estamos pagos por conseguinte.»
O bom camponês, que nem por sombras tocara no dinheiro, não podia nem devia contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o juiz, que, vendo a má fé do avarento, deu a seguinte sentença:
— Um de vós perdeu oitocentos mil réis; o outro encontrou um alforge apenas com setecentos: Resulta daí claramente que o dinheiro que o último encontrou não pode ser o mesmo a que o primeiro se julga com direito. Por consequência tu, meu bom homem, leva o dinheiro que encontraste, e guarda-o até que apareça o indivíduo que perdeu somente setecentos mil réis. E tu, o único conselho que passo a dar-te, é que tenhas paciência até que apareça alguém que tenha achado os teus oitocentos mil réis.

Guerra Junqueiro, Contos para a Infância


A Boneca



Não há muitos anos, mas ainda não era a Cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infância folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe enegreça o espírito a vista dos dois monumentos, que a meu ver simbolizam as duas mais horríveis calamidades, que podem aniquilar um homem—o hospital e a cadeia!—ainda não há muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da feira, divertindo-me a meu modo.
Cansado das inúmeras figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar por findo o espectáculo, quando novos personagens me chamaram a atenção.
Eram os meus vizinhos ricos.
Aqui é preciso uma rápida explicação.
Das famílias da minha vizinhança, só conheço três.
Qual destas três famílias será mais feliz?...
Pelo que tenho notado, não têm que invejar umas às outras.
São todas felizes; cada qual a seu modo.
Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.
Parou o carro, o criado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depô-la no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa, para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca onde eu estava.
Não havia ali segredo a surpreender.
Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer àquela formosa criança a manifestação de qualquer desejo.
No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.
Tinha o necessário para montar completamente a casa duma boneca... rica.
Faltava apenas a dona da casa—a boneca.
Todo risos e atenções, o lojista apresentou o que tinha de melhor.
Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma magnífica boneca de dois palmos de altura, com cabelo em bandeaux e olhos azuis.
Uma boneca como as outras: cabeça e colo de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.
Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribo de crianças, que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.
Alguns deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caídos do céu sobre um monte de lama.
São os meus vizinhos pobres.
A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.
É como se costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.
A filha que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.
São os meus vizinhos remediados.
A terceira é a dos meus vizinhos ricos.
Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do estado—nada falta àquela ditosa gente!
Compõe-se igualmente de marido, mulher e filha.
Que formosa criança!... Terá oito anos.
Franzina e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas duma cor de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado—provavelmente ainda a crescer—que há-de um dia ter o direito de lhas cobrir de beijos.
Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este mudou todas aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.
A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática criança.
Saí dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas considerações, sugeridas pela quase indiferença, com que aquela menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.
Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de pano, horrível artefacto português, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor-de-rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!
Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.
Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam os ralhos da mãe.
Quando, no dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.
Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata não se via ninguém—estava a pequena na mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com auxílio duma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos brancos.
Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.
— «Aí está a tua caricatura, minha feiticeira!...»—disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»
Retirei-me da janela.
Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.
A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia três e quatro vezes!
Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!
Chamava-lhe sr.a D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava finalmente com a boneca um destes diálogos de senhoras da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.
Um dia,—estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos—ouvi um grito de susto.
Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.
Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janela.
O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:
«Não atire!... Dê-ma.»
Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não dera fé até então.
Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde vinha a súplica.
Vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:
— «Já não presta!... Está esmurrada!...»
— É o mesmo!... Dá-ma?...—bradou a outra, cujos olhos brilhavam de cobiça.
— «Dou...»—volveu a rica, encolhendo novamente os ombros.
E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes da rua.
Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe a que ela ainda não podia acreditar, que fosse sua!
Por espaço de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.
A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em ela se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência! Chamavam-lhe sr.a D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos, do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas finalmente, completamente estranhas para ela!
E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!
Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido, que trouxera no corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.
Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja duma adeleira.
Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações do moiré, até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa—no Inverno!—xaile e manta na cabeça.
Muito mal lhe ficava aquilo!... Àquela boneca custava-lhe de certo o ver-se tão mal arranjada.
Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e balbuciei:
— É justo!... Cada qual segundo as suas posses.»
Por esse tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.
O honrado homem soubera, que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião, para me pedir desculpa.
Vendo-me conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.
Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.
Chama-se Maria.
Por um destes acasos da Providência, que parece às vezes comprazer-se em criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.
Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei deveras pasmado quando o pai ma apresentou.
E bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta é a minha Maria!»
E tinha razão!
Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo era.
— É quem vale à mãe!...—acrescentou o velho.»—Ali, onde a vê, faz o serviço duma mulher!... Há seis meses, quando a minha santa esteve doente—bem pensei que não arribasse!—a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem!?... Olhe que aquela pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a queria deixar!...»
E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.
Fazia gosto ver aquela pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.
Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias à pequena.
Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.
— Eu conheço aquela boneca!...—disse eu de mim para mim.
E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:
— Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...
Foi ali a menina da vizinha!—respondeu a pequenita, corando de prazer.
Era escusado dizer-mo.
Maria pegara na boneca e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.
De tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se com ela.
— Quem te viu e quem te vê!...—pensava eu.
Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lha podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!
Roçada por aquelas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como péla, submetida a torturas, era, ainda assim, singularíssimo o aspecto da triste!
Dava ares duma duquesa que, por necessidade, houve sido levada a fraternizar com o povo.
A mísera mudara mais uma vez de nome!...
De sr.a D. Ana passara a ser sr.a Rosinha e tratavam-na por vossemecê.
Trajava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço na cabeça.
Era um prazer para mim o escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.
Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que mais familiares eram à pequena.
Outra vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.
Já o leitor vê que, apesar da bondade Maria, deixara de ser feliz.
Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!
Desmaiada de cores, quase perdido o cabelo, semi-apagados os olhos, desfeito o carmim dos lábios, a boneca não prometia longa duração.
Foi este pelo menos, o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona que o seu destino lhe dera.
Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!
Um dia chovia a cântaros!—o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.
Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...
Olhei... Era a boneca!...
A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e, depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!
Será pieguice, será o que o leitor quiser; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.
Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:
— Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?
— Não fui eu...—balbuciou a pequena, chorando.—Foi ali o Joaquim!...
— E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...
— Ora!...—respondeu o garoto com enfado.—Ora!... Estava velha... e feia!...
Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.
Pobre boneca!


Guerra Junqueiro, Contos para a Infância


Como um Camponês aprendeu o Padre-nosso






Tinha um coração duro, e não era esmoler. Foi-se confessar uma vez, e o confessor deu-me por penitência rezar sete vezes o Padre-Nosso.
– Não o sei, e nunca o pude aprender, respondeu o aldeão.
– Pois nesse caso, tornou o confessor, imponho-te por penitência dar a crédito um alqueire de trigo a todas as pessoas que te forem pedir da minha parte.
No dia seguinte de manhã apresentou-se o primeiro pobre.
«Como te chamas? perguntou-lhe o camponês.»
«Padre – Nosso – Que – Estais – No – Céu, respondeu o pobre.»
«E o teu apelido?»
«Seja – Santificado – O – Vosso – Nome.»
E o pobre foi-se embora com o seu alqueire de trigo.
Ao outro dia chega segundo pobre.
«Como te chamas?»
«Venha – A – Nós – O – Vosso – Reino.»
«E o teu apelido?»
«Seja – Feita – A – Vossa – Vontade.»
E partiu com o seu alqueire de trigo.
Veio terceiro pobre.
«Como te chamas?»
«Assim – Na – Terra – Como – No – Céu.»
«E o teu apelido?»
«Dai-nos – Hoje – O – Pão – Nosso – De – Cada – Dia.»
E levou o seu alqueire.
Vieram ainda dois pobres sucessivamente, e passou-se tudo da mesma forma até chegar ao Amém.
Pouco tempo depois o confessor encontrou o aldeão.
– Então já sabes o Padre-Nosso?
– Não, senhor cura, sei só os nomes e apelidos dos pobres a quem emprestei o meu trigo.
– Quais são? tornou o padre.
E o aldeão enumerou-mos a seguir, e pela ordem em que cada um se tinha apresentado.
– Já vês, disse o confessor, que não era muito difícil aprender o Padre-Nosso, porque já o sabes perfeitamente.

Guerra Junqueiro, Contos para a Infância

09/05/2009

Sexta noite

E QUANDO FOI NA SEXTA NOITE
Sherazade disse:

Contaram-me, Rei, que quando o pescador disse ao génio “Se tu me tivesses conservado, eu teria te conservado, mas tu não quiseste senão a minha morte, e eu te darei a morte, aprisionado nesse vaso, e te deitarei ao mar! – então o génio proclamou: “Imploro, por Alá, que me poupes, sem me censurais demais pela minha acção, porque eu, se fui criminoso, sê tu benevolente! Liberta-me e te serei de grande utilidade num negócio que te fará rico para sempre.” O pescador, após ter assegurado a boa fé do ifrit, abriu o vaso. O ifrit tornou-se novamente o génio de espantosa feiúra, e deu um pontapé no vaso, atirando-o ao mar. O pescador, ao ver aquilo, lembrou ao génio: “Tu me prometeste e juraste que não me trairias. Se me traíres, Alá te punirá.” O génio, ao ouvir aquilo, riu-se e disse ao pescador: “Segue-me.” Os dis andaram até saírem da cidade, chegando num vaso ermo, no meio do qual existia um lado. O ifrit então ordenou ao pescador que atirasse sua rede e pescasse. O pescador olhou para a água e viu peixes brancos, vermelhos, azuis e amarelos. Tendo retirado a rede, viu ter pego quatro peixes, um de cada cor. O ifrit então orientou: “Dá esses peixes ao sultão e ele te enriquecerá. Agora, por Alá, recebe meu pedido de desculpas!
Quanto a ti, virás todos os dias pescar neste lago, mas uma vez só por dia. E agora, que Alá te tenha sob sua protecção.” E isso dizendo, o ifrit bateu os dois pés na terra, que se fendeu, engolindo-o.
O pescador voltou a cidade, maravilhado com o que tinha acontecido. Depois de passar em casa para deixar a rede, colocou os peixes numa panela de barro e levou-os ao sultão, que ficou maravilhado com a qualidade dos peixes. Disse então o sultão: “Que esses peixes sejam entregues à nossa cozinheira.” Assim o vizir ordenou-lhe que fritasse os peixes, dizendo-lhe: “Faz ver-nos hoje a prova de tua arte culinária, porque o sultão acaba de receber um homem que lhe trouxe presentes!” Tendo dito isso, o vizir se voltou, depois de ter feito suas recomendações. O rei lhe ordenou que desse ao pescador quatrocentos dinares. O pescador voltou para casa todo contente, indo comprar para os filhos tudo que podiam necessitar. E eis a história quanto ao pescador.
Quanto ao que se refere à cozinheira, ela tomou os peixes, limpou-os e arranjou-os na frigideira; deixou fritar de um lado e voltou-os para o outro lado. De repente, a parede da cozinha se abriu e por ela entrou uma jovem de talhe esbelto, faces cheias e lisas, qualidades perfeitas, pálpebras pintadas de kajal negro, rosto gentil, corpo gracioso; tinha sobre a cabeça uma echarpe de seda, brincos, braceletes e nos dedos anéis com pedras preciosas. Aproximou-me metendo uma varinha de bambu na frigideira, dizendo: “Ó peixe, tu continuarás a manter tua promessa?” Vendo aquilo, a escrava desmaiou e a jovem repetiu a pergunta pela segunda e terceira vezes. Então, todos os peixes levantaram a cabeça de dentro da frigideira e disseram: “Oh, sim! Sim!” Depois entoaram em coro:

Se deres um passo atrás
Havemos de te imitar
Se cumpres a promessa
A nossa será cumprida
Mas se tentas escapar
Insistiremos até
Que te tenhas decidido!

A essas palavras a jovem revirou a frigideira e saiu por onde havia entrado e a parede da cozinha se uniu de novo. Quando a escrava voltou a si do desmaio, viu que os peixes tinham virado carvão. E falou consigo mesma: “Pobres peixes! Mal começou o ataque e eis que eles debandam!” Enquanto ela se lamentava, chegou o vizir que lhe disse: “Leva os peixes ao sultão!” A escrava corou e contou ao vizir a história e o que seguiu, o que o deixou muito espantado. E disse: “É realmente uma história muito estranha!” e mandou procurar o pescador, dizendo-lhe: “É preciso que me tragas quatro peixes iguais aos que trouxeste da primeira vez!” O pescador foi ao lago e pegou os quatro peixes, levando-os ao vizir, que os levou à cozinheira, dizendo-lhe: “Frita-os na minha presença para que eu veja o que há nessa história.” E a mulher preparou os peixes. Mal haviam passado alguns momentos e eis que a parede se abre e a jovem aparece, vestida sempre com as mesmas vestimentas e trazendo a vareta na mão. Meteu a veta frigideira, dizendo: “Ó peixe, tu continuarás a manter tua promessa?”
Então, todos os peixes levantaram a cabeça de entoaram em coro:

Se deres um passo atrás
Havemos de te imitar
Se cumpres a promessa
A nossa será cumprida
Mas se tentas escapar
Insistiremos até
Que te tenhas decidido!

- Nesse momento, Sherazade, vendo aparecer a manhã, cessou as palavras.

Pujarini


Judite


Os filhos de Israel estavam sofrendo muito nas mãos dos assírios, um povo guerreiro e muito perigoso, que exigia dos israelitas, também chamados israelenses, total submissão. Os israelenses recusaram-se a ceder diante de tal prepotência e fortificaram-se com trincheiras na cidade de Betúlia.
Porém, Holofernes, o mais cruel general dos assírios, jurou vingança a este povo. Armando-se com mais de cento e vinte mil infantes e vinte e dois mil cavaleiros, tomou as fontes que abasteciam a cidade, deixando o pobre povo israelense sofrer pela fome e sede.
O povo sedento procurou por Ozias, comandante de Betúlia, pedindo-lhe uma solução. Então ele lhes propõs que esperassem por mais cinco dias; aí, caso não viesse a misericórdia de Deus, se renderia ao inimigo assírio.
Isso chegou aos ouvidos de Judite, uma bela viúva, muito estimada porque tinha grande temor a Deus. Judite ficou sabendo que Ozias tinha prometido entregar a cidade dentro de cinco dias. Mandou chamá-lo e disse; - "Vou provar-lhe que Deus não abandona seu povo".
Ozias e os anciãos pediam então a Judite que rogasse a Deus por todos, pois ela era uma mulher santa e piedosa. Judite rezou a Deus, levantou-se, chamou a sua criada e saiu de Betúlia e se encaminhou, orando, para o acampamento inimigo.
Chegando lá foi falar com Holofernes, o comandante supremo do exército, pedindo que ela fosse protegida do castigo destinado a seu povo. Ouvindo isto, Holofernes deu ordem para que ninguém a perturbasse e, dias depois, convidou-a para um banquete.
Durante o banquete, Holofernes bebeu até ficar embriagado, caindo num sono profundo. Judite agiu rápido. Tirou-lhe a espada e cortou-lhe a cabeça.
Depois, de surpresa, os israelitas atacaram os assírios, que estavam atordoados com a morte de seu general. Os assírios foram então derrotados definitivamente. O povo de Betúlia elegeu Judite sua heroína, cantando;
"Tu és a glória de Jerusalém, tu és a alegria de Israel, tu és a honra do nosso povo".

08/05/2009

A ave e o poço





Era uma vez... uma ave com plumagem cintilante e asas robustas que passava os dias planando sobre as árvores, deliciando-se com sua liberdade.
Um dia ela caiu num poço desactivado.
O poço era escuro e profundo, mas estava seco e a ave não se machucou. Ela foi esvoaçando para baixo até atingir o fundo e lá permaneceu, nada fazendo para tentar escapar, mergulhada em auto comiseração.
- Certamente morrerei aqui em baixo - lamentou-se - que ave pobre, desgraçada eu sou. O que fiz para merecer esse fim?
Quanto mais ela reflectia sobre seu suplício, mais se convencia de que alguém, que não ela, era culpado por ela estar no fundo do poço.
- Não é culpa minha. É culpa do idiota que inventou de cavar esse poço - disse - alguém deveria ter coberto a superfície, assim eu não teria caído aqui dentro. Por que ninguém me avisou do perigo de voar baixo demais perto de poços abertos? Nada disso é culpa minha.
E se pôs a pedir socorro aos passantes.
- Por favor me ajudem, socorro! Socorro! Socoooooorro! Por favor, tirem-me daqui!
As pessoas olhavam para dentro do poço.
- Você tem asas, pode voar - diziam - por que você não se ajuda?
- Se eu tentar voar aqui posso me machucar - lamuriava ela - as paredes do poço vão arranhar minhas asas. Vocês têm de fazer algo para me tirar daqui.
As pessoas respondiam:
- Há muito espaço para você voar, se você tomar cuidado. Suas asas estão em forma. Você não se feriu. Você pode sair daí se realmente QUISER.
A ave recusava-se a tentar. Ficou encolhida no fundo do poço, lamentando-se, gemendo alto para que todos ouvissem.
- Ninguém liga para mim, esse é o problema. As pessoas são cruéis, não têm coração, ninguém quer saber de ajudar uma pobre criatura como eu.
As reclamações da ave atraíram tanta compaixão que, sem se dar conta, ela começou a gostar de morar no poço.
Cada vez menos pensava em escapar, até que nem mais lhe passava pela cabeça tentar.
Suas asas atrofiaram e nem ela nem ninguém mais poderia ajudá-la.
E assim... alvo de pena de todos e de si própria, a ave viveu o resto da vida presa e infeliz no fundo do poço.




07/05/2009

Perfeição das obras de Deus

A filha.—Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.
A mãe.—Vou-te dar outra.
A filha.—Como se fazem as agulhas, mamã?
A mãe.—Vê se adivinhas.
A filha.—Não sei, mamã.
A mãe.—Conheces os metais?
A filha.—Conheço mamã; tenho lá dentro muitos bocadinhos dentro de uma caixa.
A mãe.—Ora muito bem, diz-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de mármore?
A filha.—Oh! não; são de metal; mas de que metal?
A mãe.—Antes de perguntar qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.
A filha.—Ora espere!... uma agulha é de metal: não é de prata, porque não é branca; não é de oiro, porque não é de um lindo amarelo muito brilhante; não é de cobre, porque não é de um amarelo muito feio, que cheira mal... Então é de ferro, mamã?
A mãe.—Adivinhaste.
A filha.—Mas, mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.
A mãe.—É que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já se não chama ferro, é aço.
A filha.—Bem, as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é que as fazem.
A mãe.—É impossível, não és capaz disso; mas hei de levar-te a uma fábrica onde se fazem agulhas. Hás-de vê-las fazer, e hás-de gostar muito.
A filha.—Tinha vontade de saber como se fazem todas as coisas de que nos servimos.
A mãe.—Tens razão; é uma vergonha ignorá-lo.
A filha.—Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.
A mãe.—Olha, aí tens o meu estojo.
A filha.—Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há-de ser necessária para fazer uma coisinha tão delicada!
A mãe.—Lembras-te de ver na feira um carrinho de marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de oiro?
A filha.—Lembro, mamã; era tão bonito!
A mãe.—Li num jornal alemão que um operário chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro deste copo havia mais doze...
A filha.—Que pequeninos deviam ser os doze copos para caberem num grão de pimenta!
A mãe.—E ainda não é tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no pé.
A filha.—Que vontade eu tinha de ver isso!
A mãe.—Tens razão de te admirares da habilidade dos homens. É efectivamente espantoso, e deve saber-se, o modo porque se fabricam certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de admiração.
A filha.—Quais, mamã?
A mãe.—Já to digo. (Levanta-se.)
A filha.—Que quer, mamã?
A mãe.—Quero que vejas o microscópio de teu papá.
A filha.—Pois sim; eu gosto de olhar pelo microscópio.
A mãe.—Este é magnífico, e aumenta prodigiosamente os objectos. Vais ver a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina, lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?
A filha.—Meu Deus, que coisa tão feia! Que agulha tão grosseira!
A mãe.—Vês-lhe buracos, riscos, asperezas, não é verdade?
A filha.—Parece um prego muito grande e muito mal feito.
A mãe.—Pois todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá por elas.
A filha.—O operário que fez esta agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscópio.
A mãe.—Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.
A filha.—O quê, mamã?
A mãe.—O aguilhãozinho de uma abelha.
A filha.—Oh! que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio há de acontecer o mesmo que com a agulha.
A mãe.—Pronto: olha.
A filha (olhando).—É esquisito, mamã!
A mãe.—Então?
A filha.—Aumentou, aumentou como a agulha, mas não é áspero, pelo contrario, é perfeitamente liso... A agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãozinho da abelha tem uma ponta tão fina como um cabelo. Porque será isto, mamã?
A mãe.—É porque o operário que fez este aguilhão é muito mais hábil do que o que fez a agulha.
A filha.—Quem é esse operário tão hábil?
A mãe.—É o mesmo que fez o céu, os astros, a terra, as plantas e as criaturas.
A filha.—É Deus.
A mãe.—Exactamente. Pois não é Deus que fez as abelhas e todos os animais?
A filha.—De certo.
A mãe.—Foi ele por conseguinte que fez o aguilhão desta abelha; e aí tens porque o aguilhão é superior à agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo microscópio. Aqui está um pedacinho de musselina finíssima. Olha pelo microscópio; o que é que vês?
A filha.—Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal feita.
A mãe.—Aqui tens agora um pedacinho de renda delicadíssima.
A filha.—Essa estou bem certa que há de ser linda, mesmo vista pelo microscópio.
A mãe.—Então?
A filha.—É horrorosa... Parece feita de pelos grosseiros com grandes buracos desiguais.
A mãe.—As obras do homem são todas assim.
A filha.—Oh! mamã, vejamos agora as obras de Deus.
A mãe.—Sabes o que é isto?
A filha.—Sei, mamã, é um casulo de bicho de seda.
A mãe.—Os fiozinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.
A filha (olhando pelo microscópio).—Não, mamã; os fios são todos iguais, e o casulo é sempre muito liso, muito brilhante.
A mãe.—É porque é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há sobre este papel?
A filha.—Pontinhos feitos com tinta e manchazinhas redondas feitas também com tinta.
A mãe.—Estes pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?
A filha.—Sim, mamã, perfeitamente redondos.
A mãe.—Vê-os agora ao microscópio.
A filha.—Oh! já não são redondos, são todos desiguais.
A mãe.—Tira o papel; vejamos a obra de Deus. É uma asa de borboleta; vês que está mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscópio; o que é que vês?
A filha.—Vejo a mesma coisa que via sem o vidro, só com a diferença que agora é maior. Que belas que são as obras de Deus!
A mãe.—Merece bem a pena estudá-las.
A filha.—De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as obras dos homens.
A mãe.—E sempre e em tudo hás-de encontrar defeitos nas obras do homem, enquanto que as obras de Deus, quanto mais se observam, mais perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira é que Deus merece tanto a nossa admiração como o nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente belo, perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias de imperfeições, se as compararmos com as obras do Criador.


Guerra Junqueiro, Contos para a Infância

04/05/2009

Toguênkyo





Antigamente no Japão havia muitos vendedores ambulantes que levavam os produtos até as mais distantes aldeias. Certa ocasião um desses vendedores acabou encontrando um local muito bonito.
- “Nossa, isso parece o Toguenkyô, o Paraíso Terrestre! Devo estar sonhando” - disse maravilhado.
Surgiram então quatro lindas garotas que cercaram o moço que deitara na relva. As moças moravam num enorme palácio com a mãe, a senhora Shizen, que o convidou a passar a noite lá. Na manhã seguinte dona Shizen fez uma surpreendente proposta ao vendedor.
- O senhor já deve ter percebido que neste palacete só vivem mulheres. Eu e minhas quatro filhas: Haruko, Natsuko, Akiko e Fuyuko. Gostaria que ficasse a vontade pelo tempo que quiser. Mais que isso, gostaria que casasse com uma das minhas filhas.
O jovem que sempre foi uma pessoa pobre e solitária aceitou na hora. Sua vida mudou completamente. Era feliz. Vivia um sonho. Numa manhã dona Shizen anunciou que iria ao Hanami (ritual de apreciação das flores de cerejeiras), e pediu para que ele ficasse tomando conta do palácio. Antes de sair, porém, só fez uma recomendação:
“Se ficar entediado de ficar sozinho, pode abrir e espiar um pouco, três dos quatro portões que existem salão principal, para se distrair. Porém o quarto portão você não deve abrir em hipótese alguma. Não está autorizado. Promete que não vai abrir?”.
- De jeito nenhum.
No palacete Shizen havia um salão central onde haviam quatro portões fechados. O rapaz sempre teve curiosidade em saber o que haveria por atrás daqueles portões, porém como lhe haviam dito para não abrir, nunca tinha feito. Agora, pela primeira vez a dona da casa tinha autorizado que ele abrisse pelo menos três dos quatro portões. Sua curiosidade foi aguçada. Então se dirigiu ao salão central do palacete e abriu o primeiro portão. O primeiro impacto foi um enorme clarão. Depois, as vistas foram acostumando e percebeu nitidamente uma paisagem de praia. O mar estava azul como só acontece no verão e uma brisa suave soprou amenizando o calor. O rapaz ficou admirando a paisagem durante alguns minutos, teve vontade de caminhar descalço pela praia, mas a curiosidade de ver o que existe atrás de outros portões o deteve. Fechou o primeiro portão e abriu o segundo.Novamente um enorme clarão e as vista foram acostumando e o moço pode vislumbrar uma maravilhosa paisagem de outono. As folhas de momiji (acer) tingidas de amarelo-avermelhado cobriam matas e montanhas apresentando um cenário outonal de incrível beleza.
- Dá vontade de escrever uma poesia, pintar um quadro, plantar um bonsai! Pensou o rapaz.
Pouco depois, quando abriu a terceira porta, deparou com uma branca paisagem de neve que cobria campos, rios e montanhas. Apesar do frio invernal havia ali, uma vista de incrível beleza. Sendo aquele o último portão que ele estava autorizado a abrir, pensou em ficar mais tempo apreciando os flocos de neve que caiam mansamente. Porém como a proibição é a mãe da curiosidade, num impulso rápido, o moço fechou o terceiro portão e se dirigiu diante do quarto portão.Vacilou por um momento ao lembrar as palavras de dona Shizen que o proibiu veementemente de abrir aquele portão. O moço até sabia o encontraria ali. Estava começando a entender que atrás de cada portão estava a alma de cada uma das filhas de Shizen (Natureza): Haruko (Filha Primavera), Natsuko (Filha Verão), Akiko (Filha Inverno) e Fuyuko (Filha Inverno). Entendeu porque mesmo abrindo o portão de três delas, apreciando a beleza da alma delas, nelas não permaneceu. Ele havia casado com Haruko, cujo portão não lhe fora autorizado abrir.Com a mão tremendo na maçaneta, o jovem lutou consigo mesmo e foi vencido pela curiosidade. Abriu o quarto portão. Após um intenso clarão, tornou visível a paisagem que já esperava encontrar. Cerejeiras cobertas de flores e cantos de rouxinóis. Era uma visão maravilhosa, idêntica a de quando ele ali chegou, após estar perdido no bambuzal. Ele adentrou a paisagem e os rouxinóis param de cantar. Em seguida saíram voando e o moço pode ver que eram quatro os pássaros que antes estavam cantando. Lamentou que as aves tivessem se retirado e nesse momento ouviu a voz da senhora Shizen, que vinha de algum lugar da bela paisagem:- Vejo que você escolheu o caminho de volta a sua aldeia.
- Eu não quero voltar para minha aldeia. Quero ficar no palacete Toguenkyo. Respondeu o Rapaz.- Ao adentrar aquele portão você caminhou em direção contrária de onde veio, portanto está caminhando de volta para sua aldeia. Nós gostaríamos que você ficasse em Toguenkyô, por isso aconselhamos a não abrir o quarto portão. Porém você quebrou a promessa e escolheu o caminho de volta. A escolha foi sua por isso nada podemos fazer agora.
- Por favor, gostaria pelo menos de saber quem são vocês. Implorou o rapaz.
- Sou o espírito da mata, das montanhas, dos seres vivos e dos fenômenos naturais. Minhas filhas são espíritos das estações do ano que transformadas em rouxinóis vem anualmente na cantar primavera, em louvor as cerejeiras. Como você não cumpriu o prometido, e as viu em forma de rouxinol, quebrou o encanto. Para você o sonho acabou. Adeus.
No instante seguinte a bela paisagem primaveril desapareceu por completo e o vendedor estava numa clareira de um bambuzal. Era uma paisagem melancólica, o vendedor sozinho com sua pesada caixa de mercadoria nas costas.

Lenda do Japão


Dom João

Lá das bandas de Castela
Triste nova era chegada:
Dom João que vem doente,
Mal pezar de sua amada!
São chamados três doutores
Dos que têm mais nomeada:
Que, se algum lhe desse vida
Teria paga avultada.
Chegaram os dois mais novos,
Dizem que não era nada;
Por fim que chega o mais velho,
Diz com voz desenganada:
- «Tente três horas de vida,
E uma está meia passada;
Essa é para o testamento:
Deixar a alma encomendada!
A outra é para os sacramentos,
Que inda é mais bem empregada.
Na terceira as despedidas
Da vossa dama adorada.»
Estando nestas conversas,
Dona Isabel que é chegada.
Ergueu os olhos para ela
Com a vista já turvada:
- «Ainda bem que vieste,
Minha prenda desejada,
Que tanto queria ver-te
Nesta hora minguada!»
- «Tenho fé na Virgem santa,
Nela venho confiada,
Que me há-de ouvir e salvar-te,
Que o teu mal não será nada.»

- «Oh! que se eu chegar a erguer-me,
Minha rosa namorada,
No vaso deste meu peito
P’ra sempre serás plantada,
C’as bênçãos de um arcebispo
E de água benta regada
Co’a estola da santa igreja
Ao meu coração atada.»

Estando nestas conversas,
Sua mãe que era chegada:
- «Que tens tu, filho querido
Desta alma amargurada?»
- «Tenho, mãe, que estou morrendo,
Que esta vida está acabada;
Com só três horas por minhas,
E uma já meio passada.»
- «Filho de minhas entranhas,
Nesta hora minguada
Lembra-te se algo deves
A alguma dama honrada.»
- «Minha mãe, que devo, devo...
E Deus me não peça nada!
Dona Isabel que em má hora
Por mim fica difamada.
Mas deixo-lhe mil cruzados
Para que seja casada.»
- «A honra não se paga, filho;
Mil cruzados não é nada.»
- «Já lhe deixo mais duzentos
E a cruz de minha espada.»
- «A honra não se paga, filho;
Os cruzados não são nada.»
- «Deixo-a a estes três doutores
Muito bem encomendada;
E a vós, minha mãe, vos peço
Que a tenhais bem guardada.
O que com ela casar
Tem uma vila ganhada;
O que lhe disser que não
Tenha a cabeça cortada.»
- «A honra não se paga, filho,
Nem com terras é comprada:
Se a essa dama lhe queres,
Não a deixes desonrada!»
- «Pois fique esta mão já fria
Na sua mão adorada:
De D. João é viúva,
Condessa será chamada.»


Romanceiro, Almeida Garrett



03/05/2009

Quinta noite

E QUANDO FOI A QUINTA NOITE
Sherazade disse:

Contaram-me, ó Rei, que o rei Iunan disse ao seu vizir: “Ó, vizir, tu deixaste a inveja entrar em ti contra o médico, e tu queres que eu o mate, para que em seguida me arrependa, como se arrependeu Sindabad, depois de ter matado o falcão!” O vizir respondeu: “E como foi que isso aconteceu?”
Então o rei Iunan contou:

O FALCÃO DO REI SINDABAD

“Contam que havia um rei entre os reis de Furs, que era grande amigo de divertimentos, de passeios e de toda a espécie de caça. Possuía um falcão educado por ele próprio, e que não o abandonava nem de dia nem de noite, porque mesmo durante a noite o rei o trazia preso ao seu punho. E quando ia à caça, levava consigo, e tinha mandado pendurar ao pescoço da ave uma vasilha de ouro, onde lhe dava de beber. Um dia em que o rei estava em seu palácio, viu, subitamente, chegar o seu Intendente, encarregado das aves de caça, que lhe disse: “Ó rei, estamos justamente na época das caçadas!” Então o rei fez seus preparativos para a partida, e tomou o falcão sobre o punho. Partiram e chegaram a um vale onde estenderam as redes de caça. De repente, uma gazela tombou na rede. Então o rei disse: “Matarei aquele cujo lado a gazela passar!” Depois começaram a puxar a rede em torno da gazela, que então se acercou do rei, ergueu-se sobre as patas de trás e aproximou do peito as patas dianteiras. Então o rei bateu as mãos, uma contra outra, para fazer fugir a gazela, que saltou e fugiu, passando-lhe por cima da cabeça, desaparecendo no longe daquelas terras. E o rei se voltou para os guardas e viu que eles piscavam os olhos uns para os outros e que era a ele que se referiam. Vendo isso, perguntou ao vizir: “Que têm os soldados?” Ele respondeu: “Eles dizem que tu juraste matar quem quer que visse passar a gazela ao seu lado!” E o rei disse: “Pela vida da minha cabeça! Precisamos perseguir aquela gazela e trazê-la de volta!” Depois começou a galopar sobre a pista do animal, e o falcão atirou-se sobre ela, metendo o bico nos olhos. De tal forma, cegou-a. Então o rei apanhou seu bastão, bateu com ele no animal e -lo rolar. Depois desceu, degolou-a, esfolou-a e suspendeu a caça sobre sua sela. Fazia calor, e o local era árido e sem água. Assim o rei teve sede e o cavalo também. O rei se voltou e viu uma árvore de onde corria um líquido parecido com manteiga. Ora, o rei tinha a mão coberta com uma luva de pele; apanhou a vasilha do falcão, encheu-a com aquele líquido e colocou-a diante do falcão, mas o animal, com um golpe de seu pé, entornou-a. O rei apanhou a taça pela segunda vez, encheu-a, sempre pensando que a ave tinha sede, mas o falcão, pela segunda vez entornou-a. O rei ficou enraivecido contra o falcão e deu o líquido a terceira vez, mas o falcão novamente o entornou. Então o rei disse: “Que Alá te enterre, ave infernal!” Feriu depois o falcão com sua espada, e cortou-lhe as asas. Então o falcão ergueu a cabeça e pôs-se a dizer por meio de sinais: “Olha o que há sobre a árvore!” E o rei levantou a cabeça e viu uma serpente monstruosa; e o que corria era seu veneno. Então o rei arrependeu-se de ter cortado as asas do falcão. Depois, levantou-se, tornou a montar a cavalo e partiu levando a gazela. Atirou a gazela ao cozinheiro, depois sentou-se no seu trono , tendo o falcão no punho. Mas o falcão teve um soluço e morreu. Vendo aquilo o rei soltou gritos de luto e aflição por ter matado o falcão que o salvara da morte.
E tal é a história do rei Sindabad!”
Quando o vizir terminou de ouvir a narrativa do rei Iunan, disse: “Grande Rei, que mal fiz eu, cujos funestos efeitos tu tens visto? Não agi assim senão por piedade em relação a ti! E tu chegarás a conhecer a verdade de minhas palavras! Se me ouvires, estarás salvo, senão perecerás como pereceu um vizir astuto, que enganou o filho de um rei.


HISTÓRIA DO PRÍNCIPE E DA VAMPIRA

Esse rei tinha um filho muito entusiasta da caça a pé e da caça montada, e tinha também um vizir. O rei ordenou ao vizir que fosse com seu filho para onde quer que ele fosse. Esse filho, um dia, saiu à caça a pé e com ele saiu o vizir do seu pai. E todo os dois se foram, e viram um animal monstruoso. E o vizir disse ao filho do rei: “É para ti! Avança e persegue-o!” E o príncipe pôs-se a perseguir o animal, até que ele desapareceu aos olhos do vizir. De repente, o animal desapareceu no deserto. O príncipe ficou espantado, e não sabia mais para onde ir, quando viu uma escrava jovem que chorava. O príncipe perguntou: “Quem és?” Ela respondeu: “A filha de um dos reis da Índia. Enquanto eu caminhava no deserto, com a caravana, o sono apoderou-se de mim e eu caí da minha montaria, sem me aperceber. E me encontro abandonada, sozinha e muito perplexa!” Quando o príncipe ouviu aquelas palavras, tomado de compaixão, suspendeu a moça às ancas de sua montaria, colocando-a na garupa, partiu. Passando junto de uma ilhazinha deserta, a escrava disse: “Meu senhor, desejo fazer uma necessidade!” Entoa ele a fez descer e, vendo que ela demorava muito, seguiu-a sem que fosse notado. Ora, tratava-se de uma vampira! E ela dizia a seus filhos: “Meus filhos, hoje vos trouxe um rapaz bem gordo!” E eles disseram: “Mãe, traze esse rapaz, para que o comamos e o metamos em nossos ventres!” Quando o príncipe ouviu aquelas palavras, não duvidou mais de sua morte, seus músculos tremeram, ele encheu-se de terror e voltou. Quando a vampira saiu de seu covil viu que ele tinha medo e que tremia e disse-lhe: “Do que tens medo?” Ele respondeu: “Tenho um inimigo que me amedronta.” E a vampira disse: “Tu me disseste que és um príncipe.” Ele respondeu: Sim, é verdade. A vampira disse: “Então, por que não dás dinheiro ao teu inimigo para satisfazê-lo?” Ele respondeu: “Ele não se satisfaz com dinheiro, só com a alma! Ora, eu tenho muito medo, sou um homem vítima da opressão!” Ela disse: “Se estás oprimido, como dizes, só tens que pedir auxilio a Alá, contra o teu inimigo. E Ele te salvaguardará dos seus malefícios e dos malefícios de todos que te fizerem medo!” Então o príncipe levantou a cabeça para o céu e disse: “Ó Tu, que respondes ao oprimido, se ele te implora e lhe descobres o mal, faze-me triunfar de meu inimigo e afasta-o de mim, porque tens poder para tudo que desejas.” Quando a vampira ouviu aquela oração, desapareceu. E o príncipe voltou para junto de seu pai e lhe contou o mau conselho do vizir. E o rei ordenou a morte do vizir.”

(A seguir, o vizir do rei Iunan continuou, nestes termos:)
“E tu, Rei, se te fiares nesse médico, ele te fará morrer da pior das mortes. E, embora tu o tenhas cumulado de favores e tenha feito dele teu íntimo, ainda assim ele prepara a tua morte. Não vês por que te livrou da moléstia pela parte externa de teu corpo, através de uma coisa que seguraste na mão? E não acreditas que foi apenas para causar tua perda com uma segunda coisa dessas, que te obrigará ainda a segurar?” Então o rei Iunan disse: “É verdade! É provável que o médico seja um espião, que veio para causar minha perda. Se ele me libertou com uma coisa que segurei na mão, pode muito bem me perder, por exemplo, com uma coisa que me dê a cheirar!” Depois o rei Iunan disse a seu vizir: “Ó vizir, que faremos dele?” E o vizir disse: “É preciso que ele venha aqui. E quando se apresentar, é preciso golpeá-lo na nuca e tu, assim, farás cessar os malefícios e ficarás mais tranquilo. Trai, pois, antes que ele te traia.” E o rei Iunan disse: “Falas a verdade!” Depois o rei mandou chamar o médico que se apresentou todo contente, ignorando o que o Clemente decidira. O rei então lhe disse: Sabes por que te fiz vir aqui?” O médico respondeu: “Ninguém sabe o desconhecido, a não ser Alá.” E o rei disse: “Fiz-te vir para tua morte.” E o médico, tomado de espanto, disse: “Que falta cometi eu?” E o rei respondeu: “Dizem que és um espião, que me vieste matar. Vou te matar antes que me mates.” Depois o rei gritou pelo porta-alfanje e ordenou-lhe: “Fere o pescoço desse traidor!” O médico disse: “Conserva-me, e Alá te conservará. E não me mates, senão Alá te matará!”
Depois reiterou seu pedido, como fiz eu em relação a ti, ifrit, sem que me atendesses. E, ao contrário, persistes em querer minha morte.
Em seguida o rei disse ao médico: Não poderei confiar nem ficar tranquilo enquanto não te matar. Porque se tu me libertaste com uma coisa que segurei, poderás me matar com algo que me farás cheirar, ou outra forma qualquer.” E o médico disse: “Rei, essa é minha recompensa? Assim retribuis o bem com o mal?” Mas o rei falou: “É preciso que morras!” Quando o médico viu que o rei queria a todo transe sua morte, chorou e se afligiu pelos serviços prestados aos que não eram dignos deles. Depois do que, o porta-alfanje avançou, vendou-lhe os olhos e tirando seu alfanje, disse ao rei: “Com tua permissão!” Mas o médico continuou a dizer ao rei: “Conserva-me, e Alá te conservará. E não me mates, senão Alá te matará!”. Disse ainda ao rei: “Essa é minha recompensa? Eis que me tratas como o faria um crocodilo!” Alguns favoritos do rei ainda tentaram: “Rei, faze-nos a graça do sangue deste médico, porque ele te libertou de tua doença!” O rei respondeu: “Ignorais a razão da morte deste médico: se o poupasse, estaria perdido.” Mas o médico disse: “Rei! Se minha morte é realmente necessária, concede-me um adiamento para que eu vá a minha casa a fim de me libertar de tudo e de recomendar a meus parentes e vizinhos que se incumbam de meu enterro, e sobretudo fazer presente de meus livros de medicina. Alias, tenho um livro que é realmente a essência das essências, a raridade das raridades, e que te quero dar de presente.” Então o rei disse ao médico: “E que livro é esse?” Ele respondeu: “É um que contém coisas inestimáveis, e o menor dos segredos é o seguinte: Se me cortas a cabeça, abre o livro e conta três folhas, virando-as: lê, em seguida, três linhas da página esquerda e então a cabeça cortada te responderá a todas as perguntas que fizeres!” A essas palavras o rei se impressionou e disse: “Mesmo que eu corte a tua cabeça, tu falarias?” Ele respondeu: “Sim, é verdade!” Então o rei permitiu que ele se fosse, mas entre guardas. O médico desceu à sua casa e naquele dia e no seguinte terminou seus negócios. Depois tornou a ir ao Divã, que estava cheio de figuras notáveis. Então o médico entrou no Divã e ficou de pé diante do rei, tendo nas mãos um livro muito velho e uma caixinha de colírio, contendo um certo pó. Depois sentou-se e disse: “Que me tragam uma bandeja!” Trouxeram a bandeja e ele despejou nela o pó, espalhando pela superfície. Disse então: “Rei, toma este livro, mas não te sirvas dele antes de me cortar a cabeça. Quando a tiveres cortado, coloca-a sobre esta bandeja e ordena que a comprimam contra este pó para estancar o sangue; depois, abrirás o livro!” Mas o rei, na sua pressa, já não o ouvia; apanhou o livro, abriu-o, mas achou as folhas coladas umas as outras. Então levou o dedo à boca, molhou-o com saliva, e conseguiu abrir a primeira folha. E fez a mesma coisa com a segunda e a terceira, e de cada vez as folhas se abriam com grande dificuldade. Dessa forma, o rei abriu seis folhas e tentou ler, mas não havia nada escrito. E o rei disse: “Médico, não há nada escrito!” E o médico respondeu: “Continua a folhear!” E o rei continuou a virar as páginas. Mas apenas se tinham passado alguns momentos e o veneno circulou no corpo do rei, naquele momento e naquela hora, porque o livro estava envenenado. E então o rei tombou em convulsões horríveis, e gritou: “O veneno circula!” E tombou morto.
Ora, agora aprende, ó tu, ifrit! Se o rei Iunan tivesse poupado o médico Ruinan, Alá o teria por sua vez poupado. Mas ele se recusou, e assim resolveu a própria morte.
E tu, ifrit, se tivesses querido me conservar, Alá teria te conservado!”


Nesse momento de sua narrativa, Sherezade viu aparecer a manhã e discreta calou-se, sem se aproveitar mais da permissão recebida. Então sua irmã, Doniazad, disse: “Ó minha irmã, como tuas palavras são doces, gentis e saborosas. E Sherazade respondeu: “Mas elas não são verdadeiramente nada se comparadas ao q contarei aos dois, na próxima noite, se contudo eu estiver ainda viva, e se o Rei houver por bem me preservar!” E o Rei disse a si próprio: “Por Alá! Eu não a matarei senão depois de ter ouvido o resto do conto!”Depois o rei e Sherazade passaram a noite enlaçados. Depois do que o rei saiu para presidir os negócios da justiça, voltando depois para se reunir aos seus.





Atravessando o Rio



Dois monges viajavam juntos por uma caminho lamacento. Chovia torrencialmente o que dificultava a caminhada. A certa altura tinham que atravessar um rio, cuja água lhes dava pela cintura. Na margem estava uma moça que parecia não saber o que fazer:
- Quero atravessar para o outro lado, mas tenho medo.
Então o monge mais velho carregou a moça às suas cavalitas para a outra margem. Horas depois, o monge mais novo não se conteve e perguntou:
- Nós, monges, não nos devemos aproximar das mulheres, especialmente se forem jovens e atraentes. É perigoso. Por que fez aquilo?
- Eu deixei a moça lá. Você ainda a está carregando?

Contos do Oriente



02/05/2009

O empregado fiel e o infiel



O empregado fiel é aquele que o patrão põe para tomar conta da casa e dos outros empregados, para lhes dar comida na hora certa. Feliz aquele empregado que estiver fazendo isso quando o patrão o vai pôr para tomar conta de toda a sua propriedade. Mas, imaginem o que acontecerá se aquele empregado pensar assim: “O meu patrão está demorando muito para voltar.” E começar a surrar seus companheiros e a comer, a beber e a ficar bêbado. Então o patrão voltará no dia em que o empregado menos espera e na hora que não sabe.
O empregado que sabe qual é a vontade do patrão, mas não se prepara e não faz o que ele quer, será castigado com chicotadas bem fortes. Mas o empregado que não sabe o que o patrão quer e faz alguma coisa que merece castigo, esse será castigado com chicotadas fracas. Assim muito se pedirá de quem recebe muito; e , a quem muito se dá, muito mais será pedido.


Parábolas
Mateus 24:45 a 51
Lucas 12:41 a 48


01/05/2009

As Pegas de Sintra

POR BEM

Gavião, gavião branco
Vai ferido e vão voando;
Mas não diz quem no feriu,
Gavião, gavião branco!

O gavião é calado,
Vai ferido e vai voando
Assim fora a negra pega
Que há-de sempre andar palrando.

A pega é negra e palreira,
O que sabe vai contando...
Muito palra a pega
Que sempre há-de estar palrando.

Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem, ás vezes, falando,
O segredo dos sisudos,
Que eles não guardam calando.

Era uma pega no paço
Que el-rei tomara, caçando;
Trazem-na as damas mimosa
Com a estar sempre afagando.

Nos paços era de Sintra
Onde estava el-rei poisando:
A rainha e suas damas
No jardim andam folgando,

Entre açucena e rosas,
Entre os goivos trebelhando;
Umas regavam as flores
Outras as vão apanhando.

E a minha pega com eles
Sempre, sempre, palreando.
Vinha el-rei atrás de todos
Com Dona Mécia falando.

Era a mais formosa dama
Que andava naquele bando;
No ombro de Dona Mécia,
A pega vinha poisando.

E zelosa aprecia
Que os andava espreitando...
Colhera el-rei uma rosa,
A dona Mécia a ia dando,

Com um requebro nos olhos
Tão namorando e tão brando...
Inda bem, minha rainha,
Que adiante te vais andando!

Pegou na rosa a donzela,
Disfarçada a está cheirando...
Senão quando a negra pega
Que lha tira e vai voando.

Deu um grito Dona Mécia...
E a rainha, voltando,
Deu com olhos em ambos...
Ambos se estão delatando.

-«Foi por bem!» – lhe disse o rei,
Seu acordo recobrando:
-«Foi por bem!» – «Por bem!» Repete
A pega em torno voando.

- «Por bem, por bem!» grasna a tonta,
De má malícia cuidando
Co’a chocalheira da língua
Andar a caso enredando.

Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem às vezes falando
O segredo dos sisudos
Que eles não guardam calando.

Riu-se a rainha da pega
E ficou acreditando
Que a inocência do caso
Nela se estava provando.

Da pega mexeriqueira,
Do bem que fez, mal pensando,
Nos reais paços de Sintra
A memória está durando.

E eis aqui, senhora, a história
Da pega que aí vês palrando,
Da rosa que tem no bico,
Da letra que a está cercando.

A pega é negra palreira,
O que sabe vai contando:
Mas quer Deus que os chocalheiros
Guardem segredo falando.

O gavião, esse é outro;
Vai ferido e vai voando:
Mas não diz quem no feriu...
Gavião, gavião branco!

Romanceiro, Almeida Garrett






Decisões



Há uma anedota Zen sobre uma mulher, que não conseguia decidir-se por qual porta deveria sair de certo aposento. Ambas as portas levavam ao mundo exterior. Após algumas horas de indecisão, ela empilhou algumas esteiras diante de uma das saídas e caiu em um sono profundo. De manhã cedo, levantou-se e examinou o mesmo problema novamente. Uma das portas estava livre, mas a outra estava bloqueada por uma pilha de esteiras. Ela suspirou finalmente: "Agora eu não tenho escolha."

Contos do Oriente