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22/11/2010

Maria Silva

Andava um dia um príncipe à caça numa certa mata e ouviu chorar uma criança; ele aproximou-se do sítio de onde vinham os vagidos e ouviu uma voz que dizia: Procura, procura que a que chora há-de ser tua. Então o príncipe riu-se daquelas palavras e disse: «Veremos se isso há-de acontecer.» Depois procurou, procurou, até que encontrou uma criança que brincava na relva; tomou-a do chão, marcou-a na testa com um ferro em brasa e cortou-lhe o dedo mínimo da mão direita e foi deitá-la numa silva. A criança tinha sido abandonada por sua mãe, por isso ninguém mais a procurou.
Havia naqueles sítios um pastor que levava as ovelhas a pastar entre as silvas. Quando recolhia as ovelhas, faltava-lhe sempre a cabra melhor do seu rebanho; depois ele voltava a chamá-la; ela ia, mas no dia seguinte sucedia-lhe o mesmo. Um dia disse ele para a mulher:
«Olha, não sabes? Desconfio da nossa cabra maltesa, pois fica sempre entre as silvas e é preciso chamá-la muito para ela vir». Então a mulher no dia seguinte foi espreitar a cabra e viu-a deitada no chão dando de mamar a uma criancinha. Como a mulher não tivesse filhos, ficou muito contente com aquele achado e o pastor também, e criaram a menina como se fosse sua filha. A menina foi crescendo e, depois que morreram os pastores, foi ela para criada de uma princesa que estava para casar.
Ora o príncipe, noivo da princesa, ia muitas vezes ao palácio e, tendo visto um dia Maria Silva, sentiu grande paixão por ela; mas ao reparar que ela tinha uma mancha na testa e que lhe faltava um dedo na mão direita, lembrou-se do que tinha feito a uma criancinha que uma voz lhe tinha dito lhe havia de pertencer. Então o príncipe resolveu fazer uma coisa muito má. Comprou três anéis de oiro muito ricos e presenteou com eles as três criadas da princesa e disse-lhes que aquela que ao fim de três dias não lhe apresentasse o anel morreria enforcada.
Depois recomendou às duas criadas que fizessem com que Maria Silva perdesse o anel, que as havia de premiar bem.
As criadas tais traças empregaram que fizeram com que o anel de Maria Silva caísse ao mar, mas Maria Silva não se afligiu de o ver cair. No dia seguinte, quando o pescador veio trazer o peixe para o palácio, ela pediu ao cozinheiro que lhe deixasse amanhar o peixe e encontrou o anel no bucho de um sável. No dia em que o príncipe veio para ver se todas ainda tinham os anéis, Maria Silva apresentou-se muito contente e o príncipe ficou maravilhado de lhe achar o anel que lhe dera, e bem assim as outras criadas que tinham a certeza de lho ter feito cair ao mar. Então o príncipe perguntou à Maria Silva como é que ela para ali tinha vindo, ao que ela respondeu:

Numa silva fui achada;
Por uma cabra fui criada;
Um pastor me educou
E agora aqui estou.

Então o príncipe contou-lhe tudo o que lhe tinha feito e disse-lhe que já não casava com a princesa, pois era ela, a Maria Silva, que ia ser sua esposa.


(Coimbra)
COELHO, Adolfo, «Contos populares portugueses»


20/11/2010

Iara



A Iara é uma dos mitos mais conhecidos e também dos mais confundidos da região amazônica, o que naturalmente inclui o Pará. Geralmente as pessoas acham que a Iara é uma mulher loura, de olhos azuis e a parte inferior do corpo em forma de peixe. Esta descrição na verdade é da sereia européia e não da Iara amazônica. A Iara, além de ser confundida com a sereia européia, o é também com a Iemanjá africana e na verdade nada tem a ver nem com uma nem com outra.
Em certos locais dizem-na boto-fêmea, também a encantar os homens e levá-los para o fundo, e em outros dizem ser a própria Boiúna (cobra preta), que traduzem erroneamente por cobra grande.
Na verdade, a Iara é uma linda mulher morena, de cabelos negros e olhos castanhos. De beleza ímpar, os que a vêem nua a banhar-se nos rios não conseguem dominar seus desejos e atiram-se nas águas... Nem sempre voltam ao mundo dos vivos... Os que o fazem, voltam assombrados, falando em castelos, séqüitos e cortes de encantados... e é preciso muita reza e pajelança - e de um pajé com muita força - para tirá-lo do estado de torpor. Alguns a descrevem como tendo uma cintilante estrela na testa, que funciona como chamariz para atrair o olhar e assim ser facilmente hipnotizado...
Quanto à possível forma de peixe da parte inferior da Iara, isto é apenas um vestido, ou melhor, uma espécie de saia, que ela veste por vaidade e para dar a ilusão de ser metade mulher, metade peixe...
Confundida ou não com crenças de outras plagas, a Iara até hoje exerce um grande fascínio e maior encantamento nos homens da região...

Lenda do Brasil


19/11/2010

O profeta Balaão

Ficheiro:Gustav Jaeger Bileam Engel.jpg

Os israelitas partiram e acamparam nas planícies de Moabe, a leste do rio Jordão e na altura de Jericó, que ficava no outro lado do rio. O rei de Moabe, Balaque, temia uma invasão dos israelitas às suas terras. Por isso ele mandou chamar o profeta Balaão e ofereceu muitas riquezas, para amaldiçoar o povo de Israel. Balaão ficou tentado por causa das riquezas que ele iria receber, mas Deus não deixou que o povo fosse amaldiçoado. Mas por causa da insistência de Balaão em se encontrar com Balaque, Deus permitiu que ele partisse para falar com Balaque. No dia seguinte Balaão se aprontou, pôs os arreios na sua jumenta e foi com os chefes moabitas. De repente, o Anjo do SENHOR se pôs na frente dele no caminho, para barrar a sua passagem. Quando a jumenta viu o Anjo parado no caminho, com a sua espada na mão, saiu da estrada e foi para o campo. Aí Balaão bateu na jumenta e a trouxe de novo para a estrada. E o anjo apareceu mais duas vezes, fazendo a jumenta parar. E Balaão ficou com tanta raiva, que surrou a jumenta com a vara. Aí o SENHOR fez a jumenta falar, e ela disse a Balaão: — O que foi que eu fiz contra você? Por que é que você já me bateu três vezes? Ele respondeu: — Foi porque você caçoou de mim. Se eu tivesse uma espada na mão, mataria você agora mesmo! Então a jumenta disse a Balaão: — Por acaso não sou a sua jumenta, em que você tem montado toda a sua vida? Será que tenho o costume de fazer isso com você? — Não — respondeu ele. Aí o SENHOR Deus fez com que Balaão visse o Anjo, que estava no caminho com a espada na mão. Balaão se ajoelhou e encostou o rosto no chão. O Anjo do SENHOR disse: — Por que você bateu três vezes na jumenta? Ela me viu e se desviou três vezes de mim. Se ela não tivesse feito isso, eu já teria matado você. Então Balaão disse ao Anjo: — Eu pequei. Não sabia que o senhor estava no caminho para me fazer parar. Porém, se agora o senhor acha que não devo continuar a viagem, eu voltarei para casa. O Anjo respondeu: — Vá com esses homens; mas você falará somente aquilo que eu lhe disser. Assim, Balaão foi com os chefes enviados por Balaque. E lá, ele obedeceu a Deus, não amaldiçoou mas abençoou o povo de Deus.

O espelho, a bota e o cravo



HÁ muitos anos, houve um rei que tinha uma filha muito bonita e graciosa. Quando chegou a ocasião de a moça se casar, apareceram três príncipes, cada qual mais belo e rico. A princesa ficou hesitante entre os três candidatos. Assim, o rei, para resolver a questão, declarou que sua filha só se casaria com aquele que trouxesse um presente que mais lhe causasse admiração.
Os três príncipes aceitaram a sugestão do rei e partiram. Quando chegaram a um lugar em que a estrada se dividia em três caminhos, despediram-se e marcaram o dia em que deveriam reunir-se novamente naquele ponto. Depois, cai la um seguiu por um caminho.
O príncipe mais velho viajou durante vários dias, até que chegou a uma grande cidade. Quando atravessava uma praça, ouviu um menino gritar:
— Quem quer comprar um espelho mágico?
O príncipe aproximou-se e perguntou qual a virtude daquele espelho. O menino respondeu:
— Este espelho tem o poder de refletir tudo o que se passa em qualquer lugar.
O príncipe disse consigo:
— Com este espelho me casarei, na certa, com a princesa.
E adquiriu o espelho mágico.
O segundo príncipe fez também uma longa viagem e foi parar em outra grande cidade. Passeava por uma rua, quando ouviu um homem gritando:
— Quem quer comprar uma bota mágica?
O príncipe aproximou-se e perguntou qual a virtude daquela bota. O homem então respondeu:
— Esta bota tem o poder de levar a pessoa ao lugar que desejar.
O moço disse consigo:
— Com esta bota me casarei, na certa, com a princesa. E a comprou.
O príncipe mais moço viajou durante muitos dias e, por fim, chegou a uma cidade muito grande. Passava por um jardim e ouviu um menino gritando:
— Quem quer comprar um cravo mágico?
O rapaz perguntou qual a virtude daquela flor. E o menino respondeu:
— Este cravo tem o poder de dar a vida a quem estiver morto.
O príncipe disse logo consigo:
— Com este cravo me casarei, na cei ta, com a princesa. E adquiriu a flor mágica.
Quando chegou o dia marcado, os rapazes reuniram i na mesma estrada. O príncipe mais velho abriu o seu espelhi para o mostrar aos outros rapazes. Viram então que a bela princesa estava deitada no leito, morta. Ficaram desesperados. O príncipe mais moço exclamou:
- Se eu pudesse chegar agora ao palácio salvaria a princesa!
O segundo príncipe então disse: — Entrem nesta bota e estaremos lá agora mesmo!
Num instante, chegaram ao palácio. Correram para o quarto da princesa. O príncipe mais moço aproximou sen cravo mágico do nariz da morta. Imediatamente, a princesa ressuscitou.
Surgiu então um problema difícil de ser resolvido. Quen deveria casar-se com a linda princesa?
— Sou eu, dizia o príncipe mais velho. Se não fosse o meu espelho, vocês não saberiam que ela estava morta!
— Sou eu, gritava o segundo príncipe. Sem a minha bota, vocês não chegariam a tempo de salvar a princesa!
— Sou eu, exclamava o príncipe mais moço. Se não fosse o meu cravo, ela não estaria viva!
A discussão prolongou-se por muito tempo. O rei não sabia o que fazer, pois achava que todos os três rapazes tinham razão. Afinal, a princesa que não queria ficar solteirona, decidiu a questão. Casou com o príncipe mais moço porque já estava apaixonada por ele. Os outros príncípes casaram-se com as primas da princesa, também princesas. E assim acabou a história em paz.

18/11/2010

Cavalinho e cavalo



O cavalinho foi ver o pai às corridas.
Tinham-lhe dito que o pai ia concorrer, na Grande Prova Internacional a Todo o Galope, e o cavalinho, que nunca tinha vencido a cerca do prado onde vivia, deu um salto e pronto. Estava do outro lado.
- Se fosse o meu pai, melhor ele saltaria - disse de si para si o cavalinho. - O meu pai é um grande saltador.
Um cavalo na estrada, sem cavaleiro nem atrelado, chama sempre a atenção. Um automóvel parou, ao pé dele.
- Ó cavalicoque, posso dar uma voltinha? - perguntou uma risonha voz de dentro do carro.
O cavalinho assustou-se e fugiu. Correu. O automóvel atrás dele.
Se não tivesse inflectido para um caminho de mau piso, o automóvel tinha-o apanhado. Assim, escapou.
- Se fosse o meu pai, melhor correria - disse de si para si o cavalinho. - O meu pai é um grande corredor.
Era o que se ia ver na tal Grande Prova a Todo o Galope. Postados, na linha de partida, cavaleiros e cavalos. Entre eles, o pai do cavalinho.
Desataram todos a correr ao mesmo tempo. Nem se percebia qual ia à frente, tanto o pó que levantavam.
- Deve ser o meu pai - dizia o cavalinho.
Fosse ou não fosse, o certo é que, numa curva, depois de terem saltado uma barreira, os cavalos tropeçaram uns nos outros e caíram. E magoaram-se. Entre eles, o pai do cavalinho.
Foi interrompida e anulada a corrida.
Agora de novo no prado com a cerca à volta, o cavalinho faz companhia ao pai, que coxeia, de perna ligada, para que se cure depressa.
- Se não tivesse havido aquela confusão, depois da barreira, tu é que tinhas ganho - disse-lhe o filho.
O cavalo de corrida faz que sim com a cabeça e relincha. O pescoço musculoso brilha como seda. As crinas ondeiam. É um lindo cavalo castanho, cor de terra molhada. O filho sai a ele.

17/11/2010

Lancelot

Segundo a lenda, Lancelote era filho do rei Ban de Benoíc e da Rainha Helena, mas foi raptado ainda criança pela Dama do Lago, que o educa e o torna o melhor cavaleiro da Távola Redonda e mestre-de-armas do Rei Artur. Lancelot mantinha vínculos com Avalon e sempre que podia visitava sua mãe, porém ele não seguia nenhuma das duas religiões da época (Católica e Celta). Lancelot não era um homem ligado aos cultos religiosos, embora pertencesse à linhagem real e tivesse a visão. Ele era apaixonado por Guinevere, antes mesmo desta se tornar rainha. A sua vida sempre foi regada por vitórias em batalhas e campeonatos.

Lancelote era o mais valoroso guerreiro do rei e o mais hábil domador de cavalos selvagens. Ele não tinha relacionamento com mulher alguma, pois aquela que ele amava não podia ser dele. Era o cavaleiro mais cobiçado pelas damas, mas por uma feitiçaria acabou casando-se com a filha do rei Pelinore e, com isso, se afastou um pouco do reino de Camelot e da rainha Guinevere, com quem passou a ter encontros furtivos e a quem realmente pertencia o seu coração.

O seu romance com Guinevere foi descoberto pelos cavaleiros da Távola Redonda, e depois disso ele foi expulso do reino de Artur e nunca mais voltou. Lancelote morreu velho no reino de seu sogro, o rei Pelinore.


Lendas do ciclo arturiano



A jarra partida


Partiu-se a jarrinha, aquela jarrinha de flores pintadas à mão, tão elegante, tão graciosa que era o enlevo de todas as pessoas que passavam por nossa casa.
- Está na nossa família há séculos. Dizem que foi oferecida por uma rainha de antigamente a uma antepassada nossa - explicava a minha mãe, enternecida, a olhar para a jarrinha de flores pintadas.
Pois, mas partiu-se. Partiu-se em cacos inumeráveis que não há conserto nem cola que lhe valham. Quem foi o desastrado?
- Eu não - safou-se o Tiago. - Quando eu cheguei a casa, já a mãe estava a chorar.
O meu irmão Tiago ficou livre de qualquer suspeita.
- Eu também não fui - apressou-se a dizer o meu pai. - Quando eu cheguei a casa, já a vossa mãe estava a ser consolada pelo Tiago.
- Eu é que não fui - choramingou a minha mãe. - Tinha tanta estimação na jarrinha. Quando eu cheguei a casa, não havia cá ninguém e já a jarra estava partida em mil bocados. Por pouco que não desmaiava de desgosto.
- Só se foi o Bolinhas... - lembrou o Tiago.
O nosso gato Bolinhas desenrolou-se com muita dignidade e disse:
- Eu não fui nem tenho nada a ver com o assunto.
E voltou a enrolar-se e a adormecer. Ai, quem me dera ter podido fazer o mesmo!
- Fui eu - balbuciei.
Todos se viraram para mim.
- Tu, Marcos? E estavas calado?
Suspirei fundo e comecei a contar o que acontecera. À medida que contava, ia ficando mais tranquilo, sem aquela insuportável queimadura nem sei onde - no estômago? no coração? na barriga? - que me fizera correr de casa para a escada, da escada para a rua, como se tivesse lançado fogo ao prédio. Ou a mim próprio.
Tinha sido um azar. É sempre um azar. Para meter a ficha do gravador de vídeo na tomada da parede tive de arredar um bocadinho a estante. Não contava que fosse tão pesada. Com a inclinação da estante, os livros escorregaram. Precipitei-me sobre eles, para evitar o desmoronamento. Não medindo os gestos, dei um encontrão numa mesinha que abalou o expositor onde estava a jarrinha. Estremeceram as bonecas de Saxe e saltaram as chávenas de café nos respectivos pires... A jarrinha, como a casca de um ovo, partiu-se. Acho que ela estava, há muito tempo, à espera de partir-se. Qualquer estremecimento lhe daria o pretexto. Dei eu. A culpa foi minha.
Disse isto com um ar tão enfiado, tão de lamentar que o círculo acusador à minha volta se desanuviou e desfez por si. A minha mãe, suspirando, foi varrer os vidros da jarra para uma caixa, na ilusão de que talvez ainda pudesse ser restaurada, o Tiago lançou-me uma piscadela de olhos de ?fixe, meu" e o meu pai, antes de mergulhar no jornal, confidenciou-me:
- Sabes: a jarra realmente já estava partida. Há tempos, na balbúrdia de uma brincadeira com o Bolinhas, que ainda era gatinho, a jarra rachou-se. Isto é, rachei-a... Como estava sozinho em casa, tive tempo de consertá-la o melhor que pude, para não dar um desgosto à tua mãe. Mas, de facto, a jarra já estava partida.
Por aquela não esperava eu.
- Tu tiveste muita coragem em confessar - continuou o meu pai. - De aqui a bocado, ao jantar, quando estivermos todos juntos, vou ser eu a precisar de coragem. E desculpa...
O meu pai abriu à sua frente as longas páginas do jornal, não sei se para lê-las, se para esconder a cara do embaraço. Também é preciso coragem para pedir desculpa.


António Torrado


16/11/2010

Chuva de algures



Estava a cair uma chuvinha cor-de-rosa, mas persistente.
Isto passa-se num planeta algures - parece que se chama mesmo Algures - lá para os fundos do universo.
Aqui (ou ali?) só vivem sapos e rãs, únicos seres vivos do planeta, onde chove continuamente e sempre às cores. Tanto pode a chuva ser verde-alface como violeta-desmaiado ou azul-marinho ou amarelo dourado. É um planeta muito colorido e festivo e, já se vê, sempre alagado.
Os sapos e as rãs não querem outra coisa, embora lhes seja indiferente a cor da chuva, desde que molhe. Os sapos e as rãs são bichos de gostos pouco requintados.
Pois, como ia dizendo, estava a cair uma chuvinha cor-de-rosa quando, sem quê nem porquê, parou de chover. Escorregou a última gota rosada de chuva sobre a pele esverdeada acastanhada do sapo, que elegemos como herói da nossa história, e o chuveiro emperrou.
O sapo Tubi interrogou com inquietação o céu, que se manteve cinzento e impassível. Nunca tal tinha acontecido.
Podia a época ser de aguaceiros, mas contínuos, sem descanso. Agora, um intervalo na chuva, por mínimo que fosse, era inconcebível.
Saltando e chapinhando de poça em poça, as rãs e os sapos reuniram-se para analisar em conjunto o estranho fenómeno.
- Sinto a pele cada vez mais seca - queixava-se uma rã mais alarmista.
- Por este andar vamos nadar em seco - queixava-se outra rã não menos alarmista.
Tudo um exagero. O planeta Algures, somados os rios, lagos e charcos, tinha água de reserva para muitas e muitas gerações. Mas a inesperada ausência de chuva não deixava de causar inquietação.
No meio da coaxante assembleia, o sapo Tubi acusou-se:
- Fui eu o culpado.
Houve um grande espanto e um grande silêncio, que o sapo Tubi aproveitou para prosseguir a sua confissão pública:
- Se eu não tivesse dito: ?Estou farto desta maldita chuva às cores" nada disto tinha acontecido.
Protestaram sapos e rãs:
- A chuva não anda ao nosso mando. Chove azul, amarelo, verde e encarnado, há que séculos, porque sim. Ninguém manda nas nuvens. Elas é que, azuladas, amareladas, esverdeadas ou encarniçadas, acumulam e carregam a água que desaba sobre a nossa terra. Um insignificante pensamento de um sapo não as faz mudar de prática. Isso não entra na cabeça de ninguém.
Mas o sapo Tubi não saía da sua:
- Eu disse em voz alta, muito alta. As nuvens melindraram-se, ressentiram-se.
Fosse do que fosse, não havia meio de a chuva voltar ao planeta Algures. O caso estava complicado. Podia até imaginar-se que, ao fim de muitas gerações, a persistência da seca acabasse com a vida no planeta. As perspectivas de futuro, a longo prazo, eram calamitosas.
As rãs já não saltavam com o mesmo vigor nem os sapos coaxavam o seu grunhido de uma única sílaba ?Cró! Cró!", noite fora. Andavam todos muito desalentados.
Até que o Tubi, fixando tristemente o céu cinzento, se saiu com esta:
- Quem dera que chovesse, nem que fosse sem cores.
De imediato, uma gota de água transparente caiu no focinho do sapo. Ele lançou a serpentina da língua cá para fora e provou-a. Não sabia a nada, mas era gostosa. Água pura.
Depois da primeira gota, muitas outras se lhe seguiram. Voltava a chover no planeta Algures e logo da primeira vez, depois da seca, a abada era de respeito. As cores variadas da chuva de outrora é que não voltaram mais.
Quando os sapos e as rãs contam esta história ou lenda aos filhos eles riem-se. O riso estica-lhes a pele húmida e luzidia, que ao sol ganha a reverberação das cores do arco-íris. Recordações, talvez, do tempo em que a chuva era às cores.

António Torrado

15/11/2010

Os tordos e a coruja



Estamos livres! Estamos livres! - gritaram os tordos certo dia, vendo que um homem apanhara a coruja - agora a coruja não vai mais nos assustar. Agora dormiremos em paz.
De fato, a coruja caíra numa armadilha e o homem a colocara dentro de uma gaiola.
- Vamos ver a coruja na prisão! - disseram os tordos, voando e cantando em volta da gaiola de sua inimiga.
Porém o homem capturara a coruja com outra finalidade, a de apanhar os tordos. A coruja aliou-se imediatamente a seu captor, que prendeu-a pelo pé e colocava-a diariamente em cima de uma estaca, bem à vista. A fim de poderem ver a coruja, os tordos voaram para as árvores próximas, nas quais o homem escondera gravetos cobertos de visgo. E assim como a coruja, os tordos também perderam a liberdade.

Fábulas de Leonardo da Vinci

14/11/2010

É Maravilhoso ficar bêbado

Ti Hsi era um nativo de Chungshan e sabia fazer "vinho de mil dias", capaz de manter um homem bêbedo durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Hsüan Shih que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Ti Hsi e pediu-lhe um gole; este último respondeu - "Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo a você." - "Quero prová-lo assim mesmo", disse Hsüan. Ti Hsi não pôde dizer "não" e deu- lhe um copo. - "é delicioso," observou Hsüan, "quero outro copo." - "Deve ir para casa agora," replicou Ti Hsi. "Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias." Hsüan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o.
Após três anos, Ti Hsi disse consigo mesmo - "Hsüan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo." Quando chegou à casa de Hsüan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse - "Morreu há muito. Até já tiramos o luto." Ti Hsi ficou aflito e disse - "O que! foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo." Deu, então, ordens para que a família de Hsüan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem "morto" abrir os olhos, bocejar e dizer - "Oh! como é delicioso ficar bêbedo!" Depois perguntou a Ti Hsi - "Que vinho é esse que você faz? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?" As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos caíram bêbedos por três meses.

(Do "Soushenchi", século IV)



13/11/2010

O fazendeiro e a cegonha



Um fazendeiro armou uma rede no campo onde plantara milho , por que ali vinham os pardais comer o milho semeado.
Entre os pardais, caiu na rede uma cegonha.
- Alto lá! Exclamou a cegonha. Não sou pardal , sou cegonha.
-Não tenho nada que ver com isto!
- Solte-me!
O fazendeiro retrucou:
- Se você não é pardal , que estava fazendo no meio desses ladrões?

Moral da estória:Quem é bom não se mistura.


Fábulas de Esopo

11/11/2010

Lenda de S. Martinho


Segundo reza a lenda, num dia frio e tempestuoso de Outono, um soldado romano, de nome Martinho, percorria o seu caminho montado no seu cavalo, quando deparou com um mendigo cheio de fome e frio. O soldado, conhecido pela sua generosidade, tirou a sua capa e com a espada cortou-a ao meio, cobrindo o mendigo com uma das partes. Mais adiante, encontrou outro pobre homem cheio de frio e ofereceu-lhe a outra metade. Sem capa, Martinho continuou a sua viagem ao frio e ao vento quando, de repente, como por milagre, o céu se abriu, afastando a tempestade. Os raios de sol começaram a aquecer a terra e o bom tempo prolongou-se por cerca de três dias. Desde essa altura, todos os anos, por volta do dia 11 de Novembro, surgem esses dias de calor, a que se passou a chamar "Verão de S. Martinho".


06/11/2010

A história do perdão


O pai de Hanoch contou-lhe que, todos os anos, quando era novo, na véspera do Yom Kippur * , ia visitar os seus amigos e conhecidos e fazia-lhes a seguinte pergunta:
— Digam-me, por favor, se vos fiz algum mal, se vos ofendi de alguma forma, ou fui causa de infelicidade. Se o fui, lamento profundamente e peço-vos perdão.
Esta história deu que pensar a Hanoch. O rapaz disse para consigo “E porque não faço eu a mesma coisa?”
Correu para a cozinha, onde a mãe preparava o jantar, atarefada. Reinava ali um grande reboliço, com panelas e frigideiras a fumegar, e um cheirinho agradável no ar.
Ficou junto da porta e esperou pelo momento certo para falar com a mãe. Quando esta o viu, deixou as sertãs e perguntou-lhe:
— O que se passa, filho? Já tens fome?
Hanoch não respondeu. Sentia-se desconfortável.
— Porque estás tão calado, querido? — insistiu a mãe. — Não te sentes bem? Diz-me o que se passa.
— Não estou doente, mamã.
— Nesse caso, o que traz à cozinha no meio da minha azáfama? É melhor ires brincar.
Hanoch foi até junto da mãe e segredou-lhe:
— Hoje é véspera do Yom Kippur e venho pedir-te que me perdoes.
— Perdoar-te, filho? Porquê? Que pecado cometeste?
— Talvez te tenhas esquecido, mamã. Foi quando tiveste aquela dor de cabeça, e estavas deitada. Pediste-me que guardasse as galinhas na capoeira. Prometi-te que o faria, mas fui brincar com as outras crianças. Fui andar com elas de bicicleta e esqueci-me das galinhas. E cinco galinhas foram encontradas mortas na manhã seguinte. Não te disse nada naquela altura porque me sentia muito infeliz.
Enquanto falava, Hanoch tinha lágrimas nos olhos.
— Mas hoje tive de te contar e pedir-te que me perdoes.
A mãe olhou para ele com amor e beijou-o.
— Claro que te perdoo!
O menino abraçou-a e, com o coração já bem mais leve, foi brincar.


Conto de Israel


*O Yom Kipur ou Kippur é um dos dias mais importantes do judaísmo. No calendário hebreu começa no crepúsculo que inicia o décimo dia do mês hebreu de Tishrei (que coincide com Setembro ou Outubro), continuando até ao pôr-do-sol seguinte. Os judeus observam tradicionalmente esse feriado com um período de jejum e orações.



Levin Kipnis
Let us play in Israel
Tel-Aviv, N. Tversky Publishing House, 1966
tradução e adaptação


05/11/2010

O papel e a tinta

Certo dia uma folha de papel que estava em cima de uma mesa, junto com outras folhas exactamente iguais a ela, viu-se coberta de sinais. Uma pena, molhada de tinta preta, havia escrito uma porção de palavras em toda a folha.
- Porque você não me poupou dessa humilhação? - disse, furiosa, a folha de papel para a tinta.
- Espere! - respondeu a tinta - eu não estraguei você. Eu cobri você de palavras. Agora você não é mais apenas uma folha de papel, mas sim uma mensagem. Você é a guardiã do pensamento humano. Você se transformou num documento precioso!
E, realmente, pouco depois, alguém foi arrumar a mesa e apanhou as folhas para jogá-las na lareira. Mas subitamente reparou na folha escrita com tinta, e então jogou fora todas as outras, guardando apenas a que continha uma mensagem escrita.

Fábulas de Leonardo da Vinci



01/11/2010

Uma carica e tanto



Vou contar-vos, hoje, a história desta carica. Não é uma carica qualquer. Desde que nascera que sabia que estava reservada para altos destinos. Descendia da lata, pois descendia, mas à lata não voltaria.
Amoldada, como milhares das suas irmãs, à boca de uma garrafa, foi à vida com a garrafa a que a juntaram.
Um dia, uma pressão - tche! E rua, chão... Chão com a carica que já não serve para nada.
Quem disse que já não serve para nada? Agora é que ela ia começar a viver. Que aventura!
Primeiro, foi moeda de troca. ?Dou-te uma carica destas. Dá-me duas das outras."
Andou por várias colecções, conheceu muitos bolsos, muitas mãos... Sentiu-se moeda de peso, das fortes, das que não se desvalorizam, libra, dobrão de ouro ou mais ainda.
Depois, conheceu o entusiasmo das corridas, na beira dos passeios. Ganhou provas, fez-se notar. Bastava um piparote e lá ia ela, a carica motorizada, a caminho da vitória.
Mas o melhor da festa, o seu dia de glória, foi quando medalhou o peito de um ?general" de brincar por casa. Nesse dia, sentiu-se a estrela mais brilhante da constelação das caricas.
Se lhe perguntassem, então:
- Carica, quanto vales?
Ela responderia:
- Tanto ou mais do que peso. A minha fortuna está no que sirvo. Entrei em muitas corridas, participei em muitas colecções, viajei muito, conheci imensa gente. Não tenho preço. Fui moeda, peso, monóculo, prato, chávena, pires, taça, medalha, automóvel...
Para ser isto tudo e mais ainda, hás-de concordar que é preciso ter muita lata.