( 391x375 , 253kb)


07/04/2011

Lenda do Vale da Morte

A Lenda na História é tão impressionante e viva como a luz da Lua espelhada no mar. Quem a contempla admira-se e deixa-se arrastar pelo seu misterioso encanto. Mas quem consegue separá-la? Podia o mar secar-se, mas a luz prateada ficaria ainda a atestar a sua encantada presença. Por isso o povo admira e espeita a Lenda. Por vezes, a sua ingenuidade toca as raias do impossível. Mas assim mesmo o povo a recebe e guarda como espelho fiel das suas gratas tradições.

O ano de 1090, na nossa Península, assinalou várias lutas entre mouros e cristãos. Todavia, a lenda que evocamos incide apenas numa batalha travada, por essa época, nas terras de além-Tejo, junto à antiga povoação de Pombal.
Iusufe, a quem os mouros da província pediram socorro, veio com o seu exército disposto a vencer. Encorajados com esta poderosa presença, a luta começou mais dura, embatendo sem cessar a espada do cristão contra o alfange do muçulmano.
A tarde chegara no auge da contenda, mostrando-se assustada com a sorte dos cristãos. O número destes era indiscutivelmente menor. O seu ímpeto era, contudo, violento. Combatia-se à espada, porque as lanças já estavam quebradas e postas de parte, por inúteis. Jaziam no chão milhares de cadáveres, de ambos os lados. Gemiam os feridos, sem que fosse possível arranjar tempo para os recolher. Para longe haviam fugido os velhos, as mulheres e as crianças, numa correria sem norte, levando no cérebro a repercussão dos gritos da batalha. Mas o número venceu como força viva. Entusiasmados com a vitória, os muçulmanos perseguiram os poucos fugitivos, saquearam a pequena povoação e deitaram fogo ao arraial dos que combatiam sob a bandeira de Cristo. Depois, soltando gritos de entusiasmo, embora com bastantes baixas, os homens de Maomé abandonaram o campo que os corvos já sobrevoavam, embriagados com o cheiro do sangue de que a terra estava empapada. Era pois esse hálito da terra, pestilento, que subia no ar, dando-se à tarde de sol claro, que não alcançava coragem para se finar de horror…

Os gritos da moirama morreram ao longe. Indicando o caminho que haviam levado, apenas as nuvens de pó que as patas dos cavalos levantavam do chão na sua corrida entusiasmada. Foi então que uma jovem de expressão aflita, o rosto lavado em lágrimas, se esgueirou por detrás de um arbusto onde as chamas do fogo ateado pelos mouros não haviam tocado. Como louca, correu para o campo onde os corpos jaziam destroçados e quase putrefactos. Olhava-os um a um, quando eles tinham a cabeça ligada aos ombros, pois não raro se viam cabeças sem corpos e corpos sem cabeças. Tremendo de pavor, com uma das mãos sobre a boca, a sufocar gritos de pesadelo e a impedir a entrada franca desse ar impuro, a jovem dir-se-ia um fantasma, se não fosse o seu choro impressionante. Aqui e além ouviam-se gemidos. Logo a jovem corria certificar-se donde eles surgiam. Por fim, exausta, sentou-se no chão, cobrindo o rosto com as mãos.
Então, nesse inferno, alguém de súbito chamou o seu nome, ao longe:
— Teresa!... Teresa!... Que fazes aí? Foge, que te matas!
Ela olhou na direcção em que a chamavam. Olhou com medo. Mas então o seu choro tornou-se um grito:
— Afonso! Afonso! Viste o Gonçalo?
— Não! Vai-te para onde foram as outras mulheres! Isto aqui não serve já para nimguém!
Ela correu para o homem que surgia a atestar que ainda havia sobreviventes. Ele foi ao seu encontro.
— Teresa, não sejas louca! Vai-te embora!
— Para onde?
— Para junto dos teus!
— Meus pais morreram dentro de casa…
Um choro convulso cortou-lhe a frase na garganta.
— Acalma-te!
— Quero procurar o Gonçalo!
— Aqui? Mas se isto é um inferno!
— Ainda estão alguns vivos! É preciso salvá-los! E quem sabe se o Gonçalo…
Afonso mordeu os lábios.
— Tens razão. Perdoa a minha cobardia. Precisamos salvar os que puderem resistir ainda. Mas só nós dois somos poucos!
— Eu sei. Mas outros virão depois, agora que esses malvados partiram…
Afonso olhou a jovem bem de frente.
— Teresa... Não contes muito com os outros. Eles sabem que os outros partiram, mas não ignoram também que a peste ficou... E não sei qual desses inimigos será pior...
Teresa agarrou um dos braços de Afonso.
— Eu ficarei! Quero encontrar o meu marido. Tenho um mês de casada. Um mês!... E não posso acreditar que estou já viúva...
— Sê razoável, Teresa! Aqui só encontrarás morte!
Resoluta, a rapariga largou o braço do companheiro.
— Pois se tens medo, vai-te! Eu o procurarei sozinha! E aqueles que, feridos, puderem seguir-me, eu os levarei comigo!
Afonso olhou-a com admiração profunda. Não estando louca, aquela jovem teria de ser sublime. Respirou o melhor que pôde e baixou os olhos, vencido.
— Teresa, sabes o que acabava de fazer quando te vi?
— Não.
— Enterrava meu pai e minha mãe! Descobri-os quando tentava sair deste caos. Voltei para trás... e aqui estou. A tarefa será dura, mas talvez proveitosa. Coragem, Teresa! Prepara-te para enfrentares o próprio inferno!

Quando o Sol se despediu atrás do monte, disse adeus baixinho a essa jovem de alma forte que continuava na lúgubre pesquisa, separando os feridos dos mortos, tropeçando em cadáveres, já no princípio de decomposição, olhos já habituados a contemplarem aquela tragédia. Mas a noite tomava o lugar do dia e Afonso compreendeu que era impossível continuarem ali, nesse vale da morte. Então foi ter com a sua companheira de infância.
— Teresa... vamos levar para junto daqueles arbustos os feridos que se podem ainda arrastar. A noite não tarda e nós estamos cansados. Logo que o sol rompa voltaremos aqui.
Teresa olhou-o em silêncio. Depois contemplou o campo juncado de corpos, amortalhados pela penumbra envolvente. E decidiu-se.
— Tens razão. Descansaremos umas horas. E que Deus permita que, esse tempo, eu não venha a lamentá-lo como perdido!
E quem pudesse de longe espreitar esse campo de tormenta ao lusco-fusco, teria descoberto duas sombras que agiam como fantasmas, levando um após outro os feridos que gemiam as suas dores.

Mais cedo um pouco do que no dia anterior, o Sol despontou, como pressuroso de vir ajudar quem tanto necessitava dele. Mas encontrou já Nesa e Afonso caminhando na busca dos feridos e no enterramento de uns mortos. De súbito, Teresa deu um grito:
— Afonso! Encontrei-o!
Afonso correu para a sua beira.
— Espera, Teresa, não lhe toques! Eu o livrarei desses corpos que estão sobre ele!
Um gemido fez-se ouvir. Teresa gritou:
— Gonçalo ainda vive! Salva-o, Afonso, salva-o!
Afonso retirou-o com jeito e ambos saíram para fora do campo. Deitaram-no no chão. O ferido tornou a gemer. Teresa aproximou o rosto daquele rosto quase irreconhecível. E pediu baixinho:
— Gonçalo! Desperta! Sou eu... a tua Teresa!
Gonçalo abriu os olhos e respirou a custo. Ela tornou com maior veemência:
— Gonçalo! Estou aqui... junto de ti!
O rapaz olhou-a, mas no seu olhar baço não havia vislumbre de entendimento.
Ela abafou um grito:
— Não me reconheceu!
Vendo-a esmorecer, Afonso tentou encorajá-la.
— Então, Teresa! É agora, que ele mais precisa de ti, que vais perder toda a coragem?... Vamos! Precisamos sair daqui quanto antes, se quisermos salvar os feridos que nos rodeiam e que arrancaste à morte!
Ela suspirou, como a tomar alento.
— Tens razão! Mas para onde iremos?
— Para qualquer lugar que não seja este!
Teresa olhou o céu, como a pedir inspiração. E quando já baixava os olhos descobriu, de súbito, algo que lhe devolveu a energia perdida.
— Afonso! Repara... além!
— Onde?
— Vês aquela grande vide, no cabeço?
— Vejo.
— Pois é para ali mesmo que iremos com todos os feridos que puderem seguir-nos ou nós possamos levar!
— Para o cabeço da vide?
— Sim! Que tens a opor?
— Nada. Acho bom. Pois partamos e quanto antes deste vale da morte!

Algumas semanas passaram. E de novo o Sol nasceu cobrindo com o seu manto luminoso a terra que namorava. O ar fino rodopiava numa alegre cantilena com as folhas da gigantesca vide, colocada precisamente no cimo do cabeço, pela Mão Divina. Teresa encheu de ar os pulmões. Sorriu. Murmurou com unção:
— Isto dá vida!
— Cuidado, meu amor... Não acalentes demasiadas esperanças... Tenho muitos e profundos golpes...
— Não te deixarei morrer, Gonçalo, já que te arranquei ao vale da morte!
— Onde está Afonso?
— Anda com as outras mulheres que vêm chegando a tratar dos feridos...
— Se eu morrer... ele velará por ti!
Teresa zangou-se.
— Acabou-se a morte, ouviste? Não quero ouvir falar mais nela!
— E as feridas?
— Olha, a velha Ana, que trouxemos do braseiro da sua pobre casa e que está acampada mais além, diz que as duas fontes que se vêem daqui fazem curas maravilhosas.
— Eu sei. Meu pai falava-me delas. São as fontes que os Romanos exploravam com os balneários.
— Pois levar-te-emos aí e nelas hás-de banhar as feridas.
Gonçalo olhou a jovem esposa com todo o carinho da sua alma. Agarrou-lhe com ternura uma das mãos e levou-a aos lábios ainda pálidos pela perda de sangue. E Teresa sorriu, como se já o visse curado!

Mais algum tempo passou. Gonçalo ia agora diariamente banhar-se na água das fontes, seguido pelos outros companheiros de infortúnio. E as feridas iam sarando, os inchaços desaparecendo, as infecções e a febre diminuindo. E em breve se sentiram completamente curados!
A pouco e pouco, novas casinhas começaram a surgir para albergar as famílias que se haviam abrigado no cabeço. A vida recomeçava. Dividiram as terras e dispuseram-se a amanhá-las. Era uma nova povoação que surgia. Uma povoação no Cabeço de Vide, a que a morte levada pelos Mouros dera a vida!


Gentil Marques
Fronteira, Portalegre