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09/08/2009

Bernal Francês

I

Ao mar se foi D.Ramiro
Galé formosa levava;
Seu pendão terror de Mouros
N’alta popa tremulava.

Oh que adeus na despedida!
De saudades vai ralado;
Com tantos anos de amores;
Não tem um de desposado.

Nem há dama em toda a Espanha
Tão bela como é Violante;
Não a houvera igual no mundo
Se ela forma mais constante.

Bate o mar na babaca
Do castelo alevantado,
Só a vela 15 na alta torre
Não cede ao sono pesado.

Tudo o mais repousa e dorme,
Tudo é silencioso ao redor,
Dobra o recato nas portas
Com a ausência do senhor.

Mas a certa hora da noite
Se vê luz numa seteira,
E logo cruzar por perto
Leve barca aventureira.

Muitas noites que passaram,
Manso esteja ou bravo o mar,
A mesma luz, á mesma hora,
A mesma barca a passar.

E isto ignora o bom Rodrigo,
Que tão fiel prometeu
De guardar a seu senhor
Juramento que lhe deu?

Saberá, não saberá:
Mas a c’ravela ligeira,
Que ao pé da torre varada
Jazia ali ribeira,

Uma noite escura e feia
Na praia menos se achou...
Quem n’ela foi não se sabe,
Mas onde foi não tornou.

E o farol que no alto luz
A mesma hora a brilhar...
Só a barca aventureira
Não foi vista hoje passar.

E dum lado ao pé da rocha
Havia um falso postigo:
Só o sabem D.Ramiro,
Violante e o fiel Rodrigo.

Mas alta noite, horas mortas,
Gente que o postigo entrava,
E á porta de Violante
Manso bater se escutava

- «Quem bate á minha porta,
Quem bate, oh! Quem ‘esta aí?»
- «Sou Bernal Francês, senhora,
Vossa porta a amor abri.»

Ao descer do leito d’oiro
A fina Holanda rasgou,
Ao abrir mansinho a porta
A luz que se lhe apagou:

Pela mão tremente o toma,
Ao seu aposentí o guia:
-«Como treme, amor querido,
Esta mão, como está fria!»

E com ósculos ardentes
E no seio palpitante,
Que lhe aquece as frias mãos
A namorada Violante.

-«De longe vens? - De mui longe.»
-«Bravo estava o mar? - Tremendo.»
-«Armado vens!» - Não responde.
Vai-lhe as armas desprendendo.

Em pura essência de rosas
O amado corpo banhou,
E em seu leito regalado
A par de si o deitou.

-«Meia-noite já é dada
Sem para mim te voltares,
Que tens tu, querido amante,
Que me encobres teus pesares?

«Se temes de meus irmãos,
Eles não virão aqui;
Se de meu cunhado temes,
Não é homem para ti.

«Meus criados e vassalos
Por essa torre a dormir
Nem de nosso amor suspeitam,
Nem o podem descobrir.

«Se de meu marido temes,
A longes terras andou:
Por lá a detenham Mouros,
Saudades cá não deixou».

-«Eu não temo os teus criados,
Meus criados também são:
Irmãos nem cunhado temo,
São meus cunhados e irmãos.

De teu marido não temo
Nem tenho de que temer...
Aqui está ao pé de ti
Tu é que deves tremer.»

II

E o sol no oriente erguido
Da torre ameias dourava;
Violante mais bela que ele
Para a morte caminhava:

Alva tela, áspera e dura
Veste o corpo delicado,
Por cintura rijo esparto
Em grosseiro laço atado.

Choram pajens e donzelas,
Que a piedade o crime esquece;
O próprio ofendido esposo
Com tal vista se enternece.

Dá sinal a campa triste,
O algoz o cutelo afia...
«Meu senhor mereço a morte»
A malfada dizia.

«De joelhos, D.Ramiro,
Humilde perdão vos peço;
Perdoai-me por piedade...
A morte não, que a mereço:

«Da afronta que vos hei feito
Por minha triste cegueira,
Dai-me quitação co’a morte
Nesta hora derradeira:

«Mas só eu sou criminosa
Do agravo que vos fiz,
Não tireis, senhor, vingança
Desse misero infeliz...»

Talvez ai perdoar-lhe
O esposo compadecido...
Renovou-se-lhe o ódio todo,
Daqueles rogo ofendido:

O semblante roxo de ira
Para não vê-la torceu;
E co’a esquerda mão alçada
O fatal aceno deu.

Sobre o colo cristalino,
Desmaiado, e inda tão belo,
E golpe tremendo e súbito
Caí o terrível cutelo.

III

Oh! que procissão que sai
Da antiga porta da torre!
Que gente que acode a vê-la.
Que povo que triste corre!

Tochas de pálida cera
Nas trevas da noite escura
Vão dando luz baça e triste,
Luz que guia á sepultura:

Cobertos com seus capuzes
Rezam frades ao redor,
A dobrar desentoados
Os sinos causam terror...

Dias noites são passados,
Já não há luz na seteira,
Mas passado e repassando
Anda a barca aventureira.

Linda barca tão ligeira
Que nenhum mar soçobrou,
O farol que te guiava,
Já não luz, já se apagou.

A tua linda Violante,
O teu encanto tão belo,
Teve por ti feia morte,
Crua morte de cutelo.

Na igreja de San Gil
Ouves a campa a dobrar?
Vê essas tochas ao longe:
Ela que vai a enterrar.

Já se fez o enterramento,
Já cahiu a lousa fria,
Só na igreja solitária
Um cavalheiro se via;

Vestido de dó tão negro,
E mais negro o coração,
Sobre a fresca sepultura
De rojo se atira ao chão:

«Abre-te, ó campa sagrada,
Abre-te a um infeliz!...
Seremos na morte unidos,
Já que em vida o céu não aqui.

«Abre-te, ó campa sagrada,
Que escondes tal formosura,
Esconde também meu crime
Com a sua desventura.

«Vida que eu viver não quero,
Vida que eu só tinha nela,
Recebe-a, ó campa sagrada,
Que não posso já sofrê-la.»

E o pranto de correr,
E os soluços de estalar,
E a mão que leva á espada
Para ali se traspassar.

Mas a mão gelou no punho
Voz que da campa se erguia
Voz que ainda é suave e doce,
Mas tão medonha e tão fria,

Do sepulcro tão cortada,
Que as carnes lhe arripia
E vida deixou parada:
- «Vive, vive, cavaleiro,

Vive tu, que eu já vivi;
Morte que me deu meu crime,
Fui eu só que a mereci.
«Ai, neste gelo de campa,

Onde tudo é frio horror,
Só da existência conservo
Meu remorso e meu amor!
«Braços com que te abraçava

Já não tem vigor em si;
Cobre a terra húmida e dura
Os olhos com que te vi;
«Boca com que te beijava

Já não tem sabor em si;
Coração com que te amava...
Ai! Só nesse não morri!
«Vive, vive, cavaleiro,

Vive, vive e sê ditoso;
E aprende em meu triste fado
A ser pai e a ser esposo.
«Donzela com quem casares

Chama-lhe também Violante;
Não amarás mais do que eu...
Mas - que seja mais constante!
«Filhas que dela tiveres

Ensina-me melhor que a mim.
Que se não percam por homens
Como eu me perdi por ti.»



Romanceiro, Almeida Garrett