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25/07/2010

O filho de um contador de histórias

Era uma vez um contador de histórias que pertencia a uma antiga linhagem de bardos, cuja tradição era preservar e relatar histórias de tempos remotos, na corte de um certo Rei.
Ele tinha orgulho de sua antiga linhagem, da extensão de seu repertório e do grau de sabedoria que havia em seus contos, usados como indicadores do presente, como registos do passado e como alusões tanto das coisas do mundo dos sentidos, quanto das do mundo que existe além das aparências.
Mas, na corte existiam também outros especialistas de todos os tipos, como é útil e natural. Havia chefes militares, cortesãos, conselheiros e embaixadores; haviam engenheiros especializados em construção e demolição, homens religiosos e de outros tipos de sabedoria: em resumo, havia pessoas de todos os tipos e condições e cada uma delas se julgava melhor do que todas as outras.
Um dia, quando houve uma longa disputa a respeito da precedência entre esses dignos personagens, a única conclusão a que puderam chegar foi que de todos eles, o contador de histórias era o menos importante, o menos útil e o menos habilitado em qualquer arte mensurável. Portanto, a assembleia decidiu que para começar o processo de redução do número de pessoas sem valor à sua volta, deveriam eliminar o contador de histórias. E cada um pensou também consigo mesmo:
"Assim que nos livrarmos dele, poderemos eliminar os outros um a um, provando que todos são supérfluos e então restará apenas eu. E serei o único conselheiro do Rei".
Foi com essa ideia em mente que uma selecta delegação de cortesãos foi ao contador de histórias e lhe disse:
— Fomos designados pelos outros nobres do reino, que estão à serviço de S. Majestade, para informa-lo que decidimos que de todos os membros da corte, você é o mais supérfluo. Você não vai à guerra, para assegurar a glória do reino ou para estender os domínios de nosso vitorioso monarca. Você não julga casos, para preservar a tranquilidade do Estado. Você não contribui para a serenidade da alma do povo, como fazem os chefes religiosos. Você não é bem apessoado como os elegantes da corte. Enfim, você é absolutamente nada.
— Veneráveis e respeitáveis pavões da sabedoria e pilares da fé! — bradou o contador de histórias. Longe de mim discordar do que tenham resolvido. Mas, desde que é meu encargo dizer a verdade em negócios da corte, por lealdade a Sua Majestade, tenho a seguinte objecção a fazer: há um conto antigo e profundamente sábio que prova inteiramente que, longe de ser desnecessário, o narrador de contos é absolutamente essencial ao bem estar e poder do império. Se me permitirem contá-lo, eu o farei com prazer.
A delegação de cortesãos não estava propensa a deixar o homem fazer o que dizia, mas naquele momento, o Rei chamou todos de volta à sala do trono e quis saber o que estava acontecendo. Quando ele ouviu o que nós acabamos de ouvir, ordenou ao contador de histórias que narrasse o seu conto, sem omitir nenhum detalhe. O contador de histórias começou:
— Pavão da Terra! Fonte da Sabedoria! Grande Majestade e Sombra de Alá sobre a Terra! Saiba que uma vez, em tempos os mais remotos, havia um rei, um soberano justo e poderoso como Vossa Majestade, estimado em muitas terras, amado pelo seu povo e temido por seus inimigos.
Esse rei tinha três lindas filhas, belas como a lua. Um dia, as três saíram para um passeio nos bosques perto do palácio e desapareceram completamente.
Extensas buscas foram empreendidas, mas não se achou nenhum vestígio das três. Muitos dias se passaram e então o rei mandou seus arautos anunciarem:
— Em nome do Rei! Que ninguém alegue não ter ouvido! Qualquer um que puder encontrar as filhas de Sua Majestade e trazê-las de volta sãs e salvas à casa de nosso benigno e sagaz monarca, receberá como recompensa a mão em casamento daquela que dentre as três escolher.
No entanto, por semanas e meses nada se soube a respeito das três moças. Era como se a terra se houvesse aberto e as tivesse engolido.
Então, quando parecia haver terminado todas as esperanças, o rei convocou os seus cortesãos para uma reunião, inclusive os chefes espirituais, militares e civis, os juízes de todos os juízes, todos os nobres e cavaleiros do Estado. E assim dirigiu-se a todos:
— Reverendos doutores da lei e da fé! Leões e tigres dos exércitos conquistadores! Incansáveis punidores de infiéis e reis das artes do comércio e da indústria! Ouçam e tomem ciência de minha ordem! Vocês devem escolher representantes, nem número de dois ou três, cuja missão será partir em busca das princesas perdidas e sem elas não retornar. Aqueles que forem escolhidos se obtiverem sucesso, herdarão o reino. E, se falharem, não poderão por os pés em nossos domínios novamente, sob pena de morte.
Imediatamente a corte se dividiu em grupos para eleger representantes, que por sua vez nomearam e votaram seus próprios delegados, até que chegaram à escolha de dois homens: o Emir Al-Jaish, o sanguinário comandante dos exércitos sempre vitoriosos e o Primeiro Ministro, conhecido como o Wazir Al-Wuzura, o homem mais sábio do país.
O rei lhes deu as instruções finais e eles então tocaram a cabeça, o coração e os olhos em reverência, murmurando:
— "Ouvir é obedecer".
Assim, enquanto as trombetas soavam, anunciando sua partida, eles montaram seus cavalos e saíram pelo portão do palácio.
Eles viajaram a pé e a cavalo e enfrentaram muitas dificuldades: em resumo, fizeram tudo quanto sua valentia e sagacidade combinadas poderiam arquitectar. Mas, antes que pudessem encontrar qualquer traço das princesas desaparecidas, foram capturados por bandidos e vendidos como escravos ao dono de uma hospedaria, que os fez trabalhar como bestas de carga, cuidando dos criados e animais dos viajantes que por ali passavam.
Após longo período de tempo, sem que nenhuma notícia da missão chegasse ao palácio, e estando o rei e sua corte mergulhados na mais profunda tristeza, um jovem contador de histórias, filho e neto de contadores de histórias, por gerações e gerações, certo dia chegou ao castelo. Ele pediu ao rei que lhe permitisse partir em busca das donzelas.
A princípio o rei recusou-se a deixa-lo ir, pensando o que um mero contador de histórias poderia fazer, quando dois dos melhores homens do reino haviam evidentemente fracassado. Mas, finalmente, compreendendo que as coisas não poderiam ficar piores, ele lhe deu permissão para partir.
O contador de histórias pulou sobre um cavalo e partiu rápido como uma flecha em direção ao sol nascente. Após muitas aventuras, ele chegou a uma hospedaria, onde encontrou nada menos que as tristes figuras do Emir e do Wazir, trabalhando miseravelmente como criados vestidos em farrapos e com os pés acorrentados. Quando os dois o reconheceram, suplicaram-lhe que se condoesse de sua sorte e o rapaz teve condições de pagar ao estalajadeiro o valor do resgate e assegurar-lhes a liberdade, comprando-lhes também roupas decentes.
A princípio os dois ficaram desconcertados ao saber que aquele homem, para eles de classe humilde, tinha obtido permissão do rei para se empenhar na busca. E se sentiram mortificados ao saber que tal personagem os havia libertado do cativeiro, pois sua arrogância rapidamente estava voltando. Finalmente, no entanto, tiveram que concordar que ele continuasse a busca em sua companhia.
Assim, os três seguiram seu caminho, sem saber seu destino, até que ao cair da noite, chegaram a uma pequena cabana onde uma velha estava sentada à porta, consertando uma cesta de junco. O contador de histórias parou e todos se sentaram para conversar. Após compartilharem do pobre jantar da mulher, o contador narrou um conto de épocas antigas para entretê-los e a velha lhes perguntou o que faziam por ali.
— Nós somos membros da Corte de nosso Rei e estamos em busca das três filhas de S. M. que desapareceram há vários meses, disseram à velha. Mas, até agora não as vimos, nem ouvimos uma palavra a respeito delas, apesar de termos passado por muitas dificuldades.
— Ah! — disse a mulher. Pode ser que eu possa a ajuda-los nessa busca, pois pelo conto que me narraram, vocês demonstraram ser sábios e creio que possam ter uma chance, embora com pequena possibilidade de sucesso.
— As três princesas foram capturadas por três génios maléficos e carregadas para o fundo de um lago perto daqui. Eles têm um palácio mágico no fundo da água, onde é praticamente impossível aos seres humanos penetrar.
Após passarem uma noite de sono agitado ao lado da cabana, os três se dirigiram ao lago, que era cercado de árvores cobertas de cipós retorcidos e uma sensação de maldade pairava sobre o lugar como uma névoa.
— Eu descerei primeiro, disse o chefe dos guerreiros, pois sou o mais forte e posso enfrentar qualquer tipo de inimigo. Que podem um ministro e um poeta fazer numa situação como esta?
Ele torceu os bigodes, num gesto de vaidade e tirou a maior parte de suas roupas. Os outros fizeram cordas com os cipós e o soldado, segurando a espada desembainhada com a mão direita, começou a descer dentro d’água.
— Se eu sacudir a corda, puxem-me para cima, disse ele.
Quando começou a descer dentro d’água, notou que esta ficava cada vez mais fria e, de repente, ouviu um som como se fossem mil estrondos de trovões vindo das profundezas escuras. O medo apoderou-se de seu coração e o guerreiro, antes destemido, puxou a corda apressadamente para ser retirado d’água.
A seguir, o ministro insistiu em descer, pois como muitos administradores, cobiçava o poder que seria seu, caso se casasse com uma das três filhas do rei.
Mas, a mesma coisa aconteceu e ele teve que ser puxado para terra firme novamente.
Então, o contador de histórias desceu. A água estava fria, mas ele se fortificou contra isto. O barulho era tão alto como o de mil tempestades, mas ele conseguiu fechar os ouvidos a ele. Finalmente, quando pensava que teria de desistir, compreendeu que tinha superado os encantamentos que protegiam os gênios e se encontrou numa imensa caverna sob a água.
Ele abriu uma porta, entrou em uma sala e a primeira coisa que viu foi uma das princesas, sentada no chão. Perto dela, adormecido num canto, estava um génio de aparência terrível, em forma de uma serpente com dezoito cabeças.
O contador de histórias agarrou uma espada cintilante que se achava dependurada na parede e de um golpe só cortou fora as cabeças do génio do mal. A princesa beijou-lhe a mão e colocou em volta de seu pescoço uma corrente com emblema real.
O jovem lhe perguntou: — Onde estão suas irmãs?
Ela abriu outra porta e dentro do outro aposento, jazia a segunda princesa, vigiada por um génio adormecido que tinha a forma de um crânio gigantesco com pernas curtas. De uma prateleira na parede, o contador de histórias puxou uma adaga cravejada de jóias e, de um só golpe, separou a cabeça horrorosa das pernas e o génio expirou com um gemido.
Os três, então, foram até o aposento seguinte, onde acharam a irmã mais nova guardada por um génio com cabeça de abutre e o corpo de lagarto. Imediatamente, notando que o génio maléfico estava adormecido, o rapaz pegou um garrote que estava pendurado na parede e estrangulou o génio até a morte. As duas princesas lhe colocaram uma coroa na cabeça e uma espada real nas mãos.
Então, eles voltaram correndo ao lugar onde a corda de cipó pendia dentro da caverna e o contador de histórias fez a primeira princesa segurar a corda, enquanto ele a puxava, dando o sinal para que fosse suspensa. A primeira princesa chegou em terra sã e salva.
Logo, a segunda princesa foi içada e a corda desceu novamente para a terceira princesa. O contador de histórias lhe disse:
— Suba. — Mas a princesa respondeu:
— Você deve ir primeiro, pois temo uma traição. Você pode ser deixado aqui, se nós três chegarmos lá em cima a salvo. Assim, seus companheiros poderiam reivindicar a recompensa, abandonando-o aqui.
Mas o jovem se recusou a subir primeiro e a princesa fez o mesmo. Depois de algum tempo, os dois homens decidiram conduzir as duas princesas à corte e reclamar para si o prémio que, por direito, pertencia ao companheiro deixado para trás. Os vilões ameaçaram as jovens de morte, caso elas não confirmassem a história de que eram eles os verdadeiros heróis.
E foi assim que os quatro voltaram ao palácio e foram recebidos como conquistadores. Eles disseram ao rei que a princesa mais nova tinha sido morta na caverna e o rei ordenou que se guardasse luto por quarenta dias, após o que, o Emir e o Ministro se casariam com as duas moças que tinham supostamente salvado.
Nesse meio tempo, no fundo da caverna dos génios, o rapaz e a princesa mais nova compreenderam que tinham sido abandonados, quando a corda não desceu da última vez. Eles deram uma busca em todos os aposentos e em um deles encontraram uma caixa cravejada de jóias. Quando a princesa levantou a tampa, uma voz disse:
— Qual é a sua ordem? Sou o espírito desta caixa. Peça e seu desejo será atendido.
O contador de histórias imediatamente pediu para que fossem transportados à superfície do lago junto com a caixa e dali para a terra, o que foi feito num piscar de olhos. Então, ele pediu um grande navio carregado de tesouros e que a espada, a coroa e o emblema real fossem estampados nas velas. Quando ele e a princesa se achavam a bordo, ordenou que o navio fosse instantaneamente levado pelos ares, até o porto que havia ao lado do palácio do pai da princesa.
Quando viu o navio, o rei pensou: — "Esta é a embarcação de um poderoso monarca e eu mesmo irei até lá lhe prestar homenagem, pois ele tem três símbolos de realeza em suas velas e, consequentemente, deve ser três vezes mais importante do que eu".
O rei foi até o navio e se dirigiu ao contador de histórias, com grande humildade, sem reconhece-lo por causa das jóias e roupas que ele vestia, e que tinham sido obtidas graças à caixa mágica.
Porém, a princesa, incapaz de conter sua alegria, revelou-se de repente e contou ao pai toda a história. Então, os dois malvados, o ministro e o soldado, foram banidos do reino. O contador de histórias se casou com princesa e, quando o tempo chegou, ele e a princesa receberam o reino como herança.
— Isso demonstra, senhores, quão importante pode ser um contador de histórias. Concluiu o contador de histórias.