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31/07/2010

O homem que queria ser peixe

Xu Wei era um homem simples e sem histórias. Pequeno funcionário em um tribunal de província, ele passava os dias tranqüilos em companhia de seus três compadres, Zhou, Lei e Pei.
Naquele ano, no início do outono, Xu Wei ficou doente. Depois de uma semana de delírio, parou de respirar. Nem reagia mais quando alguém dizia o seu nome. Parecia morto mas persistiam suspeitas de calor na região do coração. Seus parentes, recusando-se a enterrá-lo, sucediam-se no seu leito de morte.
Vinte dias depois, Xu Wei deu um longo gemido e sentou-se na cama. Depois perguntou:
-Quando tempo eu fiquei inconsciente?
-Vinte dias.
-Chamem depressa meus colegas Zhou, Lei e Pei, e digam para eles virem aqui. Eles devem estar à mesa, prontos para comer uma carpa. Diga a eles que estou bem novamente e que gostaria de lhes contar uma coisa muito estranha.
Um servidor foi despachado até os três empregados do tribunal, que de fato estavam sentados à mesa, em volta de uma travessa com uma carpa. No mesmo momento em que eles ouviram a notícia, deixaram a tigela e os kuaizi e correram até onde estava Xu Wei.
Depois de alguns instantes de emoção pelo reencontro, Xu Wei perguntou:
-Me diz uma coisa, hoje, bem de manhã, vocês não encarregaram nosso intendente Chang Pi para comprar um belo peixe?
-Sim - eles responderam em coro.
Xu Wedi voltou-se para o intendente.
-Chang Pi, tu então foste na casa de Chao Kan, o pescador. Ele tentou te enganar, dizendo que tinha apenas uns peixinhos de segunda. Mas tu, tu descobriste uma bela carpa que ele tinha camuflado nos juncos e tu saíste de lá com ela. Ao entrar, passaste diante de um juiz, que jogava uma partida de xadrez com um sargento, nas arcadas. Depois tu viste Zhou e Lei no hall, jogando dados. Pei estava lá também, comendo peixe. Contaste para ele a mentira do pescador e eles ficaram com tanta raiva que prometeram esfolar vivo aquele cretino. Enfim, tu entregaste a carpa ao cozinheiro que foi logo prepará-la. Não foi assim que as coisas aconteceram?
Eles entreolharam-se e confirmaram o que tinham ouvido.Depois eles bocejaram:
-Mas...como é que sabes?
- Eu sei, porque essa carpa...era eu.
Eles então pediram que ele recontasse tudo do começo, pois não tinham entendido.
-Quando eu fiquei doente, começou Xu Wei, eu queimava de uma febre tão forte que eu sentia falta de ar. Só tinha uma idéia: me refrescar. No fim, não aguentando mais, peguei minha bengala e saí.
-Saíste. Como, se não deixaste a cama..
-Pode ser que eu estivesse sonhando, não sei bem. Depois de passar as muralhas da cidade, de repente me senti livre, livre como um pássaro fora da gaiola. E era maravilhoso, mas muito maravilhoso mesmo! Primeiro fui até as colinas, mas, de novo, sentia falta de ar. Então desci para o rio. A água era calma e profunda, e lisa como num lago. Nem mesmo uma marola, um vinco, onde o céu de outono se admirava. De repente, tive vontade de entrar dentro dessa água. Deixei minhas roupas na margem e entrei.
- Na minha juventude, sempre tinha adorado água. Mais tarde, perdi o hábito de nadar. Coisa boa renovar esse prazer que sentia antes!
E de repente, me disse. Nadar é o máximo! Mas nada tão rápido como um peixe deve ser melhor ainda.
“Nesse momento, um peixe passa perto de me e me diz:
- Se esse é o seu desejo, nada mais fácil do que realizá-lo. Vai ser muito fácil virar peixe. Espera, vou providenciar essa mudança.
“Pouco depois, vem na minha direção um homem com cabeça de peixe, bem grande, nas costas de um monstro marinho e seguido de uma grande quantidade de alevinos. Imediatamente ele começou a ler para mim um decreto do deus das fontes e dos rios:
“Viver com os pés no seco e nadar livre são dois modos de vida bem diferenes. As criaturas da terra firme nada sabem da onda –ou muito pouco e somente os que gostam de água.
Xu Wei manifestou seu desejo de nadar livremente. Retirado do reino infinito das águas, ele deseja voltar a ela. Renunciando à terra, ele renega o mundo mortal das ilusões.
Nós vamos satisfazer seu desejo.
Que ele se torne então – como experiência – uma criatura com escamas, uma carpa dourada dos Lagos do Leste, livre para viver dentro d’água. Mas atenção! Que ele não se bata contra os barcos, porque isso é um crime. E sobretudo, que ele não fique guloso, porque, se ele se esquecer que sob a isca esconde-se um anzol, ele sofrerá mil mortes ao ar livre.
“E logo, meu corpo se cobriu de escamas. Felicidade! Coisa boa! Eu me jogo na água e nado onde me passa pela cabeça, salto sobre a crista das vagas nas profundezas mais secretas, eu culbuto e dou piruetas à vontade nos três rios e nos cinco lagos do reino...
“Minha felicidade foi completa durante algum tempo. Todas as noites, como tinha recebido ordens, voltava tranquilamente para o Lago do leste.
“Finalmente, a fome. E eu não conseguia nada para comer. Então comecei a seguir um barco. De repente, vi Chao Kan, o pescador, jogar a linha na água.
“Mmmm! A isca parecia bem gostosa. Maseu não ia car na armadilha e ser pego, não é mesmo! Pensei: “Vamos, tu és um homem inteligente. Momentaneamente transformado em carpa, tudo bem. Mas não vais assim mesmo cair nessa armadilha grosseira.”
“Para não cair em tentação, distanciei-me da barca. Mas a fome me trouxe de volta. Eu me dizia. Estou disfarçado de peixe, mas isso é apenas um jogo. Admitamos que o pescado me pegue, eu, uma pessoa respeitável. Ele certamente não vai me fazer mal. Eu lhe direi tudo e ele me reconhecerá e me levará de volta para a cidade.”
E então eu engulo a isca e, com ela, o anzol. Chao Kan me tira da água. Quando vejo sua mão se aproximar para me pegar, eu me contorço, grito para me soltar. Não adianta, pois ele não me escuta. Ele me passa um cordão nas guelras e me amarra nos juncos.
“Pouco depois, Chang Pi chega para comprar peixe. Dos juncos, escuto a discussão.
-Só tenho uns bem pequenos, mente Caho Kan. E em vez de um, leva muitos.
-Ah, isso não. O sargento Pei me encomendou um dos grandes.
Nesse momento, o intendente olha para os juncos, me vê e me retira de lá.
Eu recomeço a gritar.
-Chang Pi, sou eu, Xu Wei, o assistente do magistrado. Peguei a forma de peixe e nadei pelas águas do reino, mas sou eu mesmo, teu chefe, e tu deverias se inclinar diante de mim!
“Acha que ele me escutou? Que nada! Ele volta para a cidade, me balançando pelo caminho.
Quando eu passo na porta do recinto do tribunal, vejo o magistrado, os dois debruçados sobre o tabuleiro de xadrez. Um vez mais, grito com todas as minhas forças. Eles apenas erguem a cabeça e sorriem, ao me verem.
-Esse aí vale a pena, heim! – diz um.
-Um quilo, quilo e meio, no mínimo! diz outro.
No saguão, passamos por vocês três, que jogavam dados. E tu, Pei, comias um pêssego. Vocês ficaram surpresos com o meu tamanho, e deu parabéns ao Chang Pi pela compra. Ele contou para vocês como o pescador tentou no início me esconder e Pei, furioso, falou que ia surrá-lo.
“E eu, durante todo esse tempo, dando o maior grito, repetindo que sou eu, Xu Wei, colega de vocês. Nada feito. Vocês me levam até a sala e me entregam para o cozinheiro. Ele me joga sobre a tábua de cortar carne, pega uma faca. Eu choro e suplico sem parar.
-Wang, Wang. Não estás me reconhecnedo? Corre e diz para os outros que se trata de um engano.
Mas Wang faz como se não ouvisse nada. Ele aperta minha nuca contra a tábua, levanta a mão e a faca...
Foi nesse mentno que acordei e mandei chamar vocês três.
Todo muito ficou estupefato. E todos tinham o coração apertado por essa carpa sem sorte.
No entanto, logo que eles a viram – o intendente, ao descobri-la nos juncos; o juiz e o sargento, que a tinha visto passar; os três colegas, que a tinham enviado para a cozinha; o cozinheiro, encarregado de a matar – todos eles nada tinha ouvido, nem sentido alguma coisa difeerente. Eles tinha visto apenas a boca do peixe se agitar em silêncio.
Os três senhores ficaram então sem o prato de carpa e, a partir dessa data, nunca mais comeram peixe. Xu Wei recobrou a saúde, tornou-se conselheiro pessoal do juiz e morreu de morte natural muitos anos depois.