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24/02/2009

O jardineiro e seu senhorio


Certo sujeito, curioso em plantas,
Sendo meio burguês, meio roceiro,
Tinha um lindo vergel que cultivava,
Como bom horteleiro.

Ali, por viva sebe protegidos,
Vicejavam serpol, azeda, alface
E jasmins quanto em anos da filhinha
Para um ramo bastasse.

Uma lebre turbou-lhe a paz serena.
"O maldito animal (diz o campônio
Ao senhorio seu) zomba dos laços;
Tem no corpo o demônio.

Todos os dias, de manhã, de tarde,
Vindo a ração buscar, corre sem medo
Entre pedras e paus; até parece
Negócio de bruxedo".

"Bruxedo o quê? Diabo que ela fosse
(Responde o senhorio) hei de apanhá-la.
Por mais ronha que tenha, o meu Netuno
Há de desencová-la.

Juro, bom homem, que vos livro dela".
"'— Quando, meu amo?" — "De amanhã não passa."
E na manhã seguinte ele e seu rancho
Vêm à lebre dar caça.

"— Vamos nós almoçar? Tem frangos tenros?
Anda cá! Não te escondas, rapariga;
Quando a casamos? Quando temos genro,
Meu ginja duma figa?

Terás de desatar cordões à bolsa
Para a noiva dotar". Assim falando,
Senta a menina ao lado e vai com ela
Liberdade tomando.

Numa das mãos lhe pega. apalpa os braços;
Ao lenço do pescoço ergue uma ponta.
Põe-lhe a donzela cobro à demasia,
Que a pudicícia afronta.

Desconfiando o pai, estranha os modos
E intenções do senhor. Grande alvoroço
Vai na cozinha, enquanto se prepara
O regalado almoço.

"— Que bons presuntos! Como estão fresquinhos!"
"— Às ordens do patrão: queira aceitá-los."
"— Pois não, e com prazer. Podes, à tarde,
Ao castelo mandá-los."

Vão de tudo comendo à tripa forra!
Ele e toda a caterva de criados,
Cães e cavalos, que roazes dentes
Trazem sempre aguçados.

Manda sem cerimônia em casa alheia,
Qual se fosse a sua; estraga o vinho;
Diz graçolas à moça, já vexada
Do suspeito carinho.

Tecem-se em confusão os caçadores,
Depois do almoço; cada qual se apresta.
Clangor de trompas — do infeliz rendeiro
Os tímpanos molesta.

Pobre vergel! Que assolação tremenda!
Adeus, verdura e flores de cachopa!
Adeus, canteiro! Nem de salsa um ramo
Para o caldo se topa!

Buscara a lebre por seguro asilo
De ampla couve tronchuda o pavilhão.
Desaloja-a dali; corre após ela
Netuno — o fino cão.

O veloz animal sai por um furo;
Furo? Que digo? — Um vão que se escancara;
— Enorme, larga brecha, que o fidalgo
Na cerca abrir mandara.

Era desar (pensava o senhorio)
Que o nobre castelão e a comitiva
Não pudessem dali partir montados,
Rasgando a sebe viva.

Dizia, lá consigo, o bom rendeiro:
"São farfalhas de príncipe garboso".
Leva-lhe o vento a voz; sai pela brecha
O séquito ostentoso.

E a malta do fidalgo, em poucas horas,
Fizera no vergel mais bastos danos
Do que todas as lebres da província
Fariam em cem anos.

Senhores de pequenos principados!
Liquidai entre vós qualquer pendência.
Buscar os reis para vos pôr de acordo
É suprema demência.

Não tolereis jamais que um rei se meta
Como amigo e aliado em vossas guerras;
Não o deixeis também, nem por visita,
Entrar em vossas terras.

Barão de Paranapiacaba (Trad.)