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18/09/2010

Aqui não volto




Quando entrei no hotel, estava uma senhora muito gorda à entrada, que me olhou com curiosidade. Devolvi-lhe o olhar, enquanto tirava a mala do carro, e esbocei um sorriso de cumprimento. Talvez nos conhecêssemos de algum lugar.
A senhora devolveu-me o sorriso e ficámos quites.
Junto à recepção, estavam dois senhores muito gordos à conversa. Suspenderam as falas, quando me viram entrar. Cumprimentei-os, eles cumprimentaram-me e também ficámos quites, isto é, empatados nos cumprimentos.
A caminho do quarto que tinha reservado, passei por diversos senhores e senhoras, todos bastante nutridos, que incidiam sobre mim pesados olhares de interrogação. Comecei a não sentir-me à vontade. Que desconforto. O que é que eu teria que chamasse tanto à atenção?
Ao passar por um espelho de um dos salões do hotel, mirei-me, para me certificar se estava compostinho. Podia por distracção estar desabotoado ou trazer uma serpentina presa a um sapato...
Isto da serpentina tem razão de ser. Uma vez, terei pisado uma pastilha elástica que se agarrou ao resto de uma serpentina, deixada no passeio (estava-se em período carnavalesco) e eu entrei numa cerimónia muito grave e distinta com um resto de serpentina atrás de mim. Quando, pelos olhares de reprovação à minha volta, dei por mim, tentei desembaraçar-me da longa e comprometedora fita de papel presa a um dos pés, mas com tanto azar que perdi o equilíbrio, logo na ocasião em que se dirigia a mim, para cumprimentar-me, o presidente da cerimónia. Caí-lhe nos braços, para grande surpresa do senhor, que não esperava tal efusão da minha parte e, quando ele se virou, vi que, sem querer, lhe tinha prendido a pastilha elástica e a serpentina às costas. Que desastre. Nem me quero lembrar, que me arrepio todo.
Desta feita não havia nenhuma serpentina que chamasse a atenção sobre mim. Então, do que seria?
A caminho do almoço, voltei a passar por senhoras e senhores, alguns gordíssimos, metidos em fatos de treino do tamanho extra, e outros apenas gordos, mas que ao lado dos mais volumosos quase pareciam elegantes.
Todos me observavam de alto a baixo, com uma indiscrição quase afrontosa. Comecei a sentir-me incomodado.
No restaurante do hotel, era o único comensal. Mesas todas vazias, cada uma com uma jarrinha florida ao meio, e quatro cadeiras de espaldar alto à volta.
Ao ocupar uma delas, sob a vigilância dos criados perfilados, perguntei ao chefe, que acorrera a empurrar-me a cadeira:
- Cheguei cedo demais para o almoço?
- Não. Nada. Perfeitamente - enquanto me estendia o menu.
- Então cheguei tarde?
- Não. Nada. Perfeitamente - repetiu, puxando de um bloco de notas, para assentar a encomenda.
Eu é que não desistia:
- E os outros hóspedes?
- Comem na piscina - esclareceu o chefe de mesa, com um sorrizinho de condescendência.
Estranhei. Quem se mete na água, seja em piscina, seja no mar, só deve fazê-lo depois de feita a digestão. É uma regra de ouro.
Como não tencionava ir nadar, comi bem e fartamente. Caldeirada, cabrito assado e bolo de bolacha. Desculpem se arrotei.
Felizmente que a comida não me pesa. Digiro bem, desgasto muito e continuo tão magro como na minha adolescência. Na escola chamavam-me o ?Chico Fininho", menos por ser Francisco de nome do que seco de carnes.
Para desmoer, fui dar um passeio até à piscina do hotel. O espectáculo que se me deparou, nunca o esquecerei. A piscina até era grandinha, mas transbordava, inundando o relvado à volta. Pudera. Cheia de gordos, gordinhos e gordíssimos que tentavam nadar, sem se empurrarem uns aos outros... A piscina era um festival de barrigas.
As senhoras e os senhores pararam de esbracejar, quando me viram. Senti-me nu, eu que era o único mais vestido de todos. E fugi, fugi, em direcção à recepção, para perguntar ao recepcionista, razoavelmente gordinho, o que se passava.
- Há algum congresso no hotel de pesos pesados?
Finalmente, fui esclarecido. O hotel, na época baixa, a menos frequentada por turistas, promovia uns programas de emagrecimento, para quem necessitasse de derreter uns quilos. Constava o programa de exercícios físicos, rigorosa dieta, saladinhas e sumos de fruta e repouso e concursos semanais, com prémios de bolinhos secos e bolachas dietéticas, para os que mais se tivessem esforçado e adelgaçado.
Agora, eu compreendia o olhar que me deitavam. Era de inveja, de profunda e desabrida inveja, por saberem que o ?Chico Fininho" não tinha de sujeitar-se a estas torturas da fome.
Aterrorizado, pedi a conta e saí do hotel nesse mesmo dia.
Tenho de começar a ponderar melhor o que e quanto e quando como. À cautela. É que, ontem, precisei de atrasar um furo à fivela do meu cinto. Devo estar a ganhar barriga. Ou terá sido mau olhado, lançado pelos hóspedes do hotel?


António Torrado