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23/09/2010

O cavalo sem cabeça



Era uma vez um cavalo sem cabeça. Um cavalo de brincar, um cavalo de balancé.
Onde tinha ido parar a cabeça, ele não sabia. Estava velho, todo estragado e também muito esquecido. Sem cabeça, não admira.
Desconfio que os meninos que o tinham montado não estariam menos velhos do que ele. Quando os nossos brinquedos envelhecem, nós, mais tarde ou mais cedo, acabamos por fazer-lhes companhia. Por ficar parecidos com os nossos velhos brinquedos. Ou vice-versa.
- Olha um cavalo sem cabeça - disse alguém, que andava a arrumar a arrecadação.
- Guarda-se cada coisa mais inútil - disse outro alguém.
Eram dois homens, que estavam incumbidos da limpeza daquela casa de arrumos, para transformá-la num quarto ou noutra divisão qualquer. Iam abrir janelas, pintar paredes, assoalhar o chão. Mas primeiro tinham de desfazer-se do que não prestasse.
As tralhas retiradas da arrecadação amontoaram-se num terreno, ao sol. Mais pareciam sobras de um naufrágio.
Eram malas que não fechavam. Maples sem braços. Cadeiras sem pernas. Guarda-chuvas sem pano. E tudo meio podre, bolorento, cheio de pó e teias de aranha.
- Guarda-se cada coisa mais inútil - voltou a dizer o homem, que não devia saber dizer outra coisa.
No cimo do monte de tarecos, o cavalicoque sem cabeça. Se tivesse cabeça, devia apreciar o destaque.
- Deita-se-lhes fogo - propôs um dos homens.
Assim fizeram. As labaredas roeram de baixo para cima o que havia a roer. Caíram destroços de coisas, sobre coisas em destroços. Fumo. Lume. Cinzas.
Anoitecia. O cardume de fogo assarapantou a noite. Era uma fogueira majestosa.
Estilhaçadas e afundadas pelas labaredas, as coisas deixavam de ser o que eram. Só o cavalo sem cabeça resistiu, no seu pedestal de lume.
Mas uma espadanada de fogo chamou-o a si. O cavalinho ardeu. Estalaram os restos de pintura. Fendeu-se a madeira apodrecida. Soltaram-se os pregos que o prendiam ao arco do balanço.
Foi então que um ímpeto de chamas desassossegadas se desprendeu do incêndio e um impaciente cavalo saltou do alto da fogueira, voou sobre o fumo e desapareceu, no escuro do firmamento. Tinha cabeça, crinas e pescoço de labaredas, o corpo em brasa viva. Era ágil e rápido como um grito. Desvaneceu-se no azul da noite.
Logo após a fogueira ruiu, esbarrondou-se em faúlhas e torresmos incandescentes.
Mas o cavalo de fogo eu vi. Ia a passar por acaso e vi, de relance, como um relâmpago, o cavalo em chamas galgar tudo o que se desfazia em cinzas e pular para o caminho das estrelas.
Garanto que vi. Se não visse não contava.
Até me recordei, de repente, se não teria eu tido, em criança, um cavalo de madeira, que eu cavalgava, cavalgava, sem passar do mesmo sítio. Tenho uma vaga ideia que sim.
Só não me lembro do nome que lhe dava. Talvez ?Labareda". Seria ?Labareda"? A gente esquece tanta coisa, entretanto.


António Torrado